terça-feira, abril 21, 2009

Estou no quintal da casa do Amaro

Segundo Zoraide*, sua companheira, naquela sexta-feira fatídica do suicídio, ele não fez nada diferente. Pelo menos, nada que indicasse a tragédia que estava por vir. Mal o sol despontou, saltou da cama com seu corpanzil de 1,90m, tomou um copo d’água e se mandou para a cava da Irenã. Era assim que chamavam aquela escavação imensa, onde cerca de meia dúzia de homens trabalhavam 24 horas por dia, perseguindo um fugidio veio aurífero, no Garimpo do Saci. Ali, como fazia há dois anos, ouviu o relato da produção noturna, recebeu o saquinho com os gramas de ouro apurado, tomou café com os trabalhadores e orientou as próximas detonações, com seu faro de velho lobo dos garimpos amazônicos.

Por volta de dez horas, sob um sol de brasa viva, voltou ao barraco, com um envelope na mão, acompanhado por Amaro*, um mulato esquisitão, que morava sozinho, ali perto. Não era de muitos amigos, calado e arredio. Os maledicentes diziam que era fugido do Garimpo do Taioba, onde matara dois desafetos, por questões menores, coisas de ciúmes.

Uma das poucas pessoas que freqüentava seu barraco era exatamente o Paraná, o garimpeiro que vai se suicidar nessa sexta-feira. Zoraide nunca soube o porquê daquela aproximação. Ficavam semanas e até meses sem se falarem, mas, de repente, num belo dia, Amaro dava sinal de vida e os dois sumiam, barraco adentro, às vezes por uma tarde inteira. Ele nunca lhe disse o que tanto conversavam. Ela achava que eram questões de negócios e pronto.

Depois do acontecido, Amaro desapareceu e Zoraide começou a ligar alguns fatos... Hoje, ela tem certeza de que os dois se conheciam de muito tempo e que o Amaro era um elo entre o Paraná e algum fato tenebroso de seu passado, que ela nunca vai saber. Depois desses encontros, ela agora se dá conta, ele ficava misterioso, silencioso, pensativo. Certa vez, notou seus olhos vermelhos, mas ele negou que tivesse chorado. Tomou mais uma pinga e encerrou o assunto.

Voltando ao fatídico dia, devo dizer que nosso encontro no bar da Nely*, por volta das 20h00, também ocorreu como todas as outras vezes, na maior normalidade. Ele era fanático por músicas de seresta e enquanto eu estivesse na cidade, nos reuníamos quase todas as noites ali, sob a velha Gameleira, tomando cervejas, uma que outra cachacinha e saboreando o pato que a mãe da Nely nos preparava, a gente pedindo ou não.

Embora lhe chamassem Paraná, tenho convicção de que ele era mineiro ou goiano. Creio que não tinha mais de 40 anos, mas as adversidades da floresta, as agruras da lide garimpeira, os sofrimentos da vida nômade, talvez a ausência dos afetos, enfim, talvez tudo isso colocou sulcos precoces, em sua face clara, que lhe davam uma enganosa maturidade. Era do tipo bonachão, calmo, bem humorado e gostava de uma boemia como ninguém. Fazia enorme sucesso com as mulheres e, dizia-se, tivera uma fieira delas. Enfim, era um boa-praça, prestativo, desapegado, um tipo raro que deixou muitas saudades. Até hoje não me conformo com seu ato tão extremo, tão violento.

Como dizia, foi uma noitada como tantas outras. No outro dia bem cedo, viajei e só fui saber da tragédia, por telefone, dois dias depois. Confesso que me abalei, como poucas vezes me aconteceu depois. Fiquei recordando nossa última farra, a ver se entrevia algum sinal, alguma pista, uma espécie de remorso por não ter feito algo. Mas nada... A não ser... Bom, naquela noite, lá pelas tantas, ele me disse que queria ouvir uma música, mas não se lembrava do nome, nem da melodia. Estava martelando sua cabeça... Daí ele pegou um guardanapo e rabiscou dois versos:

“... Fracasso, por compreender que devo te esquecer, fracasso só por saber que não te esquecerei...”

