domingo, dezembro 20, 2009

Duelo de insanos

Primeiro Ato - Mexeu com meu amigo, mexeu comigo.

Naquele dia, Pepe* se desentendera fortemente com Abel*, na Empresa. Ambos eram geólogos do time titular, digamos assim. Muito conhecidos e respeitados entre seus pares. Os motivos do desentendimento? Perderam-se no tempo, mas asseguro que foi banalidade, nada que justificasse aquele tom de voz, aquelas ameaças... Coisa de ego, nada mais que isso. Mas o fato é que a discussão estava ficando fora de controle, perturbando o ambiente de trabalho.

Numa sala vizinha, Jonas*, grande amigo de Abel e conhecido estopim-curto, não se conteve e foi lá tomar partido, mesmo sem ter a menor idéia do porquê da briga. Passional como só ele mesmo, não iria permitir seu amigo-irmão ser desmoralizado assim, sem mais nem menos, debaixo de seu nariz, como ele me contou depois. Coisa de geólogo, cá pra nós. A justificativa dele:

- Porra! o cara chamou meu amigo de cagão!! Como eu poderia permitir uma coisa dessas?

A entrada teatral e furiosa de Jonas na sala pegou Pepe de surpresa e deixou-o completamente sem ação. Agora foi ele quem ouviu, pianinho, todos os impropérios que Jonas conseguiu vomitar, antes de resgatar seu amigo, não sem antes assacar seu ataque final:

- Vamos embora, que esta sala está contaminada com o virus da covardia e da filadaputice!

Assim arrematando, saiu, corredor a fora, com Abel, ainda atônito, pelo braço. Atordoado pela surpresa e pela autoridade de Jonas, Abel deixou-se levar sem mairores resistências, até mesmo com certo alívio, pelo que me disseram. Para quem conhece as coisas do futebol, Abel estava mais para Ademir da Guia do que para Edmundo.

E a tarde se foi e o expediente também e todos regressaram a seus lares na paz de todos os dias.

Peraí! Todos??

Segundo Ato - Pintou tragédia

Não foi bem assim. Naquela tarde, um coração voltou pra casa flechado pelo veneno da vingança. Pepe não se conformava. Quisera dar uma chamada de saco em Abel e acabara levando um tremendo esculacho de Jonas, no melhor estilo barraco, pra Deus e o mundo ouvir. Puta que pariu! Isso não ficaria assim!

De seu turno, Jonas, por ser do tipo que explode logo e alivia a pressão, já estava em outra. Para ele, os acontecimentos da tarde já pertenciam ao passado. Sem ressentimentos. Oito horas da noite, o Jornal Nacional já ia começar, quando o telefone toca em sua casa. Chamado pela mulher, lá foi ele atender, contrariado, pois o JN era o único programa que gostava de ver. E então deu-se esse impensável, mas impagável diálogo, entre dois geólogos da mais pura cepa:

- Alô!

- Olha aqui seu filho da puta! Você me pegou desprevenido hoje à tarde, mas não pense que isso vai ficar assim não!

Estopim-curto acendeu imediatamente:

- Vai tomar no cú, seu merda! O que você quer?

- Eu vou te ferrar, filho da puta! Tá pensando que é o bom, o valentão?

- Rarará!!! Tô me cagando de medo!

- Pra mim, você é um monte de bosta mesmo e eu vou te encher de porrada. Te desafio para um duelo na mão, hoje mesmo. Tem coragem?

- Claro babacão! Só me diga onde!!

- Daqui a uma hora, atrás do mercado, no bar da dona Jurema, sabe onde fica?

- Não se preocupe, eu encontro.

- Mas não vá faltar, viu seu cagão, senão eu vou te pegar aí mesmo na sua casa!

- Você tá morto, cara! Eu vou te matar!

Pronto, pintou tragédia!

Excitadíssimo, contou o surreal desafio para a esposa e já foi botando uma camisa para sair. A esposa, pessoa centrada, não acreditou no que ouvira.

- É uma brincadeira, né?

- Brincadeira, uma porra! Pode sair da frente que hoje eu dou uma lição naquele babaca.

