Durante os anos de 1976 e 1977, recém-formado, percorri grande parte dos estados de Minas, Goiás, Tocantins e Pará, reconhecendo e amostrando áreas de pesquisa para a empresa multinacional na qual trabalhei. Nessa maratona, contava com a orientação geoquímica de uma geóloga argentina, com quem muito aprendi e com quem firmei uma fraternal amizade, que perdurou enquanto ela permaneceu no Brasil, se não me engano, 1980. Era descendente de russos e tinha um nome complicado, que nós simplificamos apenas para Mag*. Depois, nunca mais a vi . C’est la vie.
Era muito alta, do tipo galega, e para não chamar muito a atenção, sempre usava roupas masculinas e escondia os cabelos curtos sob um chapéu de palha ou boné. De tudo achava graça e de tudo se admirava, com interjeições engraçadas:
-Si! Si! Pero que lindito!
- Diós mio!
- Santa madrecita! Que cosa, non?
- Carajo!
-Mira Ale*! Mira! Ale era também um colega argentino que às vezes supervisionava as atividades de campo.
-Rrrreginaldo! Que és isso? Mandava ver no portunhol, puxando os erres.
Normalmente era eu quem dirigia a Rural ou a Picape F-100, que utilizávamos nos trabalhos de campo, e ela ia ouvindo milongas ou sambas, num toca-fitas a pilhas, que guardava no porta-luvas do carro.
Certo dia, para minha surpresa, ao voltarmos para a cidade de Porto Nacional, onde tínhamos uma base de campo, por volta de 17h00, ela, repentinamente manifestou desejo de conduzir a Rural. Assim, sem mais nem menos. Não ousei discutir. Pediu para parar o carro e se apossou da direção. Eu me acomodei, confortavelmente, no banco do passageiro e, invertendo as posições, passei a manejar o toca-fitas.
Devo esclarecer que estávamos numa rodovia estadual encascalhada, muito plana, onde se podia desenvolver 80 km/h na Rural, sem maiores riscos. Mas devo esclarecer, também, que o carro tinha um defeito, com o qual eu já me acostumara, mas que foi fatal para a Mag, como se verá. É que a pisada nos freios tinha que ser de leve e nunca bruscamente. Nesse caso, a roda dianteira esquerda era freada antes da direita e o carro puxava, violentamente para o lado do motorista. Era necessário, então, dar umas pisadas bem fortes e repetidas no pedal, para descolar as lonas de freio. Como eu já sabia desse macete, achava isso normal e nunca me embaracei com as constantes puxadas para a esquerda. Mas minha hermana não sabia. Foi uma pena.
Passados uns dez minutos, naquela trepidação monótona, dormia eu já placidamente, ao som de Martinho da Vila, quando sou acordado por um sacolejo violento e os gritos agudos da Mag, que ouço ainda, como se fosse hoje:
- Ui! Ui! Ui! Ui! Ui! Ui!
A última imagem que vi, antes da capotagem, foi da Mag aferrada ao volante, como se fosse arrancá-lo e os pés enterrados no freio, exatamente como não era pra ser feito naquela situação. Naquele átimo de segundo, compreendi tudo o que acontecera e, o que era pior, o que estava para acontecer. Quis gritar para ela tirar o pé do freio, mas não deu tempo. Na puxada para a esquerda, o carro deu um cavalo de pau, capotou espetacularmente e caiu de teto para baixo, ancorado numa salvadora sambaíba. Num segundo, sobreveio um silêncio mortal, só quebrado pelo barulho das engrenagens ainda girando, galhos se recompondo à brisa do cerrado e líquidos escorrendo no motor do carro.
A primeira reação que tive, decorrido não sei quanto tempo, foi de limpar o sangue que sentia nos lábios e de me livrar dos fragmentos de vidros estilhaçados que inundaram tudo, até dentro da boca. Comecei a me mexer, quando ouvi aquela voz, assustada, meio rindo, meio chorando:
-Rrrreginaldo? Estás bien? Que houve, hem?
- Calma Mag está tudo bem. E você? Consegue se mexer?
Confesso que tive medo da resposta, mas ela logo me tranqüilizou:
- Si, si. Estoy bien. Solo me parece que algo me prende la perna...
Saí o mais rápido que pude e ajudei minha amiga a se livrar do câmbio da Rural que lhe imprensava o joelho contra o banco. Esqueci de mencionar que esse modelo de Rural tinha o câmbio no volante.
Ambos fora do carro, ela me olhava com uma interrogação que ia de testa até as botas de caubói que usava.
- Que tonta soy! E ahora?
Além da marca na perna, azulada, ela não apresentou nenhuma outra escoriação visível. Eu levei um corte no queixo provocado pelo gravador e arranhões no rosto, devido a estilhaços de vidro. Nada mais sério.
