segunda-feira, dezembro 15, 2008

Rio arde e Brasília cai

Eu poderia chamar esse causo de "causo de um acidente anunciado", pegando carona no célebre conto de Garcia Marques (crônica de uma morte anunciada). Sim, porque desde que o Departamento de Estradas e Rodagens do Estado do Pará - DERPA, colocou a placa "DESVIO A 100 METROS", mas não derrubou a velha ponte de madeira sobre o igarapé Jarinã, era previsível que um dia alguém iria se dar mal. E se deu.
A idéia era substituir a ponte precária por uma estrutura moderna de cimento. Muito louvável, até porque o movimento local já justificava plenamente a iniciativa. Além da febre garimperia e mineral que tomava conta da região, havia intensa atividade agropastoril ali se instalando. Praticamente, todos os grandes grupos econômicos do país tinham adquirido latifúndios no sul do Pará e em meio ao ambiente de tensão agrária, o progresso ia modificando a paisagem natural, criando suntuosas sedes de fazendas, abrindo estradas, trazendo aviões, derrubando a floresta e atraindo levas e levas de aventureiros. Estou tergiversando, mas apenas para dizer que o movimento de carros na poeirenta rodovia Marabá - Conceição do Araguaia era tal, que impôs ao DERPA a urgência de mantê-la minimamente transitável, encascalhando os trechos mais baixos, alargando sua bitola e construindo pontes que não se desmanchassem no próximo inverno.
Nos primeiros dias da placa de desvio, todo mundo obedecia sua indicação, deixando a estrada à direita e embicando o carro na direção do leito seco do igarapé. Ocorre que a burocracia estatal emperrou a liberação dos recursos financeiros e a empresa não pôde iniciar a obra conforme previsto. Apesar do desvio, a velha ponte permaneceu lá, inteirinha da silva. E assim, os dias foram se passando e como a travessia do leito arenoso não era, assim, uma operação muito convidativa, os motoristas retomaram a passagem pela ponte, abandonando o desvio. Menos esse que vos escreve, claro. Velho instinto de preservação me dizia para não desdenhar do aviso. Não desdenhei. Rigorosamente, dia após dia, enfiava a cara da valente F-100 no areial e, lá de baixo, contemplava as táubas tortas de madeira, mal aprumadas e irregulares, a cerca de três metros de altura, rangendo ao passar dos carros. 
Corria o ano de 1976 e, juntamente com uma colega argentina, a Mag, fazíamos follow-up de campo em alvarás da empresa canadense que nos empregava. Havia mais de um mês que atuávamos na região, adotando a cidade de Marabá como sede, deslocando-nos todos os dias para as áreas, fazendo reconhecimento geológico e amostragem geoquímica.
Naquele dia, ao tomar o desvio, vi o pessoal da empreiteira se preparando para atear fogo à ponte. Na verdade, montaram algumas fogueiras sobre e sob o madeirame e já se podia sentir o fumaceiro de longe. Confesso que tive um desagradável pressentimento, comentado com minha colega, mas imaginávamos que os funcionários ali permaneceriam, orientando o trânsito. E, assim, tranquilizados, seguimos para mais um dia de rotina geológica, campo a fora. O assunto saiu completamente de nossa pauta de preocupações, até aquele momento em que a Brasília branca nos ultrapassou, cerca de 300 metros da ponte, quando retornávamos a Marabá, 17h00, mais ou menos, cansados, suados e sonhando com a cerva que nos aguardava na cidade. Estranhou-me a velocidade da ultrapassagem, uma imprudência que só poderia indicar uma coisa: O motorista da Brasília não sabia do fogo na ponte logo ali na curva. Acreditem em mim: Mesmo supondo que os funcionários da empreiteira estariam no local, antevi a tragédia que nos aguardava adiante. O pressentimento da manhã voltara, agora com força toltal, me dizendo: - Te prepara, vais precisar ser forte. Mag me olhou com olhar cúmplice. Pensamos a mesma coisa, mas não ousamos dizer palavra. No fundo, torcíamos para estarmos errados. Mas, infelizmente, não estávamos.
Ao entrar na curva que levava ao desvio, uma mistura de fumaça e poeira me confirmou que o pior acontecera. Quando pude enxergar com nitidez, vi um homem desesperado, as roupas ensanguentadas e as mãos sobre a cabeça, andando na areia, apontando para o carro sob a ponte. Estacionei como pude e me deparei com uma cena terrível: o carro sobre os restos do fogo que derrubara a ponte, com o risco de explosão iminente e, preso às ferragens, no banco do passageiro, um rapaz obeso, uivando de dor, que dizia ter as pernas esmagadas, implorando para que o tirássemos dali. Embora meu instinto me dissesse que a primeira coisa a fazer seria garantir a extinção completa do fogo, a compaixão pelo sofrimento do rapaz dentro do carro e de seu pai (depois fiquei sabendo que eram pai e filho), desmaiando na areia me levou a inverter a prioridade de ação, mesmo sabendo do risco que corríamos. Fui ao carro pegar ferramentas para abrir a porta da Brasília que estava emperrada e só então me dei conta de outra tragédia: A Mag tinha desaparecido. Por não suportar ver sangue, saiu correndo pela estrada e sumiu de vista. Resumo da ópera: eu ficara sozinho para tentar fazer o que fosse possível. O rapaz dentro do carro pesava cerca de 150 quilos. Mesmo com a porta aberta, como eu ira tirá-lo? Com a adrenalina a mil, adiei esse problema e me concentrei em como abrir a porta emperrada. Um problema de cada vez. Como tinha bastante ferramentas no carro, levei alavanca, picareta, marretas de vários tamanhos, martelos, o diabo. Aquela porta abriria por bem ou por mal.
Deitei o pai, que vomitava e ameaçava desmaiar, na areia, e iniciei a tarefa "arrebenta-porta" com toda a força que possuía, mas também com o cuidado de não causar mais uma fratura na perna do pobre. Mas não teve força, nem porrada que fizesse a danada da porta abrir. Cheguei a fazer um rombo na lataria, mas inútil... A noite começou a descer e agora era eu que estava ficando desesperado.
Quando estava tentando passar uma corda na porta, para puxá-la, com a F-100, um caminhão apontou no desvio, com vários peões na carroceria... Eram madeireiros. Com uma serra elétrica, rapidamente abrimos a porta, enquanto uma turma limpou a área ao redor do carro, tirando todos os focos de fogo ainda restantes. Aí teve início outro drama: Tirar o rapaz obeso do carro. Ao primeiro movimento de tentativa, ele gritou tanto que nos assustou e desistimos. Mas, ao mesmo tempo em que berrava, ele pedia:
- Pelo amor de Deus, não me deixem aqui, me tirem daqui, nem que eu desmaie de dor!
Então, depois de um trabalho infernal, serramos o teto da Brasília e passamos uma corda sob os dois braços do rapaz, como se fôssemos içá-lo para cima e, dessa forma, com todo mundo ajudando, o removemos, desacordado, para a areia. Ali, fizemos talas de madeira improvisadas, protegendo suas duas pernas (uma delas com fratura exposta) e o colocamos no fundo da F-100, mais confortável que o caminhão, para o trajeto de cerca de 30 km que nos separava do hospital de Marabá.
Não preciso dizer, mas di-lo-ei, que o percurso até a cidade, por aquela estrada esburacada, em noite de breu, foi um drama particular. A Mag, entre apavorada e aparvalhada, parecia necessitar tanto de assistência quanto nosso amigo lá nos fundos do carro, a quem, por absoluta deslembrança, chamarei de Chico. Sua palidez me assustava e eu não sabia o que me preocupava mais, se os lamentos do Chico e seu choroso pai, ou as ameaças de desmaio dela, cada vez que olhava para trás e via a bagaceira sobre nossos sacos de amostras geoquímicas. Mas, enfim, lá pelas 9h00 encostei a F-100 na porta do único hospital da cidade e, a partir de então, compartilhei a responsabilidade por aquela assistência improvisada, mas providencial, nas circunstâncias e no local em que as coisas se deram. Internadas as duas vitimas, ainda tive de prestar depoimento e ficar como responsável pelos dois ilustres desconhecidos até que a família aparecesse e assumisse a encrenca.
Naquela noite, ficamos até altas horas, eu e a Mag, tomando todas e filosofando sobre o sentido da vida. Por fim, ambos bastante borrachos, nos recolhemos à nossa insignificância e nos rendemos aos encantos de Morfeu, que o dia já vinha serelepando ali pelas bandas do Tocantins, a nos lembrar que "amanhã será outro dia".
O pessoal socorrido era de uma importante família da cidade de Castanhal, no Pará. No dia seguinte, aportaram em Marabá umas dez pessoas entre esposa, irmãos, advogados, empregados, enfim, era uma família unida na alegria e na tragédia. Ficaram muito agradecidos pelo socorro que prestamos, queriam nos recompensar em dinheiro e se admiravam de nossa recusa, a não ser a cerveja nossa de cada dia que ficou, digamos assim, mais farta. Trocamos endereços e durante muitos, anos nunca deixei de receber cartões de Natal e de aniversário. Mas, acho que de tanto eu não responder, acabei perdendo contato.
Pois é... A vida de geólogo é assim. Além de dialogar com as pedras brutas e tentar extrair-lhes o passado de neve e fogo, às vezes é aos homens que temos de tentar entender sua natureza estranha. E assim vamos levando os dias. Mas, entre o silêncio sábio das pedras sofridas e as parlapatices dos homens frágeis, há muito que observar e aprender. Não creio que me tornei geólogo por acaso. Algo nessa esquisita profissão me atraiu, me fisgou de forma irresistível. Talvez a aventura de viver por aí, feito hippye assalariado. Talvez a ventura de poder viver longe dos centros urbanos neuróticos. Talvez a curiosidade de entender como tudo começou. Mas, com certeza, a oportunidade de "pegar o Brasil com as mãos", sentir o cheiro de sua terra, o calor de suas gentes, suas dores, seus odores, suas danças, suas línguas. E é isso que vejo hoje, no meu passado. Cada pequenino causo, como esse, mostra como me integrei ao meu povo, como vivi e sofri com ele, como me abrasileirei. Não me orgulha tanto os relatórios que fiz, quanto as amizades que deixei por onde andei. E se tanto me incomodou a falta da pós-graduação gratificante, hoje agradeço o doutorado que fiz, sem saber, sobre Gente, sobre um Povo, sobre uma Terra.

sábado, novembro 15, 2008

Deu a louca no ministro

Li a mensagem ali mesmo, na frente do mensageiro: “Sr. Pereira* pede pro senhor ligar pra ele urgente.” Naquele tempo, 1986, os postos telefônicos do interior tinham um mensageiro que distribuía recados em toda a cidade. Através do pessoal da Sede, o Pereira me localizara ali, no hotel daquela pequena corrutela, interior de Goiás. Dei a gorjeta, tomei um banho e fui ligar.