E assim dizendo saiu feito um furacão, porta a fora, já com a chave do carro na mão.


Terceiro Ato - Angústia da procura


A esposa, desesperada, pois conhecia o gênio da fera, correu a vestir uma roupa, pois estava de camisola. Mas, quando voltou, o insano já tinha partido e ela nem sabia para onde. Ficou paralisada junto à porta, impotente ante tanta irresponsabilidade e sentindo o cheiro de tragédia no ar. Pensava em sua família distante e na filhinha de apenas seis meses que dormia tranquila nos braços da babá. Sem perder mais tempo, ligou para Abel, grande amigo do casal, e compartilhou sua aflição. Este, sentindo-se responsável, ligou para vários colegas e decidiram, após avaliarem todos os possíveis locais do inimaginável duelo, sair em duplas por alguns botecos selecionados, pois a única pista que a esposa capatara é que o duelo seria num bar.

Sem poder participar da busca, a esposa quedou-se ao lado da inocente filhinha, desfiando todas as orações de que se lembrava, na esperança de que seus santos trouxessem o marido de volta, são e salvo.

E o tempo passou.

Enquanto os ponteiros rompiam a noite, Abel e amigos vasculharam, uma por uma, todas as ruas, vielas e becos do bairro. Nenhuma informação. Ninguém deu a mais mínima notícia dos valentões. A cada dez minutos, Abel ligava para a esposa:

- E aí? Apareceu?

Mas, a única resposta que ouvia era um não angustiado.

Por volta de uma da manhã, todos reunidos na casa de Jonas e sem outra alternativa, resolveram ligar para a casa de Pepe. A outra esposa atendeu sonolenta:

- Não, Pepe saiu desde cedo e até agora não voltou. Aconteceu alguma coisa? Que horas são? Nossa! Aquele safado me paga!
Foi então que alguém se lembrou do irmão do chefe local da Empresa, delegado de polícia e contumaz quebra-galho da geologada descuidada da vida. No desespero, era um fio de esperança concreto, experiente e com a frieza necessária para tomar decisões nesses momentos. Afinal o silêncio deixava a todos com os nervos à flor da pele, olhando-se com medo de seus próprios medos, segurando as palavras. Teria a tragédia se consumado?

Por fim acionado, o prestimoso chefe acionou o irmão, que acionou seus pares delegados, que acionaram toda a frota de viaturas em serviço naquela noite calorenta tropical. Às duas horas da manhã, todos os policiais acordados da cidade procuravam os dois brigões, dando batida na periferia, checando com informantes e vasculhando pontos, bocas, casas de luzes vermelhas... Nenhuma possibilidade poderia ser descartada àquela altura.

De repente, o telefone toca na casa de Jonas. Todos correram ao mesmo tempo, mas foi a esposa quem atendeu, aflita. Era a segunda esposa que, extremamente preocupada, reslovera engrossar o time de buscas e deu a pista:

- Olha, se eles foram para algum bar, deve ser a birosca de dona Jurema, um pega-bêbo atrás do mercado... Não tem placa, é uma casa com um balcão nos fundos.

Quarto Ato - A birosca de Dona Jurema

Com as coordenadas fornecidas, partiram em comboio, com o coração apertado. Que cena os aguardaria? Em menos de 20 minutos o esquadrão de busca alcançou a malfadada rua, na verdade um beco. Pensem num lugar sinistro! Era o tal local. Sem iluminação e sem asfalto e cheio de vira-latas virando latas literalmente. Seguindo as indicações da segunda esposa, deram com uma casa-barraco de portas semi-abertas, uma minúscula sala com mesas da Antártica fechadas e encostadas na parede, indicando fim de expediente. Um corredor escuro, vazio, dando noutro salão à meia-luz, vazio, onde havia um balcão ensebado de madeira. No ar, um cheiro esquisito de salmoura.

Atrás do balcão, cochilando ao lado de uma dose não tomada, um velho esquelético, camisa aberta, bigode engraçado, que quase sai em disparada, quando viu a troupe invasora. Parece ter visto um bando de ETs.

