quinta-feira, março 27, 2008

Tempo escuro

Às minhoquinhas inocentes, que fertilizam e despoluem o chão imundo da covardia dos homens.

No tempo do tempo escuro,
Tudo era muito triste,
Não sei se o amigo lembra...
O medo do dedo em riste,
Como tinha dedo em riste!
Transformaram – mágica funesta
Nossas manhãs brasileiras,
Nossas noites de seresta
Em raios, becos e muros...
Sequestraram a luz do sol,
Andávamos cabisbaixos
Fosse ralé, fosse escol,
Tudo com cara-de-tacho.

No tempo do tempo escuro,
Como sumia gente!
Não sei se o amigo lembra...
Sumia assim, de repente
Do supermercado,
Do posto de gasolina,
Em plena sala de aula,
Dos braços do namorado,
Do cinema, da cantina,
De repente, atropelado
No semáforo da esquina...
Como sumia gente!
Não sei se o amigo lembra...

No tempo do tempo escuro
Gastei minha juventude,
Como um velho sem cuidados.
Comprometi a saúde
Nas insônias, pesadelos,
Nas neuroses, nos cigarros...
E como cantei amigo!
Cantei, mesmo com os pigarros!
Cantei a cantiga santa
Que os males todos espanta
E esconjurei todos eles
E amarrei todos eles,
Tiveram de respeitar
Os dós da minha garganta.

No tempo do tempo escuro,
Não pudemos fazer nada,
Só beber.
Como bebemos amigo!
Não sei se o amigo lembra...
Bebíamos por tudo.
De raiva, de dor, de impotência,
De impertinência.
Ao que foi e não voltou...
Ao que não deu notícia
Ao que se encantou
Ao que saiu no jornal,
Ao que fugiu,
Ao que se enforcou.
Bebemos até fazer bico
E engolimos todos os sapos,
Pagamos todos os micos
E brindamos às minhoquinhas...
E ficamos rebeldes
E xingamos eles:
Vagabundos! Fidapestes!
E nem tivemos medo do cassetete!
Enfrentamos eles tete-a-tete.
Na solidão dos botecos,
Como ficamos valentes!

No tempo do tempo escuro,
Morríamos muito cedo,
Não sei se o amigo lembra...
Contraímos cirrose, hepatite, asma.
Por isso esse que vos fala
Não sou eu, é meu fantasma
Que saiu da laje fria
E invadiu a tela esguia
Do seu monitor de plasma,
Só pra lhe lembrar que o sol
Que hoje doura seus dias,
Tem sangue dos Alexandres
Tem os filhos das Marias
Que morreram torturados
Nos porões e nos monturos,
Nos calabouços de horror,
Esquecidos e humilhados,
No tempo do tempo escuro.

Brasília, mar/2008