Hoje, em plena era do celular, é difícil imaginar como eram as comunicações de antanho. A muito custo conseguia-se completar a ligação, mas era só o começo. Depois, era preciso ter a sorte de ela não cair e ainda ter bom ouvido para conseguir distinguir seu interlocutor, no meio dos ruídos intergaláticos que se interpunham na conversa.

- Oi Regis (era assim que ele me chamava), olha aqui, conseguimos uma audiência com o Ministro de Minhas e Energia, Dr. Aurélio Porto*, em Brasília, depois de amanhã. Você tem de vir. A audiência é em seu nome.

Conversamos mais uns dez minutos e desliguei, para supremo alívio dos meus tímpanos.

Então, finalmente iríamos ter um tête-à-tête com o Dr. Aurélio! Há meses vínhamos tentando. Eu era o presidente da nossa entidade nacional dos empregados e precisávamos do apoio do Ministro pra ver se saíamos do zero a zero naquele Acordo Coletivo. A coisa tava braba e as negociações paralisadas. Era nossa última cartada.

Naquela noite, não dormi direito. Pensava no encontro com o Ministro, na importância do acontecimento e na responsabilidade. E se falhássemos? Comecei a sentir um friozinho na barriga. E a ferida na perna começou a latejar. Tanto que tive de trocar o curativo, pra colocar mais anestésico.

Deixe-me explicar. Eu tinha, na verdade, uma leishmaniose.

Dois meses atrás, ao voltar de uma campanha no nordeste de Goiás, notei cinco feridas na perna esquerda. Pequenas, coisa de menos de meio centímetro cada, mas que não cicatrizavam. Fui ao médico, que me receitou um antiestafilococos. Tomei a medicação, percebi que a cicatrização começara e viajei de férias, pra rever a família no interior da Bahia. Depois de uma semana na Boa Terra, estranhei que uma das feridas não cicatrizara. Na verdade, havia se formado uma crosta enorme no local.

Uma parenta, bioquímica, ao ver o estrago, me inquietou:

- Desconfio o que seja, mas só posso afirmar após fazer uma lâmina. Vamos ao meu laboratório!

Algo me dizia que minhas férias tinham ido pro beleléu.

Quando Laura* removeu a crosta da ferida, levamos um susto, nós dois. Embaixo, havia um buraco, mas não era um buraco qualquer. Parecia aberto com uma broca, de tão bem feito e regular. Um canal de meio centímetro de diâmetro, que ia quase até o osso.

- Vou fazer a lâmina só por desencargo de consciência, mas já sei o que é.

Eu nem ouvia direito... Fiquei meio enjoado, querendo vomitar.

Ela fez uma raspagem super dolorida e em poucos minutos estava debruçada no micrsocópio.

- Leishmânia! Exatamente o que pensei! Venha ver... Ela se parece com os glóbulos vermelhos...

Conforme minha intuição, as férias foram mesmo pro beleléu. Voltei urgentemente pra Goiânia, onde dispunha de um hospital de doenças tropicais. O caso era de saúde pública e o medicamento era distribuído pela SUCAM, Superintendência de Campanhas de Saúde Pública.

Como me tratei, já é outra história, mas o fato é que agora estava ali, naquela madrugada quente no interior de Goiás, trocando o curativo e verificando que a danada era bastante resistente. O buraquinho ainda estava lá, bonitinho da silva. Apenas parara de crescer.

Dois dias depois, estava na ante-sala do Dr. Aurélio, aguardando para a audiência. De terno emprestado, sentia-me desconfortável naquele ambiente. Ao lado dos companheiros que vieram do Rio de Janeiro, tínhamos traçado todo um plano de ação. O tempo do Ministro era curto e precisávamos ser objetivos e convincentes. Ficou combinado que Pereira seria o nosso porta-voz. Os demais somente complementariam, quando solicitados, para não tumultuar.

A Audiência finalmente começou. O Dr. Aurélio, muito educado e atencioso, derramou-se em elogios aos geólogos e à geologia. Na primeira deixa, o Pereira desfiou o discurso que havíamos combinado. E foram 20 minutos relatando a difícil situação em que nos encontrávamos, a falta de projetos, orçamento minguante, salários defasados, a Empresa parada, a Diretoria intransigente, a categoria em estado de greve, enfim...

Dr. Aurélio assentia com a cabeça e quando começou a falar, foi naquele tom de que o momento era mesmo de grandes dificuldades, devido à necessidade de redução de gastos públicos, que não tinha margem para ir além do que o orçamento permitia e que havia uma política salarial governamental que era preciso ser obedecida e foi por aí nos jogando água fria.

Estávamos todos desanimados e eu comecei a me cobrar por ter feito aquela viagem tão corrida. De repente, em sua fala, o Ministro, referindo-se ao geólogo disse:

- O geólogo é um profissional privilegiado, trabalha em contato com a natureza, leva uma vida saudável...

Pereira pegou a deixa e partiu pro tudo ou nada:

- Que nada Doutor. Aí é que o Senhor se engana. O geólogo é uma vitima! Além de sacrificar a família e arriscar-se aos acidentes naturais da vida no campo, vive exposto a todo tipo de doenças tropicais.

Pereira viu que achara uma boa linha de argumentação, pois o Ministro mostrou-se vivamente interessado, fazendo perguntas. Pereira, então, deitou e rolou:

- Olha Dr. Aurélio, o Senhor não faz idéia do que é viver no meio do mato. O geólogo enfrenta diariamente cobras, feras, insetos, grileiros, posseiros, índios. Há muitos colegas que sofreram acidente de carro, outros nas máquinas de sondagem. Recente pesquisa feita por nossa entidade revelou que 70% dos geólogos já sofreram algum tipo de trauma profissional. E nada disso é reconhecido! Mas saiba que as minas que abastecem as indústrias, têm o suor, o sangue e a vida dos geólogos!

Vendo que o Ministro estava se mostrando sensível o Pereira arrematou, para surpresa de todos nós:

- Para o Senhor não pensar que estou exagerando, tá aqui esse colega – apontou para mim. Para estar aqui hoje, viajou diretamente do interior de Goiás e com uma baita leishmaniose na perna!

- Leishmaniose?!

-É... Mesmo doente, está trabalhando no campo. E por conta dessa vida é um rapaz separado, vive só. É difícil uma mulher se adaptar à vida do geólogo. O índice de separação é altíssimo!

Eu fiquei pasmo, mas o Ministro estava mesmo interessado era na leishmaniose.

- Como é isso?

Rapidamente expliquei. Aí foi ele que nos surpreendeu:

- Posso ver a ferida?

Quase em coro, meus colegas disseram:

- Mostra!

Aí foi minha vez de pagar mico. Levantei a perna da calça, afrouxei o curativo e expus aquela coisa horrível. Nunca me esqueço o cenho franzido e a cara de nojo do Ministro, quando me perguntou:

- Dói?

Enquanto eu me recompunha, o Ministro perguntou:

- Tem muitos geólogos com essa doença na CPRM?

Aí o Pereira deu o golpe final:

- Ministro, só na Amazônia temos duzentos geólogos. Todos, sem exceção, já tiveram leishmaniose ou malária. Muitos já perderam a conta das malárias. São mais de dez mortes por malária, duas por ataques de índios, duas por afogamento, uma por ataque de onça e dois desaparecidos na floresta.

Fez-se silêncio. O Ministro ficou uns segundos tamborilando a caneta sobre a mesa e, finalmente, chamou seu assessor:

- Seu Roberto, me ligue, por favor, com o Dr. Márcio*.

Dr. Márcio era o Ministro do Planejamento, onde nossas negociações estavam emperradas.

Ali, na nossa frente, depois de uma curta conversa, os dois ministros acertaram um reajuste bastante razoável para nós. Longe do que pedimos, mas o suficiente para distensionar o clima e levar o Acordo a bom termo.

Quando saímos, satisfeitos com o resultado, fui em cima do Pereira:

- Que negócio é esse de dizer que me separei duas vezes e que vivo só? Tá ficando louco cara? E aquela quantidade de mortos na Amazônia?

- Regis, se a conversa demora mais, até eu ia me separar, cara. Eu não podia era perder essa chance!

Dizem que de médico e de louco todos temos um pouco, Sei não, mas acho que o geólogo é mais louco que a média. Um peão com quem trabalhei muitos anos me disse, certa vez, que o geólogo vive dentro dos matos, procurando o que não perdeu, pra fazer não sei o quê. Não é que ele tem toda a razão?


* Nomes fictícios

terça-feira, outubro 28, 2008

Nos tempos do rádio II

Leitinho pra chaninha, no rádio não pode!

Dia de domingo no acampamento, todo mundo na cidade, os relógios lentos... E aquele silêncio que chega a doer o ouvido! Depois de todos os cafezinhos do mundo, não tem jeito, só tomando uma! E aí a solidão se agiganta e traz consigo uma saudade intraduzível e aí o Clóvis* não resistia: ligava o rádio e pedia ao operador da Sede pra botar sua esposa na maricota (estão lembrados da maricota? Se não, leiam post anterior).

- Okapa, Dr. Clóvis! Um momentinho, que vou verificar se ela está em casa, câmbio!

Depois de feita a conexão caseira, o Clóvis desfiava toda sua saudade, naturalmente sabendo que o Dentel e o resto do Brasil estavam na escuta, naquela frequência, claro. Geralmente as conversas eram formais, tipo, que dia você vem, estou bem, as crianças estão com saúde, o Silvinho se apresentou no coral da escola, foi o máximo, só faltou você, sua mãe deu notícias, está tudo bem, até hoje a CPRM não depositou as diárias... E por aí afora.