Quando me mostrou e eu disse que conhecia, ele chamou Nely e ordenou, como um fã agradecido:

- Nely, traga a mais gelada que tiver lá dentro e duas doses de cana, porque essa merece uma!

Resultado: tive de repetir umas tantas vezes, até que ele se satisfez:

- Bom Baiano, você vale ouro!

Enquanto prossegui com outras músicas, notei que ele ficou com o olhar no vazio por alguns minutos. Parece que aquela música o fizera voltar no tempo. E foi só. Daí em diante, tudo transcorreu como dantes, até que nos despedimos, mais ou menos meia noite. Jamais imaginei que aquele abraço apertado seria o último. Já no carro, me perguntou quando eu voltaria e, ao ouvir a resposta, acelerou sua picape e sumiu para sempre, na noite amazônica.

Segundo Zoraide, ele entrou no barraco, mexeu numa maleta de documentos que ficava trancada no guarda-roupas e se demorou mais do que o normal na cozinha. Talvez tivesse chegado com fome, ela pensou, sem nem desconfiar que, na verdade, ele estava tentando rabiscar toscas explicações inexplicáveis. Quando a porta rangeu, à sua saída, ela nem ligou, pois já estava acostumada com seus fins de noite na casa da Ana Branca, como era conhecido o cabaré do garimpo. Só estranhou quando ele voltou e ficou em pé, na porta do quarto, por cerca de um minuto, olhando para ela, que fingia dormir. Sob o lençol, no lusco-fusco da madrugada, ela o viu suspirar e sair rapidamente, com passos decididos.

A casa do Amaro ficava lá no fim do garimpo, um barraco antigo, dos poucos com paredes de alvenaria no local. Ao fundo, seus donos primitivos cultivaram um extenso pomar de mangueiras, jaqueiras, laranjas, pinha e até uns coqueiros que não se desenvolveram, mas ali estavam resistindo ao tempo. Naquela noite, em torno de duas horas da manhã, as corujas que tinham ninho no coqueiro viram um vulto abrir o colchete da cerca do quintal. Espantadas, elas fizeram estardalhaço e deram vôos rasantes, no afã de afastar o intruso da ninhada de corujinhas recém-nascidas. Mas, nem mesmo seu pio agourento fez o vulto retroceder.

Do alto das estacas da cerca, elas viram o vulto andar meio cambaleante até o tronco da mangueira mais baixa. Viram, curiosas, o vulto sentar-se no chão e ficar manuseando uma corda que trouxera pendurada nos ombros. A operação demorou bastante. O vulto, evidentemente, não tinha pressa. De vez em quando ele levava à boca uma garrafa. Depois retomava o ofício de preparar a corda, quase em câmara lenta.

Depois, as corujas viram o vulto se levantar, dirigir-se até a cerca, contemplar o céu estrelado por um minuto e dar um suspiro. E acharam graça, quando aquele corpanzil pesado subiu na mangueira, pelos galhos baixos e se acomodou à meia altura, para desassossego das rolinhas que ali tinham seus ninhos. No meio da folhagem espessa, elas nem o viram prender uma ponta da corda no galho mais robusto e passar a outra ponta, em forma de laçada, em torno do pescoço. Mas ouviram, perfeitamente, o ruído de uma garrafa vazia lançada ao chão. E, logo em seguida, um barulho terrível... Algo enorme se desprendeu dos galhos e caiu da folhagem, numa confusão medonha de galhos se partindo e muitos sacolejos, terminando num baque que abalou toda a copa da mangueira e fez as rolinhas apavoradas deixarem seus ninhos. Tudo não durou mais que um minuto. Aos poucos o silêncio retornou, a noite seguiu seu curso e todos voltaram a dormir em paz.