Agora pude avaliar melhor o que houve. Quando iniciou a descida da ladeira para passar a ponte sobre o rio Manuel Alves, se não me falha a memória, ela se assustou porque havia ali uma picape C-10 estacionada e um pessoal em volta, exigindo redução de velocidade, por segurança. Ao pisar no freio, de forma repentina, vocês já sabem o resto. Nossa sorte foi a providencial sambaíba, porque se tivéssemos prosseguido na capotagem, nosso destino teria sido o leito do rio, mais embaixo.
O pessoal que estava na beira da ponte já vinha subindo a ladeira, apressado, para os primeiros socorros. Ao começar a retirar as coisas de dentro do carro, descubro um garrafão de cinco litros, que estava pela metade de uma cachaça de alambique, que sempre mantínhamos, para qualquer eventualidade. Quando os socorristas chegaram, nos encontraram mamando na boca do garrafão, para relaxar e fazer baixar a adrenalina. Pedi-lhes que brindassem conosco, nossa sorte, no que fui prontamente atendido. Dali a pouco, tudo era uma animação só, parecia festa.
Nossos animados socorristas nos levaram para a cidade, onde já chegamos tarde da noite. Fomos ao hospital para os exames de praxe e nos colocaram em observação, apenas por precaução.
No domingo seguinte, tomávamos uma caipirinha, no bar do hotel, quando ela comentou, filosfando:
- Pero vês, Rrrreginaldo! Que cosa! Será onde estaríamos hoy, se tuvéramos morridos, hem? Habrá outra vida? Que pensas?
Tomei um gole da minha bebida, busquei nos refolhos da mente todo o meu cabedal de reflexões filosóficas e sapequei:
- Na verdade Mag, eu não tenho a menor idéia de onde estaríamos. Não tenho conviçcão sobre a existência de outra vida, nem me preocupo muito com isso. Mas o último som que levaria dessa vida, e que ouvi antes de adormecer na Rural, seria um som de muito paz. Acho que morreria tranqüilo. Adormeci ouvindo as pastoras de Martinho da Vila repetirem:
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
O que eu não disse a Mag, para não impressioná-la, e também porque eu próprio não sabia o que significava aquilo, é que no dia seguinte de manhã, acordei com uma baita vontade de ligar para minha família. Fui a um posto telefônico da Telebrás e liguei. Atendeu uma irmã:
- Que coincidência! Onde você está? Ontem falamos muito em você.
- Estou bem. Nada de novo. Por que falaram tanto de mim?
- É que, numa reunião espírita ontem à noite, recebemos uma mensagem de que teria havido um acidente com você, mas que não nos preocupássemos, porque estava tudo bem.
- Mentira... Não houve nada. Não leve essas mensagens a sério...
- Ainda bem.
Anos mais tarde, já conhecendo os princípios do espiritismo, confessei à minha irmã o ocorrido. Ela disse simplesmente:
- Eu sempre soube.
Bem, como se diz lá na minha terra, tá contada a minha história. Acredite se quiser.
Era muito alta, do tipo galega, e para não chamar muito a atenção, sempre usava roupas masculinas e escondia os cabelos curtos sob um chapéu de palha ou boné. De tudo achava graça e de tudo se admirava, com interjeições engraçadas:
-Si! Si! Pero que lindito!
- Diós mio!
- Santa madrecita! Que cosa, non?
- Carajo!
-Mira Ale*! Mira! Ale era também um colega argentino que às vezes supervisionava as atividades de campo.
-Rrrreginaldo! Que és isso? Mandava ver no portunhol, puxando os erres.
Normalmente era eu quem dirigia a Rural ou a Picape F-100, que utilizávamos nos trabalhos de campo, e ela ia ouvindo milongas ou sambas, num toca-fitas a pilhas, que guardava no porta-luvas do carro.
Certo dia, para minha surpresa, ao voltarmos para a cidade de Porto Nacional, onde tínhamos uma base de campo, por volta de 17h00, ela, repentinamente manifestou desejo de conduzir a Rural. Assim, sem mais nem menos. Não ousei discutir. Pediu para parar o carro e se apossou da direção. Eu me acomodei, confortavelmente, no banco do passageiro e, invertendo as posições, passei a manejar o toca-fitas.
Devo esclarecer que estávamos numa rodovia estadual encascalhada, muito plana, onde se podia desenvolver 80 km/h na Rural, sem maiores riscos. Mas devo esclarecer, também, que o carro tinha um defeito, com o qual eu já me acostumara, mas que foi fatal para a Mag, como se verá. É que a pisada nos freios tinha que ser de leve e nunca bruscamente. Nesse caso, a roda dianteira esquerda era freada antes da direita e o carro puxava, violentamente para o lado do motorista. Era necessário, então, dar umas pisadas bem fortes e repetidas no pedal, para descolar as lonas de freio. Como eu já sabia desse macete, achava isso normal e nunca me embaracei com as constantes puxadas para a esquerda. Mas minha hermana não sabia. Foi uma pena.
Passados uns dez minutos, naquela trepidação monótona, dormia eu já placidamente, ao som de Martinho da Vila, quando sou acordado por um sacolejo violento e os gritos agudos da Mag, que ouço ainda, como se fosse hoje:
- Ui! Ui! Ui! Ui! Ui! Ui!