Meninos, eu ouvi! Naquele dia, estava no canal 5, quando o Clóvis comunicou à sua Nêga (era assim que ele chamava carinhosamente sua querida Lizete*), o adiamento de seu retorno:

- Puxa Nêga! Preciso ficar mais uns dez dias... deu bronca aqui... Zeca* não pode vir, tenho de esperar, câmbio!

- Ah, não Nêgo! Esqueceu o casamento do Beto? Tu não disse que viria dia 20? Hoje são 18... Tu tem de vir, Nêgo, dá um jeito aí! Por favor, câmbio!

- Não dá Nêga! O filho dele (do Zeca) está internado, o Diego... Suspeita de meningite... Coisa séria, câmbio!

Silêncio... A Nêga caíra em si da gravidade da situação e entendeu, comovida, a solidariedade do marido. Mas, quando retornou, algo em sua voz traíra sua decepção, seus planos desfeitos:

- Tá Nêgo! Entendido... Fazer o quê, né? Câmbio!

Agora foi o maridão quem se derreteu todo. Certamente tinha tomado mais um gole, quando atiçou os desejos guardados da esposa saudosa:

- Não fica assim Neguinha, só uns diazinhos a mais! O que foi heim? A chaninha tá com saudade, é? Câmbio!

Chaninha, era o diminutivo de bichana, uma gatinha que eles criavam. Mas quem é o juiz que vai julgar o verdadeiro sentido das palavras de um casal apaixonado? Acho até que a Lizete tinha tomado umas cervejinhas também, pois respondeu toda desinibida, jogando gasolina na fogueira:

- Claro Nêgo! Chaninha tá sem leitinho há 20 dias... Tu sabe que ela só toma leite quando tu tá aqui, né?

Como é lindo o amor dos animais, não?! Mas a temperatura foi subindo e todo mundo na escuta, se deliciando:

- Calma Neguinha, no dia da minha chegada, vou dar uma mamadeira cheinha de leitinho... A chaninha vai transbordar...

Mas quem transbordou foi o Dentel. Depois de provocar aquela interferência infernal, interrompendo as comunicações, um certo operador Lucena, não sem antes fornecer patente, matrícula e lotação, lembrou ao entusiasmado casal que a concessão da CPRM era de caráter público e só deveria ser utilizada no estrito interesse da Companhia, etc, etc, etc.... Aquilo que já sabemos.

Quando os ruídos cessaram, após o sabão, um constrangido operador da Sede perguntou ao leitoso Dr. Clóvis:

- Atento Dr. Clóvis! Não tô conseguindo contato com D. Lizete pela maricota. Telefone ocupado... Continuo tentando? Câmbio!

Ou o Clóvis, p. da vida, terminou de mamar a garrafa que certamente estava ao lado, ou mandou alguma mensagem cifrada, que só ele saberia traduzir:

- Negativo Marcelo*, negativo! Quando conseguir, apenas diga a D. Lizete que estou levando o adubo da macieira. Chego no dia 28. Que ela molhasse bem a cova durante o dia, pois o adubo deve ser aplicado à noite.

Pois é... Marcelo, muito prestativo, ainda quis ser gentil:

- Positivo Dr. Clóvis! Se o senhor quiser, posso ver esse adubo por acá, hem! Basta me dar o nome... Tenho um irmão que trabalha com plantas, câmbio!

Naturalmente, o Clóvis agradeceu a presteza, mas tratava-se de adubo especial que ele ia levar.
O marcante dessa lembrança não é a natureza do diálogo entre Clóvis e Lizete, algo digno de cândidos adolescentes, nos dias atuais. Mas, ele nos remete à violência da vida sob censura. Ao perigo de ser mal interpretado e das consequências morais e até penais, dependendo do caso. À auto-censura que muitas vezes nos impúnhamos, a pior de todas as censuras.

Entretanto, a evocação dessa inocente impertinência do saudoso Clóvis é uma homenagem aos geólogos que tanto sacrificaram suas famílias, com ausências desestruturadoras, espinhosas, no exercício de pesquisas cheias de ciências e impiedades com o relacionamenrto familiar. Ausências, muitas delas, que se tornaram irreversíveis. Que a nova geração de geólogos saiba que a geologia do Brasil foi desvendada a custa de sacrifícios inimagináveis, na era do palm top e do iphone! Que foi preciso enfrentar a ditadura militar e a logística de um país litorâneo, esquecido de seus rincões longínquos. E que muitos desses velhinhos, que já penduraram os martelos, o fizeram sob pesos terríveis de solidão, de um passado descuidado dos laços afetivos, aos olhos indiferentes da sociedade. Mas com a consciência de ter ajudado a despertar o gigante adormecido em berço esplêndido, para seu inexorável futuro mineral. Nem tudo foram rosas, nem tudo foram espinhos. Mas, nada foi fácil.

* Nomes fictícios
(Leia mais sobre fatos pitotescos e curiosidades dos tempos das comunicações por rádio, durante a ditadura militar, no post anterior)

sexta-feira, outubro 24, 2008

Nos tempos do rádio I

Censura em prosa e verso

Das lembranças marcantes dos tempos em que fazíamos geologia desbravando os interiores do Brasil, qual bandeirantes do século XX, uma das mais fortes é a dos rádios transmissores. Com eles, falávamos com o mundo, fosse dos confins do Amapá, fosse do interior de Goiás. Telefone era coisa rara e somente disponíveis nas cabines telefônicas, graças à gentileza de simpáticas telefonistas, muito mais simpáticas do que telefonistas, na maioria das vezes. Nossa valência era mesmo o velho e bom rádio de cinco canais. Levávamos sempre um de reserva, pois não nos arriscávamos a ficar isolados do mundo. Quem acompanha minhas despretensiosas narrativas, há de se lembrar de um causo em que narro o sufoco para salvar o rádio do projeto Palmeirópolis, durante inesperado incêndio no acampamento.

Pois é... Sem o rádio, seria como ir para o campo hoje, sem o celular. Dá pra imaginar? Tinha os fixos, que eram, na verdade poderosas estações de comunicação, e os portáteis, menores e mais leves, que transportávamos em pequenas mochilas e que tinham incrível poder de transmissão, bastando, para isso, estender pequena antena, em direção perpendicular à reta imaginária do local até a estação receptora. Certa vez, em emergência, estendemos uma antena desse tipo dentro do rio Ipitinga, usando duas voadeiras e, graças a isso, acionamos socorro, em Macapá, para um peão que tivera o dedo decepado pela hélice de um motor de popa, no extremo sul do Estado, fronteira com o Pará (veja o post Adoráveis barrigadas).

Tínhamos o sistema oficial de comunicação por rádio, cuja base eram as mensagens por formulários, denominados radiogramas. Os radiogramas eram lidos por operadores práticos, que transmitiam, geralmente, boletins de andamento de serviços e pedidos de material. Como as transmissões não eram límpidas, pelo contrário, sempre carregadas de muito ruído, o operador normalmente ditava a mensagem por códigos: alfa, era a letra "a"; beta a letra "b"; charles, o "c" e assim por diante. Dinheiro era QSJ. Ficar na espera, era QAP e tome sopa de letras!. Assim como fazem hoje, os motoristas de táxi.

Domingo nos acampamentos dos projetos era dia de descanso e melancolia. Geralmente, suspendiam-se as atividades de campo e cada um buscava o lazer possível, a depender de onde se estava. E aí, batia a saudade da família, da namorada, dos amigos, enfim, aquele banzo! O jeito era minimizar o estrago com uma branquinha, que ninguém é de ferro e reunir a família, à distância, usando o rádio e a maricota. Calma que eu explico! Maricota, era uma geringonça, acoplada ao rádio da sede, que, ao comando do operador, transferia a comunicação para um aparelho telefônico. E, dessa forma esquisita, sem privacidade, já que o operador e o resto do Brasil que estivesse na frequência a tudo ouvia, era possível matar a saudade da patroa, da gurizada e saber das últimas. O diabo é que tinha o Dentel - Departamento de Telecomunicações, que era uma espécie de big brother, sempre atento e na escuta. Era o órgão que concedia as licenças e fiscalizava a comunicação. Lembremo-nos que a ditadura ainda vigia e espalhava seus tentáculos até pelos inocentes acampamentos de pesquisa da CPRM. No termo de concessão de licença, uma cláusula draconiana estabelecia que "as comunicações deveriam ser no exclusivo interesse da CPRM, vedado qualquer assunto de natureza particular, política, religiosa, etc". E não pensem que era uma cláusula morta. Quem assim pensa, não sabe o que foram os anos de chumbo.

A primeira vez em que constatei a ostensiva presença do Dentel, eu estava acampado no interior do Pará. Meninos, eu ouvi! Estávamos em plena apuração das primeiras eleições diretas para governador, desde o golpe militar de 64. Um companheiro de outro projeto entrou na frequência e quis saber do operador da Sede, em Belém, a quantas iam as apurações. Havia a grande expectativa de que o candidato da oposição (MDB), Jáder Barbalho, derrotasse a situação. Ainda não tínhamos urnas eletrônicas e as apurações, no Norte, duravam semanas. Éramos todos da oposição, claro! O diálogo, surrealista, foi mais ou menos assim:

- Atento 698, 794 chamando, câmbio!

Depois de várias tentativas, a Sede responde:

- Ok 794! 698 na escuta, câmbio!

- Okapa 698! Acá é Sinval* operando. Quem opera por aí, câmbio!

- Boa tarde Sinval! Acá é o Borges*. Adiante, câmbio!

- Boa tarde, Borges! Tenho três radiogramas, ok?

- Ok Sinval, pode mandar, câmbio!

Após a complicada transmissão dos boletins de sondagem, o técnico de campo quis saber, naturalmente, como ia a marcha das apurações e arriscou inocente indagação:

- Positivo Borges, positivo! Radiogramas encerrados. A propósito, aproveitando, o Jáder continua na frente, câmbio!