Finalmente, lá no canto mais escuro do salão, a cena que até hoje ninguém consegue esquecer.

Na verdade, por mais que todos tivessem, cada um a seu modo, imaginado o final daquele duelo tresloucado, ninguém, nem de longe, se preparou para o quadro que, naquele momento, presenciaram, boquiabertos.

Seu Joca, o barista assustado, foi quem relatou, com os devidos detalhes, o que viu, com os olhos que a terra comeu, pouco tempo depois. E então ouviu-se a mais espantosa história de duelo que já se deu sob esse mundão de meu Deus.

Último Ato: O Gran finale

Com a palavra, seu Joca.

Era por volta de 9hs da noite, quando Pepe, velho conhecido, apareceu, para sua surpresa, vez que não fazia parte de sua clientela de meio de semana. Costumava, sim, frequentar sua modesta birosca, mas apenas aos sábados, quando vinha comprar coisas do Nordeste, no velho mercado, em frente e então aproveitava para umas rodadas de sinuca, ao embalo de uma cachacinha de rolha e suas tradicionais carne de sol e linguiça de bode, artesanais, as melhores da cidade, modéstia às favas!

Mas, como dizia, foi com surpresa que viu Pepe surgir de repente, naquela noite, pedir uma cerveja e se aboletar sozinho, na mesa mais isolada, aos fundos da casa, bem na entrada de uma sala lateral, onde ficava a mesa de sinuca. Depois da segunda cerveja, nitidamente esperando alguém que não vinha, resolvera aceitar o desafio do velho Quinca, um fanfarrão do taco, para uma rápida partidinha.

Mais ou menos 30 minutos depois, enquanto Pepe levava uma sova do velhote, chega Jonas, esbaforido, assustado, olhando para os lados, aparentemente procurando alguém. Perguntou se ali era mesmo o bar de dona Jurema. Sim, minha falecida esposa. Eu sou Joca, às suas ordens. Sentiu cheiro de encrenca no ar, primeiro porque tinha a presença estranha de Pepe em plena quarta-feira. Segundo, aquele cliente novo, bem vestido, não tinha o perfil dos frequentadores de sua humilde birosca. Que diabos estava acontecendo? Se é uma coisa que não tolerava era confusão em sua casa. Polícia?? Nem pensar!

Bom, mas o fato é que, com com ar de desapontado, talvez por não ver quem esperava, Jonas pediu uma cerveja e se postou, solitário no salão da frente. Fora do alcance, portanto, da vista de Pepe. No sala dos fundos o velho Quinca deitava e rolava em cima do nervoso oponente.

E o tempo passou.

No salão da frente, Jonas tomava uma cerveja, uma pinga, olhava no relógio e pedia mais outra, impaciente e agitado. Por várias e várias vezes esse ciclo etílico foi reiniciado.

Perto das 23hs, quando normalmente o boteco já estaria fechado, Pepe sai da sala de sinuca para mijar e só então vê Jonas na mesa cheia de garrafas vazias, na sala da frente. Àquelas alturas, ambos já estavam mais pra lá do que pra cá. Pepe, sem conseguir ganhar umazinha sequer de Quinca, tanto se concentrara no jogo, que até tinha esquecido do porquê estava ali naquele buraco imundo, plena quarta-feira. Ao ver Jonas, colega de mais de 20 anos de empresa, sua primeira reação foi a de quem viu um velho companheiro e não o adversário desafiado para duelar. Meio zonzo de tanta cerveja, caminha lentamente para o colega desafiado, que ainda não o tinha visto. A meio caminho foi pensando na merda que tinha feito.

Jonas, que já estava quase dormindo sobre a mesa, ao ver o desafiante em sua frente, levou um susto e tentou se postar de pé, com os punhos em guarda. Tentou, porque na tentativa, desequilibrou-se e se esborrachou no chão imundo da birosca. Ajudado por Pepe, recompõe-se e fica sem saber se parte pra cima ou agradece a solicitude. Um drama kafkiano vivido em frações de segundo, pois o que ouviu em seguida o deixou sem jeito:

- Faz tempo que está aqui?