Quando acordou no sábado e viu que o Paraná não voltara, Zoraide me disse que seu primeiro sentimento fora de raiva e ciúmes. Pensara mesmo que estava na hora de voltar pra sua cidade, pois o Paraná, que lhe prometera vida de rainha, só lhe dera abandono, trabalho e decepções. E foi assim, muito triste, que viu aqueles papéis amassados pelo chão da cozinha. E, sobre a mesa tosca, duas folhas abertas, com uma caneta sobre elas. Numa se lia, com letra trêmula: “Ninguém tem culpa”. Na outra: “Estou no quintal da casa do Amaro”. Embora, à primeira vista, não entendesse ao certo o que aquilo significava, um arrepio lhe percorreu o corpo. Algo, lá em seu íntimo lhe prenunciara a tragédia. Pegou os bilhetes no chão e ali se via como fora difícil ao seu homem escrever aquelas poucas palavras. Quanto desespero! Um temor imenso lhe invadiu, como se fora uma saudade antiga despertada. Sem nem preparar o café saiu como uma louca pra casa do Amaro. À medida que caminhava, uma certeza começou a lhe tomar e ela acelerava o passo. Agora já corria e não tinha mais dúvidas. Quando finalmente, abriu o colchete da cerca do quintal do Amaro, já estava preparada para a cena que a esperava. Foi com a mais doída calma que ela sozinha cortou a corda e estendeu seu desfigurado amor no chão, soluçando a pergunta que nunca encontrou resposta:

- Por que? Por que? Porque, meu nego?

No alto do coqueiro, duas corujas tristes amortalhavam a manhã de sábado com seus pios chorosos.

O Amaro já tinha sumido desde a noite anterior. O envelope que o Paraná recebera de manhã e que talvez pudesse esclarecer alguma coisa, esse envelope nunca foi achado. A única coisa que se soube é que, quando os dois saíram de casa, antes do almoço, foram ao posto telefônico do garimpo e ali o Paraná deu um telefonema de uns 20 minutos ao posto telefônico de outra cidade, onde alguém o esperava. Segundo a telefonista, ele saiu choroso da cabine. Mas isso não ajudou muito, porque a pessoa não foi localizada, de modo que meu amigo Paraná enforcou junto com ele seu segredo... Certamente um segredo terrível... E deixou-nos assim perplexos e saudosos.

Dois anos após esses fatos, retornei ao garimpo do Saci, em novas atividades. Nely tinha vendido o bar e se fora pra capital. Zoraide se mudara, logo após a morte do companheiro, com o que havia de ouro apurado sob o colchão e os trabalhadores assumiram a cava da Irenã e depois a venderam. Agora estava paralisada. Apenas o quintal sinistro da ex-casa do Amaro ainda permanecia intacto. Amaro?! Ninguém soube dar informações. Com grande dificuldade localizei o túmulo do meu amigo num arremedo de cemitério e fiquei sabendo que nenhum parente apareceu ou fez contato para reclamar o corpo. Dois anos somente e o Paraná já era apenas uma lembrança.

Pois é... Nessa minha vida de geólogo e seresteiro, de vez em quando alguém me pede pra cantar “Fracasso”. Então, essa tragédia me vem à lembrança e eu às vezes brinco: - Por acaso, você não está pensando em se suicidar, está?

Certo mesmo está o mestre Paulinho da Viola, que sabe das coisas:

“... E a vida continua... Esse é um dito que todo mundo proclama,

O consolo dos aflitos e a desilusão de quem ama...”

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* Nomes fictícios

terça-feira, abril 07, 2009

Conto mal acabado

Não!

Não me venhas com essa conversa mole,

De clichês e frases feitas de bordões!

Não quero que me consoles.

Não!

Não me venha com teu abraço frio!

Esse abraço que não aperta... Mas aparta.

Que não creio em afetos que não crio.

Não!

Não me olhes com esse olhar que não me vê!

Libero-te do gesto constrangido...

Não estamos em programa de TV.

Não!

Poupemo-nos dos risos maquinais, por hábito.

Pra bem longe com teus dentes de alcatrão,

Que tua boca exala cinismo e mau hálito!

Vai!

E quando passares por aquela porta,

Esquece que existi, despe o passado!

E vive em paz a tua vida torta.

Vai!

Apaga a luz, deixa o portão fechado,

Já te risquei do livro, és letra morta,

Um conto que escrevi, mal acabado.

Bsb, mar/2009