Nesse exato momento a comunicação foi interrompida por um infernal ruído extragalático. Após restabelecida a normalidade, o próprio Deus assumiu a operação, de algum lugar do universo:

- Atenção operador da estação 794 da CPRM! Aqui fala o capitão Dantes*, do Dentel. Repetindo, aqui é o capitão Dantes, do Dentel. Matrícula 010100001-111, DCC/DCCI/SVC/PA. Copiado, câmbio!

O técnico, naturalmente, não copiou porra nenhuma. Apenas respondeu desconfiado:

- Adiante, câmbio!

- Por favor, identifique-se e passe o prefixo completa de sua estação, câmbio!

Ih! Aí pegou! O técnico desconfiou que tinha feito alguma m...

- O que o senhor quer mesmo? Câmbio!

Percebendo o clima, o operador de Belém, que a tudo ouvia, resolveu ajudar o Borges e meteu a colher na sopa:

- Atenção Dentel, atenção Dentel, 698, Sede CPRM Belém chamando, câmbio!

Mas o burocrata do Dental não estava pra brincadeira:

- Um momento CPRM Belém! Estou numa conferência de notificação com uma estação móvel de vocês e preciso de informações locais, câmbio!

Embora a comunicação estivesse muito ruim, o Sinval ouvira a conversa e viu que a coisa era com ele:

- Pois não, Dr. Dentel, aqui é 698, Sinval operando, câmbio!

- Corrigindo... Dr. Dantes, do Dentel... Dentel! Entendido? Câmbio!

O ruído extragalático voltara, como se todos os grilos e cigarras da floresta resolvessem se meter na conversa:

- Positivo, hem! Mas não captei tudo, hem! Muito ruído! Só entendi até Pimentel, câmbio!

- Okapa, 698! Tudo bem. Por favor informe o prefixo completo da estação, câmbio!

- Ah.... Negativo! Muito ruído... Mas estou são sim. Tudo bem comigo, câmbio!

Agora foi o Dentel que pediu a interferência de Belém:

- Atento 698! Por favor peça a 794 para informar o prefixo da estação que se encontra no verso da licença do Dentel. Entendido, câmbio?

- Atenção 794, atenção 794! Favor ler o número no verso da licença que se encontra embaixo do aparelho, câmbio!

- Ok, 698, perfeitamente entendido... Já achei a licença, câmbio!

- Positivo 794, positivo! Agora leia o verso, câmbio!

- Ok 698, QAP!

Com esse código, Sinval pedira um tempo. Cinco minutos depois:

- Atento 698, 794!

- Adiante 794!

- Olha Borges, li a licença todinha e não tem nenhum verso. Só tem umas letrinhas miúdas, mas nada de verso, câmbio!

Borges, como se diz na minha terra, "queimou as priquita":

- Verso significa do outro lado! Outro lado, entendido, câmbio!

- Perfeitamente entendido... do outro lado... Mas qual lado? Já olhei os dois, de cabo a rabo... Não tem verso nenhum, câmbio!

Vendo que a comunicação não iria a lugar nenhum, o Capitão Dantes resolveu ser pragmático:

- Atenção 698! Capitão Dantes do Dentel chamando, câmbio!

- Adiante Capitão!

- Está complicada a comunicação direta... Sendo assim, através de Vossa Senhoria, o Dentel, no uso de suas atribuições legais, adverte a CPRM de que a licença para uso de estações móveis de rádio transmissor é para exclusivo uso no interesse da Companhia, vedada qualquer comunicação de conteúdo político. Entendido, câmbio?

- Positivo, câmbio!

E foi por aí afora, passando um sabão na CPRM, pelo fato "inusitado" de um cidadão querer acompanhar a marcha das eleições. E pensar que hoje as TVs mostram tudo, a cores a ao vivo, para todos os rincões do país. Pois é... Mas houve um tempo, é bom não esquecer, em que os grotões só recebiam aquelas informações, via Rádio Nacional, devidamente embaladas e acondicionadas pelos donos do poder. Acredite se quiser.

* Nomes fictícios
(Leia mais sobre fatos pitotescos e curiosidades dos tempos das comunicações por rádio, no próximo post)

domingo, setembro 21, 2008

Barrigadas adoráveis II

Segunda e última parte

Continuação do relato de aventuras e desventuras na selva amazônica, durante projeto de mapeamento geológico e prospecção geoquímica (Cérbero I), na divisa do Pará com o Amapá, no ano de 1982. Os nomes verdadeiros dos personagens foram omitidos, mas os fatos aqui narrados são reais e recriados com a maior fidelidade que o tempo e os neurônios permitiram.


Chefe não passa no teste

Não foi o que aconteceu com o geólogo da área contígua à minha, o Lula, nome fictício. Por não ter jogo de cintura, acabou angariando a antipatia da equipe. Um dia, ao voltar para o acampamento, começou a se sentir mal, com falta de ar. Ele era meio gordinho. Mesmo percebendo o cansaço do geólogo, os peões não se abalaram e continuaram em marcha avançada, deixando o chefe para trás. Este, não suportando mais, deitou-se no chão e ali ficou semi-acordado. Ao chegarem ao acampamento e relatarem o ocorrido, o cozinheiro apiedou-se e entrou na picada para resgatar o chefe, no que foi seguido pelo caçador (peão que, na equipe, tinha a incumbência de caçar).

Quando cheguei ao meu acampamento já tinha um aviso pelo rádio, de que o Lula não estava bem. Veio se arrastando na picada, amparado nos dois assistentes. Convoquei meu piloto e subimos o Ipitinga até o próximo acampamento, já noite fechada. O colega estava de fato muito debilitado, sem energia, suando em bicas com falta de ar. Avisei ao chefe do projeto e mandamos o piloto do colega adoentado descer à noite mesmo, levando o Lula para a base do Inferno. Dia seguinte, desceu para o Carecurú, de onde foi resgatado pelo “anjo” Barriga. Devolvi todos os peões, menos os dois que demonstraram solidariedade humana. O trabalho restante dessa área foi rateado entre os demais geólogos de modo que nem precisou enviar substituto. Depois, ficamos sabendo que o Lula tivera um princípio de infarto.

Malária não dá trégua

Mas a malária nos rondava, assim como a pintada e o Mandaguari, figura lendária, meio homem, meio macaco, que habita as matas amazônicas, aterrorizando os incautos. Ninguém jamais o viu, mas também ninguém tem a menor dúvida de sua existência. Bastava alguém reclamar de frio, ao final da tarde, não tinha erro: malária. Era arrumar a trouxa e descer no próximo barco. Mais de cem peões circularam pelas sete equipes, mais as bases, em rodízio, por causa da malária. Curiosamente, nenhum geólogo caiu de malária no campo, embora, ao retornar para Belém, dois deles estivessem contaminados.

Os trabalhos estavam previstos para durar um mês e meio, mas duraram exatos 69 intermináveis dias. A partir do trigésimo dia, mais ou menos, apareceu-me um caroço na coxa direita, tipo uma espinha, mas que doía muito à noite e expelia um líquido claro. Padeci com isso, em segredo, sem dizer aos peões, com medo de novo trote. Mas estava ficando insuportável e a espinha crescendo mais e mais, parecendo já um pequeno furúnculo. Porém, esse problema só será resolvido no último dia da campanha. Garanto que não será uma solução ortodoxa.

Últimas barrigadas

Finalmente, os trabalhos chegaram ao fim. Desmontados os acampamentos, todos descemos para o Inferno e de lá, em comboio, para o Carecurú. Parecia um sonho, voltar à civilização, depois de mais de dois meses. Ficamos três dias na pista, despachando o material e os peões através das “barrigadas” diárias para Macapá e aguardando o Comandante Flávio, que viria com uma aeronave um pouco maior, de Santarém, para pegar os geólogos.

Era impressionante ver o Barriga “calibrar” o peso da aeronave. Primeiro, ele testava cada saco de amostra, com suas próprias mãos, para estimar o peso. Ia separando os sacos de lado e depois determinava:

- Dá pra ir esses sacos e mais três peões.

Algumas vezes ele abortava a decolagem e pedia, de dentro do monomotor:

- Manda mais um peão!

Ou então:

- Não dá! Temos de descer um saco ou um peão!

Esse era o Barriga. Os peões confiavam cegamente nele e devo dizer que suas “barrigadas” foram todas tranqüilas e bem sucedidas, sem nenhuma ocorrência digna de relato.

Foi aí que um peão, vendo minha “espinha” na perna, diagnosticou, com aquela segurança de quem sabe das coisas: - O senhor tem um ura, doutor.

- Ura??

Um dos geólogos da região me explicou que ura é o mesmo que berne. É um bichinho minúsculo que se instala no corpo e se fixa com uma espécie de cílios. É muito comum em gado. O olhinho da espinha é por onde ele respira. Ofereceram-me duas hipóteses para me livrar do ura: tapar a espinha com fumo (isso forçaria o ura a sair para respirar), ou espremê-lo, manualmente. Essa última hipótese, me advertiram, seria muito dolorida, dado o tamanho do bicho e de suas pernas (cílios). Mas meu “médico” me tranqüilizou: - Se o senhor agüentar, eu espremo. Topei.

Todo o acampamento se reuniu para acompanhar a operação. Por mais que tivesse sido advertido, posso garantir que doeu muito mais do que eu esperava. E o bicho resistiu, aferrando-se a seus inúmeros cílios, que são, na verdade, minúsculas pernas. Finalmente prevaleceram a força e a perícia do meu cirurgião. Do pequeno olho da espinha, emergiu algo semelhante a um bicho de goiaba, só que cheio de pernas. O alívio foi imediato. Comemoramos com uma rodada de excelente cachaça que o Barriga tinha trazido de Macapá.

No último dia, tudo resolvido, tudo despachado, chegou o Comandante Flávio para nos resgatar. E chegou trazendo sinais da civilização que nos aguardava: um isopor cheio de cerveja em lata e sanduíches. Sabe o que significa esse reencontro, depois de 70 dias no meio da mata? Uma sensação de recompensa, de dever cumprido, de felicidade.