Abobalhado, apenas respondeu, educadamente:

- É... E você? Chegou agora?

- Não cara, já faz um tempão! É que estou lá nos fundos, na sala de sinuca... Vamos pra lá!

Sem entender o que aquele convite significava, Jonas seguiu Pepe até a salinha escura, onde Quinca, inteiraço e todo pavão, aguardava com um copo de cachaça na mão. Pepe foi logo apresentando:

- Esse aqui é um colega de trabalho.

- Prazer, Quinca.

Querendo resolver logo a situação embaraçosa, Jonas perguntou a Pepe:

- E aí, como é que vai ser?

O velho Quinca, papudo e considerado o melhor taco da vizinhança, respondeu antes do indeciso Pepe:

- Podem vir os dois contra mim, que eu dou conta. Hoje estou com o diabo no couro!

- Nada disso! Eu sozinho vou lhe dar uma surra agora, seu convencido de uma figa. Se prepare!

- O que? Você sozinho? Olha rapaz, em você eu vou dar é com um braço só. Assim dizendo, escondeu um braço atrás do corpo e levantou o taco com o outro.

Nesse momento, Jonas tomou-se de um sentimento corporativo e postou-se, cambaleante, frente a Quinca, braços abertos:

- Só passando sobre o meu cadáver!

- Ah, é? Então tá bom, venham os dois!

Foi o que bastou. Como se fora o fecho de ouro  daquele diálogo do crioulo doido, Jonas deu um murro tão grande na cabeça do aparvalhado Quinca, que o velhote saiu catando cavaco até se esborrachar contra o quadro de tacos, na parede dos fundos, antes de cair em meio à avalanche de tacos esparramados pelo chão, uma cena típica de faroeste barato, do tempo do cinema preto e branco. Um corpo caído, dois bêbados, uma luz mortiça no meio da madrugada e um dono de boteco com as mãos na cabeça exigindo explicações, como se isso fosse possível naquele ambiente surreal.

Vendo o velhote semi-desmaiado, Pepe sensibilizado pela inesperada atitude de Jonas, pegou-o pelo braço:

- Vamos tomar uma saideira, enquanto esse velho fanfarrão acorda.

Mas o Joca não tinha gostado nadinha da agressão a um de seus mais antigos e constantes fregueses:

- Olha aqui, acho melhor vocês pagarem a conta e ir embora. Não deveriam ter feito isso com o pobre.

Aí, quem se queimou foi Pepe, que partiu para a defesa do amigo:

- Bota uma saideira sim! E quer saber de mais? Esse velho safado mereceu.

Sem esperar pela resposta, ele próprio dirigiu-se à geladeira, tirando uma garrafa vestida de véu de noiva.

Para não piorar a situação o rabugento, mas covarde Joca, voltou para o balcão e tratou de servir intermináveis saideiras.

O velho Quinca logo logo aprumou-se e ainda tomou umas duas por conta dos amigos valentões, sem ressentimentos.

E o tempo passou. E a bebida passou dos limites. E os adversários que deveriam se bater em duelo, passaram a contar histórias de campo, dos projetos em que trabalharam juntos e a noite tornou-se uma criança. Lembra daquela? Ih! Já tinha me esquecido, e aquela? Puxa, sabe que tenho saudades daquele tempo!?

E tomaram mil saideiras e se desculparam mil vezes e se abraçaram mil vezes e juraram mil juras de amizade eterna e desabaram sobre a mesa, um no ombro do outro.

E foi assim, nesse estado rocambolesco, dantesco, romanesco, mas, sobretudo, grotesco, que a dupla de duelantes foi encontrada e resgatada pela turma de Abel, para espanto e alívio geral.

É certo que as gozações depois foram terríveis, mas o assunto finalmente foi sepultado no cemitério do folclore geológico, exumado agora, para deleite de nossa inquieta memória. Afinal, que seria a vida sem essas deliciosas histórias? Uma chatice! Uma coisa porém é certa: nunca, em momento algum, aqui ou alhures, ninguém jamais verá um duelo como esse. Coisas de geólogo.

Bsb, 30/05/2010, dia do geólogo