A última imagem que vi, antes da capotagem, foi da Mag aferrada ao volante, como se fosse arrancá-lo e os pés enterrados no freio, exatamente como não era pra ser feito naquela situação. Naquele átimo de segundo, compreendi tudo o que acontecera e, o que era pior, o que estava para acontecer. Quis gritar para ela tirar o pé do freio, mas não deu tempo. Na puxada para a esquerda, o carro deu um cavalo de pau, capotou espetacularmente e caiu de teto para baixo, ancorado numa salvadora sambaíba. Num segundo, sobreveio um silêncio mortal, só quebrado pelo barulho das engrenagens ainda girando, galhos se recompondo à brisa do cerrado e líquidos escorrendo no motor do carro.
A primeira reação que tive, decorrido não sei quanto tempo, foi de limpar o sangue que sentia nos lábios e de me livrar dos fragmentos de vidros estilhaçados que inundaram tudo, até dentro da boca. Comecei a me mexer, quando ouvi aquela voz, assustada, meio rindo, meio chorando:
-Rrrreginaldo? Estás bien? Que houve, hem?
- Calma Mag está tudo bem. E você? Consegue se mexer?
Confesso que tive medo da resposta, mas ela logo me tranqüilizou:
- Si, si. Estoy bien. Solo me parece que algo me prende la perna...
Saí o mais rápido que pude e ajudei minha amiga a se livrar do câmbio da Rural que lhe imprensava o joelho contra o banco. Esqueci de mencionar que esse modelo de Rural tinha o câmbio no volante.
Ambos fora do carro, ela me olhava com uma interrogação que ia de testa até as botas de caubói que usava.
- Que tonta soy! E ahora?
Além da marca na perna, azulada, ela não apresentou nenhuma outra escoriação visível. Eu levei um corte no queixo provocado pelo gravador e arranhões no rosto, devido a estilhaços de vidro. Nada mais sério.
Agora pude avaliar melhor o que houve. Quando iniciou a descida da ladeira para passar a ponte sobre o rio Manuel Alves, se não me falha a memória, ela se assustou porque havia ali uma picape C-10 estacionada e um pessoal em volta, exigindo redução de velocidade, por segurança. Ao pisar no freio, de forma repentina, vocês já sabem o resto. Nossa sorte foi a providencial sambaíba, porque se tivéssemos prosseguido na capotagem, nosso destino teria sido o leito do rio, mais embaixo.
O pessoal que estava na beira da ponte já vinha subindo a ladeira, apressado, para os primeiros socorros. Ao começar a retirar as coisas de dentro do carro, descubro um garrafão de cinco litros, que estava pela metade de uma cachaça de alambique, que sempre mantínhamos, para qualquer eventualidade. Quando os socorristas chegaram, nos encontraram mamando na boca do garrafão, para relaxar e fazer baixar a adrenalina. Pedi-lhes que brindassem conosco, nossa sorte, no que fui prontamente atendido. Dali a pouco, tudo era uma animação só, parecia festa.
Nossos animados socorristas nos levaram para a cidade, onde já chegamos tarde da noite. Fomos ao hospital para os exames de praxe e nos colocaram em observação, apenas por precaução.
No domingo seguinte, tomávamos uma caipirinha, no bar do hotel, quando ela comentou, filosfando:
- Pero vês, Rrrreginaldo! Que cosa! Será onde estaríamos hoy, se tuvéramos morridos, hem? Habrá outra vida? Que pensas?
Tomei um gole da minha bebida, busquei nos refolhos da mente todo o meu cabedal de reflexões filosóficas e sapequei:
- Na verdade Mag, eu não tenho a menor idéia de onde estaríamos. Não tenho conviçcão sobre a existência de outra vida, nem me preocupo muito com isso. Mas o último som que levaria dessa vida, e que ouvi antes de adormecer na Rural, seria um som de muito paz. Acho que morreria tranqüilo. Adormeci ouvindo as pastoras de Martinho da Vila repetirem:
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
O que eu não disse a Mag, para não impressioná-la, e também porque eu próprio não sabia o que significava aquilo, é que no dia seguinte de manhã, acordei com uma baita vontade de ligar para minha família. Fui a um posto telefônico da Telebrás e liguei. Atendeu uma irmã:
- Que coincidência! Onde você está? Ontem falamos muito em você.
- Estou bem. Nada de novo. Por que falaram tanto de mim?
- É que, numa reunião espírita ontem à noite, recebemos uma mensagem de que teria havido um acidente com você, mas que não nos preocupássemos, porque estava tudo bem.
- Mentira... Não houve nada. Não leve essas mensagens a sério...
- Ainda bem.
Anos mais tarde, já conhecendo os princípios do espiritismo, confessei à minha irmã o ocorrido. Ela disse simplesmente:
- Eu sempre soube.
Bem, como se diz lá na minha terra, tá contada a minha história. Acredite se quiser.
* Nomes fictícios
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