A cortina do tempo

Hoje, relembro esses fatos com funda nostalgia, mas com orgulho. O sofrimento que a mata e distância da família impõem se apequenam quando penso que fiz um trabalho importante para o país, que poucos teriam condições de fazer, que me engrandeceu como ser humano e como profissional e que me abriu o coração da Amazônia. Ali deixei mais do que companheiros de trabalho. Deixei amigos de verdade. Nunca mais os vi, mas tenho certeza de que se os revisse, em qualquer lugar, haveríamos de trocar aquele abraço gostoso e compartilhar um monte de histórias que não deu pra contar aqui. Como se o tempo não tivesse passado. Jorildo, Cara Azeda, Bartolo, Dias, Ganã... Brasileiros simples, peões das matas amazônicas, que temem o Mandaguari, como a Deus. Seus ensinamentos ainda estão comigo e as lembranças das nossas aventuras são um patrimônio de cultura e sabedoria, cujo privilégio de ter vivenciado muito me honra e engrandece.

(Fim)

Barrigadas adoráveis I

Primeira parte

Relato de aventuras e desventuras na selva amazônica, durante projeto de mapeamento geológico e prospecção geoquímica (Cérbero I), na divisa do Pará com o Amapá, no ano de 1982. Os nomes verdadeiros dos personagens foram omitidos, mas os fatos aqui narrados são reais e recriados com a maior fidelidade que o tempo e os neurônios permitiram.




O nome de batismo do Barriga? Sinceramente, não sei. Mas isso não tem a menor importância, pois todos que o conheceram sabem que ele será sempre o Barriga. Ponto final. Piloto de teco-teco na Amazônia, década de 80. Sua base era Macapá. Bem humorado e brincalhão, vivia zombando do perigo e onde houvesse qualquer brechinha na mata, ele pousava. Desafio era com ele mesmo. Aliás, ele dizia já ter caído várias vezes. Se é verdade, não posso garantir.

Seu volumoso abdômen dificultava abotoar a camisa e por isso ele andava mesmo era de peito nú, de bermuda, óculos Ray Ban legítimos, sandálias havaianas e um indefectível palito na boca, onde brilhavam vários dentes de ouro, fruto dos anos de trabalho nos garimpos perdidos naquela Amazônia de meu Deus.

Naquele projeto, o Cérbero I (1982), na divisa do Pará com o Amapá, área endêmica de malária, ele cumpriu um papel importantíssimo: fazia um vôo diário, no mínimo, de Macapá até a pista do Carecurú, onde tínhamos uma base. Carecurú era um antigo garimpo da região, do qual só restava a velha pista esburacada, cheia de carcaças de aviões em suas duas cabeceiras. O Barriga e o Comandante Flávio, de Santarém, eram dois dos poucos pilotos que se arriscavam nessa pista. Além de curta, ela tinha um “quebra-mola” bem no meio, que exigia, além de perícia, muita coragem do piloto.

Cada vôo do Barriga, para efeito de controle de custos, era registrado como uma “barrigada”. De Macapá, trazia provisões, correspondências, encomendas e os peões liberados pelo Hospital de Doenças Tropicais. Na volta, levava os peões caídos (que estavam com malária) e as amostras de solo e sedimento de corrente. Dentro da área do projeto, havia barcos que percorriam todas as sub-bases, diariamente, levando os peões curados e recolhendo os caídos (e as amostras), para trazer ao Carecurú. Assim era a rotina dos projetos na Amazônia naquela época. Não sei se hoje é muito diferente.

Cérbero, o guardião do inferno

Toda a logística do projeto fora montada a partir de Belém, usando fotografias aéreas da USAF, escala 1:70.000. Sete equipes se espalhariam ao longo do rio Ipitinga, afluente do rio Jarí. O acampamento-base ficaria na boca do Igarapé do Inferno e uma sub-base fixa ficaria na pista do Carecurú, nosso elo com o mundo externo. Cérbero, segundo a mitologia, era o nome dado ao cão que guardava a porta do inferno. Daí o nome do projeto. Bastante encorajador, não acham?

Do Carecurú ao Inferno era um dia de barco, com vários obstáculos terríveis de corredeiras (pedras no leito do rio). Conseguimos contratar um índio, nas proximidades, que era o único piloto que se arriscava com os barcos pelas corredeiras. Ele tinha de passar todos os barcos, pois conhecia os canais e as pedras, como se fosse a cozinha de sua choça. Mesmo, assim, no primeiro dia, um dos barcos virou e perdemos todos os mantimentos. Por segurança, os equipamentos eram transportados a pé pelas margens.

No Inferno, ficamos dois dias montando o acampamento, refinando a programação, separando o material e os peões. Éramos sete geólogos, mais o chefe do projeto. Quando o acampamento ficou pronto e instalamos a estação-base de rádio, me lembro que o chefe do projeto mandou fincar um mastro bem alto, no centro da praça e promoveu uma inusitada solenidade de hasteamento da bandeira, ao som de improvisado e desafinado Hino Nacional. Com direito a perfilagem geral e mãos sobre o peito. Mas que foi emocionante ver nossa bandeira tremulando naqueles cafundós, isso foi!

No dia da partida das equipes, o primeiro acidente. Ao tentar fazer pegar um dos motores de popa, um peão teve o dedo polegar decepado pela hélice, bem no meio do rio Ipitinga. Aí eu pude constatar a utilidade dos rádios que levávamos. Ali mesmo, no leito do rio, estendemos a antena (dois barcos, cada um puxando para um lado) e ligamos o rádio Telefunken portátil. Em minutos, o Barriga foi acionado e dali mesmo um dos barcos desceu para o Carecurú, com a primeira baixa das dezenas que teríamos nos próximos 70 dias que durou aquela aventura.

Chefe passa no teste

Já haviam me prevenido que não é fácil trabalhar com os peões na Amazônia. Eles costumam testar sua competência e liderança e se você não despertar confiança, fica acuado e sujeito a chantagens de todos os tipos. O meu teste se deu logo no segundo dia, quando a equipe da picada regressou dizendo que havia encontrado aviso de índios, e que era perigoso prosseguir dali para frente. Para dar maior dramaticidade, disseram que os índios tinham tocado fogo na picada. Na verdade, notei que um dos peões parecia incomodado, ficando sempre calado e não me encarando.

Bom, confesso que me deu um friozinho na barriga, mas lá em Belém, tínhamos feito contato com a FUNAI, mostrando a área de trabalho e nos foi declarado, com documentos, tratar-se de área livre de qualquer presença indígena. Mesmo assim, pelo rádio, fiz contato com o chefe do projeto que me recomendou ir pessoalmente ver os “avisos” antes de qualquer decisão.

Dia seguinte, lá fui, cheio de cautelas, fazer o reconhecimento. Importante frisar que quando determinei a volta ao local, senti certo nervosismo na equipe. Percebi certos cochichos e trocas de olhares suspeitos. Quando chegamos ao local do incêndio, não vi as tais palmeiras cruzadas, os avisos, segundo disseram. Mais ainda, bastou andar um pouco ao redor e encontrei uma caixa de fósforos vazia, ao lado de embalagens de cigarros. Mais algumas perguntas e logo me confessaram que foi um incêndio involuntário e, com medo de punições, inventaram a história toda. Apenas um peão não concordara com a lorota, por isso ficara incomodado, mas não entregara os colegas.

Ali na picada mesmo, disse que não haveria punições, por ser a primeira vez, mas determinei que contornassem a área incendiada e continuassem a picada. Retornando ao acampamento, contatei o chefe do projeto, na base do Inferno e pedi para me mandar três peões de picada. À tardinha, quando a equipe voltou, devolvi os três mentirosos e preservei o que não entregara os colegas, apesar de não fazer parte da trama. Foi meu teste de fogo e serviu para deixar claro que eu não era um bocó da capital.

Mas adquiri o respeito inconteste da equipe, alguns dias depois, quando, ao fim de um dia complicado, ao longo de drenagens, para coleta de amostras geoquímicas, ao invés de voltarmos pelo mesmo caminho por onde tínhamos vindo, propus voltar por outro caminho, sob meu comando na bússola. Garanti para eles que, se seguíssemos exatamente por onde eu indicasse, sairíamos bem perto do acampamento, em muito menos tempo. Vi a dúvida estampada nos rostos e até certa torcida para que as coisas não dessem certo e assim, me desmoralizar. Mas, o resultado é que tudo saiu conforme eu prometera e isso me deu a liderança inconteste da equipe. Todos me cumprimentaram e queriam saber como funcionava a bússola. A partir dali, minha palavra era sagrada e nunca mais tive problemas de comportamento entre os peões. Aliás, ficamos grandes amigos e acabei, com o tempo, tornando-me confidente e conselheiro de todos eles.

(Continua... Veja sequência do relato na próxima postagem)

domingo, agosto 17, 2008

Cinzas

Vamos lá!
Último tango, último trago...
O furacão que nos varreu um dia,
Hoje é só poeira.
Findo o carnaval,
Finda a fantasia,
Fica o gosto amargo
Da manhã de cinzas
Da quarta-feira.

E a minha vida é esta.
Uma fogueira me queimou por dentro,
Um tsunami fez de mim seu epicentro
E tudo devastou...
Eis o que resta.
Nosso amor, abandonado,
Agonizou no chão, ignorado,
Triste fim de festa!
Em vão te supliquei... Estavas bêbada.
De braços com o Palhaço... Trôpega,
Esqueceste o Arlequim tristonho,
Seu olhar pidão, seu canto enfadonho,
Sua vã seresta.
E então te foste, na clara manhã...
Nem viste o bobo nas calçadas da cidade
A rabiscar no chão sua saudade.
Nem o viste chorar, cruel cunhã!

Distraída,
Nem ouviste seu canto de dor.
Tu, a musa de todas as musas,
Que inspiraste os mais puros poemas,
Tu, a fonte de todos os temas,
Te perdeste nas ruas confusas
Da cidade sonolenta, sem cor.

Distraída,
Não o viste pisar a poesia,
Sob o céu de luz rajado,
E tristemente, esbanjar alegria,
Lançar serpentina e dançar...
Nem o sentiste exalar
Bêbado ai resignado.
Nem o viste a cantar, resoluto,
Apesar da dor e da careta,
Senhor de si, absoluto:
"Deixa a vida me levar..."
Seguindo gentil Borboleta.
Ah! Pena... Nem o viste
A se esgoelar na praça,
Sambando com as morenas,
As derradeiras Helenas
Do Bloco do “Tudo Passa”,
A cantar um samba-chiste:

- Aqui jaz um grande amor.
Levou para a eternidade
Os clarins de um carnaval
Que viveu intensamente
Em traição e poesia...
Agonizou quarta-feira,
De ressaca, indiferente,
Causa mortis natural,
Vomitando a fantasia...
Sem remorso, sem saudade.

Bsb, 03/08/2009

terça-feira, julho 08, 2008

Desencontro marcado

Quando o tapa me estalou no rosto,
Não foi dor que senti, nem raiva.
Não que seja estúpido ou santo,
Mas é que dominou-me tal espanto,
Que mal fitei a mão que estapeava...
E fiz-lhe ver o horror do meu desgosto.

Não sei quanto tempo se passou – eu mudo.
Segundos cruéis... Silêncios fatais.
Mas quando, enfim, recuperei o senso,
Já se esvaíra de mim aquele amor imenso
E me afloraram sentimentos tais,
Que revolveram fundo e misturaram tudo.

E, então, caí do furacão no vórtice
E sorvi do amor, o amargo fel.
Mas, não durou nem um minuto, acho,
Senti subir em mim um fogo, um facho,
Que iluminou e retirou o véu
E expulsou o medo e removeu o óbice.

E deu-se, então, o que se viu depois,
E foi tudo em seu lugar reposto
E nosso caso terminou – que pinta!
Exatamente às dezenove e trinta,
Daquele dia vinte e um de agosto,
Mil novecentos e noventa e dois.

Bsb 26/04/2008

terça-feira, julho 01, 2008

Anjo junino

Duas e meia da manhã. Um frio cortante tomara conta da cidade triste e escura. Dos festejos de horas antes, só restavam o zumbido e o gosto de cachaça na boca. Como todos os anos, o São João tinha sido bem tradicional, naquela cidadezinha do sertão, em casa de família. Leitoa, carneiro, quentão, comidas de milho, amendoim, bolo de arroz, cachaça, cerveja e aquele sanfoneiro que nunca pode faltar. Mas, a saúde do patriarca já não era mais a mesma. Em sua consideração, a festa acabara cedo.
Na praça das lembranças eternas, silêncio e sombras e o barulho do vento. Mas, um ligeiro movimento me chamou a atenção. Sentado na calçada em frente ao portão de casa, um menino. Loiro, magro, mal vestido, cabelo desgrenhado, com algumas caixas de fogos vazias na mão, olhando fixamente para o que restara da fogueira: algumas teimosas labaredas sobre o braseiro quase apagado. Parecia não ligar para o frio.
Quando sentiu minha presença no portão, assustou-se ligeiramente, mas logo se recuperou e ali, do outro lado da rua, enfrentou-me com um olhar desafiador. Encarou-me. Quis dizer alguma coisa, mas me limitei a sustentar o olhar por alguns custosos segundos. Não fiz absolutamente nada. De sua parte, após calar-me, ele simplesmente me ignorou. Levantou-se da calçada e ficou remexendo os restos de fogos na rua com uma varinha. Calmamente, revirava os papéis queimados dos vulcões, dos traques, dos buscapés, das chuvinhas, das bombas e das espadas que, pouco antes, fizeram a alegria de outras crianças. Sério e meticuloso, parecia determinado a encontrar algo.
Nunca o tinha visto. Era completamente estranho para mim. Seus cabelos de fogo refletindo as luzes da noite e seu porte altivo davam-lhe um ar angelical.
Normalmente, eu lhe perguntaria se estava com fome, se queria refrigerante, onde morava, se precisava de algo, quem eram seus pais, mas ali, naquele momento mágico, ele era o senhor da situação. Eu não ousei lhe dirigir a palavra. Apenas acompanhei seus movimentos, admirado daquela presença inesperada.
De repente, ele agachou e pegou algo no chão. Sua boca abriu-se num sorriso largo que pude ver perfeitamente. Era a pura felicidade. Após uns breves segundos de admiração, atirou o objeto dentro da fogueira e seguiu-se o espocar de um traque. Ele riu mais ainda e pareceu ter alcançado seu objetivo. Recolheu as caixas que deixara no chão e voltou a se sentar na calçada, olhar perdido na noite. Agora, era a pura tristeza.
Magnetizado no portão de casa, tudo acompanhei sem nada dizer. Nem me movia, em respeito absoluto àquela presença tão estranha, quanto dominadora.
Não sei quanto tempo permaneceu naquela contemplação quase religiosa. Sei que em determinado momento ele se levantou, ajeitou as caixas vazias nas mãozinhas pequenas, ficou ao lado da fogueira uns segundos e saiu cabisbaixo, rua acima. Só então pude descer o degrau para, finalmente, ganhar a calçada. Após passar a chave no cadeado, ainda intrigado, procurei o menino e não o vi mais na rua. Vasculhei cada poste e cada árvore da praça vazia e... Nada. Fui até o beco, a vinte metros da casa, e lá também nem sinal de vida humana. O menino simplesmente desaparecera.
Não sei o que me deu, mas peguei o carro e percorri todas as ruas e praças da vizinhança e não o encontrei mais. Não me pergunte por que fiz isso.
Quem era aquela criança? O que fazia sozinha, de madrugada, pelas ruas da cidade vazia? O que buscava? Para onde foi? Por que me encarou daquela forma desafiadora e paralisante? E por que eu não fiz nada?
Fiquei na cidade mais de uma semana, mas nunca mais voltei a ver aquele rostinho angelical. Não disse nada a ninguém, nem fiz perguntas. Simplesmente guardei na lembrança aquele estranho encontro. Desencanei e toquei a vida em frente. Hoje, porém, decorrido um tempo razoável, eu digo a quem tem ouvidos de ouvir, ou melhor, escrevo a quem tem olhos de ler: é nos mistérios que as verdades se escondem. E é nos sonhos que a realidade se desvenda. O que chamamos de vida real, não passa de uma farsa, uma ilusão a nos desviar, cotidianamente, do que faz sentido, do que importa. Afinal, a dita vida real é breve como o canto de despedida da cigarra. Mas os mistérios, os insondáveis mistérios, com esses é que passaremos a eternidade. É para lá que todos caminhamos, inexoravelmente, quer queiramos ou não. A imagem daquele anjo junino é tão real quanto a certeza da morte. A vida? Fico com Gonzaguinha, que sabia das coisas e se adiantou, na viagem inevitável: “...é uma gota, é um tempo que nem dura um segundo...”

domingo, junho 01, 2008

Panaceia

O livro é oceano, a palavra, areia
Quer navegar?
Abra o livro e leia...

O livro é banquete, a palavra, a ceia
Quer se alimentar?
Abra o livro e leia...

O livro é alqueire, a palavra, candeia
Quer se iluminar?
Abra o livro e leia...

O livro é Olimpo, a palavra, sereia
Quer se apaixonar?
Abra o livro e leia...

O livro é cidade, a palavra, aldeia
Quer se encontrar?
Abra o livro e leia...

O livro é engrenagem, a palavra, correia
Quer se transportar?
Abra o livro e leia...

O livro é inteira, a palavra é meia
Quer se emocionar?
Abra o livro e leia...

O livro é cabeça, a palavra é veia
Quer se comunicar?
Abra o livro e leia...

O livro é colheita, a palavra semeia
Quer se abastecer?
Abra o livro e leia...

O livro é granola, a palavra, aveia
Quer emagrecer?
Abra o livro e leia...

O livro é presídio, a palavra, cadeia
Quer se acorrentar?
Abra o livro e leia...

Rio, 28/05/2008

sexta-feira, maio 09, 2008

No avião

Primeiro, a expectativa, a excitação...
Depois, o calafrio, mas não ainda medo,
Algo como um fio de história sem enredo.
Atrai-me o indisfarçável disfarçar da emoção,
Quando a aeronave ganha, enfim, a pista:
Os olhos fingem devorar a moça da revista,
Enquanto os lábios balbuciam a oração.

O assento ao meu lado está vago...
Lembro-me a última viagem juntos.
Lembro-me tudo, as risadas, os assuntos...
E a aeromoça, que não traz um trago!?
A tua ausência dói como um petardo
A perfurar o peito, cruel dardo
De veneno e de saudade... Doce amargo.

Na turbulência, tua ausência é mais doída.
Instintivamente, minha mão procura a tua
Lá fora paira, alva e triste, a lua...
Misteriosa, entre nuvens, escondida.
Onde estás agora? No trânsito!? Em casa!?
Uma rajada quase arranca do avião a asa.
Que frio! Que medo! Como é frágil a vida!

Com grande alívio, vejo as luzes do aeroporto.
O céu clareia... A noite se apresenta calma
De alegre ansiedade se enche minh’alma.
O pouso é firme e em total conforto,
Mas outro vôo começa agora em mim:
Um sonho, um beijo... Ai, boca de alfenim!
Sou marinheiro errante... És meu farol e porto.

Rio, 17/01/2008

domingo, abril 27, 2008

Travessuras de Juca Mato Grosso II

Conforme prometi, aqui vão mais alguns causos do Juca Mato Grosso*, esse querido pantaneiro que já abandonou as lides geológicas, faz tempo, mas cujas lembranças continuam vivas e caras para nós, que tivemos o privilégio de com ele conviver, por algum tempo.
Naquela noite da sábado, na cidade, o Cacau*, um técnico de mineração, estava meio macambúzio, caladão. Na balbúrdia da noite, poucos perceberam a preocupação no semblante do colega. Menos o Juca, sensível e zeloso do moral de sua tropa. Com uma desculpa qualquer, deu um jeito de arrastar o Cacau para uma mesa ao fundo da algazarra e, minutos depois, como um velho padre de aldeia, lá estava ele a recolher os desabafos e pecados do sorumbático técnico. Entre copos de cerveja e doses de cana com limão, Cacau abriu as portas do coração reprimido, deixando escorrer, em turbilhão, mágoas inconfessáveis e ressentimentos mal-aparados de um casamento conflituoso. Sob o aguilhão ácido da dúvida, o confessor revelava, a cada nova dose, pontadas de segredos preservados a sete chaves, sentindo nesse extravasar, um grande alívio que era, ao mesmo tempo, motor de novas confissões.
Com grande maestria, o Juca ia dirigindo a catarse do Cacau, mas sempre procurando mostrar ao inseguro amante, ângulos diferentes dos fatos, ressaltando pequenos detalhes desprezados, de modo a infundir no amigo confiança e, principalmente, expectativas positivas quanto ao futuro do jovem casal. Mas, nessa empolgação toda, o Cacau já estava mais pra lá do que pra cá, inclusive recobrando sua habitual alegria. Mas só que a noitada já estava no fim. Garçons começavam a arrumar as mesas, casais procuravam refúgios nos recantos das ruas escuras, aquele ambiente típico de “fim de festa”. Só aí o Juca se deu conta de que o amigo o fizera “perder” a noite entre lamúrias infantis e dúvidas adolescentes. Meio puto, já se resignara, mas no exato momento em que pediu a conta, estourou uma briga feia no salão, com mesas e cadeiras voando, bêbado caindo pra todo lado e uma grande massa se afunilando na saída, bem próximo onde se encontravam os dois amigos. Quando um tiro ecoou, seco e grave, o que já era correria se transformou num estouro de boiada. Menos de um minuto depois, só ficaram no salão os dois brigões e uma meia dúzia de “deixa-disso”, num imenso esforço para conter os exaltados desafetos, um dos quais com o fumegante revólver na mão, ameaçando Deus e o mundo. Entre ambos, uma providencial mesa impedindo o corpo-a-corpo.
Juca e Cacau, alheios e interessados apenas no fim da confusão, pra pagarem a conta e irem embora, aguardavam em seu canto, fingindo que nem estavam vendo. Pra dar um tom de normalidade, pediram mais uma rodada. Nisso, chegam dois policiais, extremamente “educados”, trocam ríspidas palavras com os contendores e se embolam todos numa confusão dos diabos. Mais policiais chegam e entram na bagunça. Ninguém mais entendia nada. Com uma perna de mesa na mão, alguém abriu um rombo na cabeça de um policial que, em revide, sacou seu 38 e descarregou todo no oponente, mas sem atingir um só tiro, acredite se quiser.
Sei é que nessa confusão toda, os policiais conseguiram imobilizar o brigão que ferira o colega e saíram com ele, aos trancos e barrancos para a delegacia. Quanto ao outro, que tinha o berro na mão, não conseguiram desarmá-lo. Os policiais fizeram um círculo em torno dele, mas ninguém quis arriscar o pulo do gato. Abrindo caminho com ameaças e o dedo no gatilho ele foi se afastando até chegar à porta, passando bem rente à mesa do Juca e do Cacau, que nem se mexeram, tomando suas saideiras. Já na calçada, ele deu o último aviso:
- Olha aqui! Eu vou me embora, não quero mais confusão. Mas lembrem-se que ainda tenho cinco balas. Se algum filadaputa vier atrás de mim, pode ser polícia, não quero nem saber, meto bala. Agora vou pegar meu carro, vou para minha fazenda e deixo todo mundo em paz.
Dito isso, saiu andando de costas, mirando a porta do bar, com dois amigos ao lado, dando cobertura.
Quando o valentão já ia entrar no seu carro, no outro lado da rua, todos respirando aliviados, ninguém sabe porquê, o Cacau, que até então permanecera calado, imerso em seus próprios problemas, levanta-se, vai até a porta do bar e põe o dedo em riste, em direção ao homem armado e sapeca, para espanto geral:
- Ei valentão! Tá fugindo, é? Volte aqui covarde! Volte e lute como um homem!
Juca não acreditou no que tinha ouvido, mas num átimo de auto-defesa, saltou sobre o Cacau e em menos de cinco segundos o atirou para dentro do bar, escondendo-o debaixo do balcão, entre caixas vazias de cervejas e disse com energia:
- Fique calado aí, seu porra! Não dê nem um pio, se não vai se ver comigo!
Voltou lépido pra mesa, ao tempo em que o ex-fujão se postava na porta perguntando e apontando o revólver pra todo mundo:
- Voltei! Cadê o filadaputa que me chamou de covarde?
O dono do bar, bastante calmo:
- Não foi nada amigo! Foi só um bêbado que passava por aqui, mas já se foi. Vá em paz, que ninguém mais vai provocá-lo.
Meio desconfiado, o encrenqueiro se mandou e todos puderam agora, respirar aliviados. O Cacau então, sai de sob o balcão morrendo de rir, bêbado que só um gambá, como se tivesse contado uma piada. Temendo alguma agressão, Juca tratou logo de dar o fora, carregando o bebum, mas ficou tão puto que resolveu dar o troco.
Na estrada entre a cidade e o acampamento, havia vários mata-burros. Explico pra quem não é do ramo. Quando uma cerca de fazenda cruza uma estrada, o fazendeiro faz uma porteira, pra passagem de animais e cavaleiros e constrói um mata-burros, que vem a ser uma espécie de grade de madeira, sobre uma vala, no leito da estrada, para permitir a passagem de veículos. Devido à abertura da grade, os animais não se arriscam a passar nos mata-burros.
Pois bem, nessa noite de que vos falo, caía uma leve neblina ao final da farra, mas mesmo assim, o Juca, aproveitando-se do porre do Cacau, parou a Toyota em frente ao primeiro mata-burro e pediu pro bebum abrir a porteira.
- Porra! Passa no mata-burro, caralho!
O Cacau ainda tinha uma réstia de consciência que lhe sinalizava alguma coisa errada, mas ele não conseguia processar direito. Mas o Juca foi cruel:
- Não tá vendo que o mata-burro caiu, seu bêbado do caralho!!
- Puta que pariu!!
E lá foi o Cacau, trocando as pernas, abrir a porteira, enquanto o Juca, rindo como criança, passou pelo mata-burro, saboreando sua pequena travessura.
Lá pelo quarto ou quinto mata-burro, já encharcado da fina garoa, o Cacau arriscou outro lampejo de consciência:
- Caralho, Juca! Todos os mata-burros tão caídos, é? Que merda é essa, cara?
Quando chegaram ao acampamento, Cacau tiritando de frio, antes de entrar em seu barraco, soltou a última da noite:
- Juca, meu amigo, amanhã vou à cidade denunciar esse filadaputa que derrubou os mata-burros.
Juca ainda deu corda:
- Deixa pra lá, cara! Pode ser algum amigo nosso.
- Amigo, o caralho! Se eu pegar uma pneumonia, vou mandar dar cinco anos de cadeia pra esse corno. É... Eu sou fodão, cara!
Ao meio-dia do domingo, o Cacau, de ressaca até a unha do dedão do pé, procura o Juca:
- Você sabe porque minhas roupas estão molhadas?
Juca não ia deixar passar uma oportunidade dessas:
- Ué! Você não se lembra mesmo?
- Não, cara. Juro!
- Porra! Te deu uma caganeira, na volta, que tive de parar o carro cinco vezes, na chuva. Foi só isso.
- Puta que pariu! Preciso parar de beber... Não me lembro de nada, cara!
Esse era o Juca.
Outra vez, numa dessas voltas da cidade, quatro horas da manhã, todos dormindo, cheios de manguaça, Juca (ele sempre dirigia na volta) pegou, de propósito, uma trilhazinha no cerrado e saiu uns 50 metros da estrada. Parou o carro, acordou a bebaiada e sentenciou:
- Cambada! Estamos perdidos. Dormi no volante a acordei aqui. Não tenho a menor idéia de onde estamos.
Escuro que nem breu, cerrado denso, só as estrelas no céu, por orientação. Os bebuns acordaram e foi uma reclamação da porra. Cada um dava uma opinião e o Juca nem aí, só fazendo gozação. Sei que eu me aventurei a tentar voltar para a estrada, a pé, e me dei mal. Um galho de arbusto entrou no meu ouvido e quase atingiu o tímpano. Levei um tempão pra me recuperar, indo a vários profissionais.
Bom, mas voltando àquela fatídica noite, depois de se deliciar com sua brincadeira, o Juca voltou pra estrada, já dia claro, só que, ao invés de pegar pro acampamento, voltou pra cidade. Aí, fazer o que? Já que estávamos na cidade mesmo, acordamos o Palmiro*, dono de um boteco, que já veio com um violão, e foram mais oito horas de farra e diversão.
Nunca canso de repetir: ser geólogo foi um privilégio. Curti intensamente minha juventude, com muito trabalho, convivendo com a gente simples do interior, aproveitando o que a vida me pode oferecer e conhecendo as entranhas do Brasil. Nem tudo foram flores, mas se a ampulheta do tempo desvirasse, faria tudo de novo.
*Nome fictício de personagem real

quinta-feira, abril 03, 2008

Travessuras do Juca Mato Grosso I

O apelido vem de sua origem pantaneira. Juca Mato Grosso*, dos mais brilhantes profissionais com quem já trabalhei, dono de uma liderança inconteste, mas sobretudo, grande figura humana. Aquele tipo de pessoa que gostaríamos de ter sempre ao lado, em todos os momentos, pois com ele não tinha tempo ruim. Bem humorado, brincalhão, espirituoso, teatral e tremendo gozador. Sua presença era garantia de conversa agradável e papo descontraído. Lembro-me, por exemplo, do causo do "menino" que o acompanhava e que ele contava sempre com um proposital ar misterioso, revelando certo espanto e mostrando o braço arrepiado. Vamos relembrar juntos:
Estava o Juca fazendo check in no balcão de um hotel em Aquidauana, se não me falham os neurônios, quando o atendente lhe pergunta:
- Quer cama extra para o garoto, ou ele vai dormir na cama de casal com o Senhor?
Juca pensou ter entendido errado, já que não havia garoto algum com ele. Mas, ante o tom incisivo do moço, retrucou com seu sotaque pantaneiro:
- Que garoto rapaz? Tá falando comigo mesmo?
- Sim, com o Senhor mesmo. Cadê o garoto que entrou com o Senhor no hotel, agora há pouco?
Juca pensou estar sendo alvo de uma brincadeira.
- Que garoto rapaz? Tá ficando maluco ou tá de gozação comigo? Não está vendo que estou sozinho?
O atendente se mostrava tão surpreso quanto.
- Senhor José (José é o prenome do nosso personagem), não estou maluco, nem de brincadeira. O Senhor entrou por aquela porta acompanhado de um garoto. Qual o problema?
Vendo que o rapaz falava sério, Juca resolveu deixar tudo por conta de um equívoco e nada mais.
- Você se confundiu, meu jovem. Tudo bem, isso acontece. Mas eu cheguei aqui sozinho, como sozinho agora estou . Não havia ninguém comigo, muito menos um garoto.
- Me desculpe Senhor José. Mas havia, sim, um garoto de seus oito anos, sorridente, bem magrinho, cabelo em cuia, tipo índio, tênis, calção e camiseta azul e muito curioso. Chamou minha atenção o modo como ele o seguia, atrás e não de lado. Veio atrás do Senhor até o balcão e enquanto me agachei para apanhar o formulário, ele desapareceu. Pensei que teria ido ao banheiro, por isso perguntei.
Vendo que nunca sairiam da lengalenga, Juca resolveu dar o caso por encerrado, até porque já havia curiosos prestando atenção àquela conversa esquisita. Mas ficou intrigadíssimo. Por que diabos uma pessoa estranha inventaria tal história? Por via das dúvidas, enquanto se dirigia ao quarto, ele se virou várias vezes, repentinamente, tentando dar um flagra no moleque seguidor mas, não obtendo sucesso, debitou o episódio na conta de um estranho equívoco. Mas o causo marcou-lhe para sempre. Inúmeras vezes ouvi esse relato, para diferentes platéias e ambientes, e sempre registrei o mesmo espanto dos atenciosos ouvintes, para deleite do Juca, que aqui e acolá dava uns floreios de suspense.
Em noitadas de esbórnias, que não foram poucas, diga-se de passagem, quando voltávamos para casa "pé dentro, pé fora", ele costumava dizer, dedo em riste, dirigindo-se a um imaginário seguidor mirim:
- Olha aqui, moleque maroto, quer vir comigo, tudo bem, mas sem empurrar, por favor!
E ria um riso gostoso, de pura molecagem. E revelava também que em alguns momentos de preliminares sexuais, ao imaginar inocentes olhinhos curiosos o observando, várias vezes teve de interromper o interlúdio para se recompor, implorando em pensamento:
- Sai pra lá moleque, pelo amor de Deus! Isso não é coisa pra criança!
Nunca mais o guri foi visto, mas o Juca confessava, em momentos de retiro, quando "garrava a pensar nos seus", sentir estranhos arrepios que ele creditava à sua "presença invisivel ".
Acredita amigo? Não pergunte minha opinião, pois sou apenas contador e não decifrador de causo. Isso é com vocês. Diz um ditado, não sei se espanhol, argentino ou de que plagas castelhanas: "yo no creio en las brujas, pero que las hay, las hay". Pelo sim e pelo não, taí. Vendi do mesmo preço que comprei.
Falando em molecagem, no sentido de travessura, veja essa!
Estudante ainda, do último ano de geologia, durante uma prova de Geologia Econômica, um colega que esquecera o nome do mineral magnetita, de conhecidas propriedades magnéticas, passa ao Juca o seguinte pedido de socorro, em um papel amassado: "Qual é o nome daquele material magnético pra caralho?"
Juca respondeu na bucha: "Imã".
O colega ficou louco e devolveu a encomenda: "Mineral natural, animal!"
Quase tendo um orgasmo, Juca sapecou de volta: "Mineral, animal ou vegetal?"
Segundo seu relato, o cara quase engoliu o papel, de raiva. Mas devolveu irado, em letras garrafais: "SEU CÚ!"
Ao relembrar essa passagem, o Juca sempre tinha um ataque icontrolável de riso. Imaginem a cena!
Doutra feita, trabalhando na mesma área que a equipe de geofísica, Juca encontrou o esconderijo onde eles guardavam os carotes de água e os lanches, para o descanso do meio-dia. Sem pestanejar, ele colou uma folha de sua caderneta em cada carote, com os seguintes dizeres, em pincel atômico: "Cuidado! Contém mijo humano!" Pra dar mais veracidade, urinou num gurdanapo e deixou próximo aos vasos, pra que o aroma ficasse no ar.
Bom, há quem desminta, mas o que me disseram é que a equipe de geofísica passou toda a tarde sem beber água, por via das dúvidas, maldizendo o azar de terem dado mole pro Juca.
Muito cedo aposentou o martelo e foi explorar minas de gado no pantanal do seu belíssimo Mato Grosso. Mas deixou-nos, além do vazio técnico, o vazio de uma companhia inesquecível. Suas lembranças são patrimônio inalienável daqueles tempos tão sofridos e ao mesmo tempo tão saudosos, em que fazíamos geologia nos divertindo. No próximo post, relateremos mais travessuras desse matogrossense autêntico, feito laço de 12 braças.

* Nome fictício

quinta-feira, março 27, 2008

Tempo escuro

Às minhoquinhas inocentes, que fertilizam e despoluem o chão imundo da covardia dos homens.

No tempo do tempo escuro,
Tudo era muito triste,
Não sei se o amigo lembra...
O medo do dedo em riste,
Como tinha dedo em riste!
Transformaram – mágica funesta
Nossas manhãs brasileiras,
Nossas noites de seresta
Em raios, becos e muros...
Sequestraram a luz do sol,
Andávamos cabisbaixos
Fosse ralé, fosse escol,
Tudo com cara-de-tacho.

No tempo do tempo escuro,
Como sumia gente!
Não sei se o amigo lembra...
Sumia assim, de repente
Do supermercado,
Do posto de gasolina,
Em plena sala de aula,
Dos braços do namorado,
Do cinema, da cantina,
De repente, atropelado
No semáforo da esquina...
Como sumia gente!
Não sei se o amigo lembra...

No tempo do tempo escuro
Gastei minha juventude,
Como um velho sem cuidados.
Comprometi a saúde
Nas insônias, pesadelos,
Nas neuroses, nos cigarros...
E como cantei amigo!
Cantei, mesmo com os pigarros!
Cantei a cantiga santa
Que os males todos espanta
E esconjurei todos eles
E amarrei todos eles,
Tiveram de respeitar
Os dós da minha garganta.

No tempo do tempo escuro,
Não pudemos fazer nada,
Só beber.
Como bebemos amigo!
Não sei se o amigo lembra...
Bebíamos por tudo.
De raiva, de dor, de impotência,
De impertinência.
Ao que foi e não voltou...
Ao que não deu notícia
Ao que se encantou
Ao que saiu no jornal,
Ao que fugiu,
Ao que se enforcou.
Bebemos até fazer bico
E engolimos todos os sapos,
Pagamos todos os micos
E brindamos às minhoquinhas...
E ficamos rebeldes
E xingamos eles:
Vagabundos! Fidapestes!
E nem tivemos medo do cassetete!
Enfrentamos eles tete-a-tete.
Na solidão dos botecos,
Como ficamos valentes!

No tempo do tempo escuro,
Morríamos muito cedo,
Não sei se o amigo lembra...
Contraímos cirrose, hepatite, asma.
Por isso esse que vos fala
Não sou eu, é meu fantasma
Que saiu da laje fria
E invadiu a tela esguia
Do seu monitor de plasma,
Só pra lhe lembrar que o sol
Que hoje doura seus dias,
Tem sangue dos Alexandres
Tem os filhos das Marias
Que morreram torturados
Nos porões e nos monturos,
Nos calabouços de horror,
Esquecidos e humilhados,
No tempo do tempo escuro.

Brasília, mar/2008

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Síndrome da Rua Tutóia (3)

Última parte - leia as partes 1 e 2 nos posts anteriores

Os fatos aqui narrados foram escritos há quase 15 anos, mas aconteceram há mais de 30 anos, quando o autor cursava o 2º ano de Geologia, na USP. Ficção?! Realidade?! Na verdade, a pergunta é se o Brasil de então era ficção ou realidade... Leia este singelo relato, floreado com tons de melancolia, medo e sonhos acalentados e atormentados que ainda hoje convivem com o autor. E tire suas próprias conclusões.

(Continuação...)

Por consideração, amigo, vou poupar-lhe detalhes mórbidos. Não valem a pena. Mas se você pensa que já viu tudo o que um ser humano pode descer na escada da moralidade, saiba que somente quem presenciou uma sessão na sala do crucifixo e na do pau-de-arara, no DOI-CODI, pode afirmar que conhece o fundo do poço da baixeza humana. Quando alguém lhe falar em porões da ditadura, amigo, por favor, reze pelas almas que ali penaram, covardemente torturadas, humilhadas no limite da dignidade da raça. A tudo me fizeram ver, retirando os capuzes daqueles mortos-vivos, novos Cristos, que certamente questionavam, em sua agonia:
-Pai, porque me abandonastes?
Saí daquelas salas, completamente abalado em minha estrutura nervosa, num misto de raiva, medo e, principalmente, tomado de uma imensa compaixão por aquelas vítimas indefesas, semimortas. Ainda não completara 20 anos. Não estava preparado para aquela pressão psicológica,
Nas celas, aconteceu-me um fenômeno interessante. Em conseqüência do abalo nervoso em que me encontrava, perdi o controle dos nervos faciais. Os carrascos me introduziam em cubículos onde uns trapos humanos jaziam, com os corpos dilacerados pela tortura, levantavam-lhes os capuzes e pergutavam:
-Conhece?
Ao abrir a boca para responder, eu ria involuntariamente. Começaram a me tratar de risadinha e isto me constrangia e humilhava, mas estava fora do meu controle. Anos mais tarde, soube de um psicólogo que este é um fenômeno comum, de fundo nervoso, que pode acometer qualquer um, em circunstâncias como aquelas.
Na última cela, quatro pessoas em pé, encapuzadas, todas se apoiando nas grades, visivelmente debilitadas. Havia uma única cadeira na cela, vazia, onde me fizeram sentar e esperar um pouco. Olhando as figuras de pé, reconheci o Jota[1]. Meu coração disparou, não sei como não desmaiei. Minha reação, quase instintiva, foi levantar e oferecer-lhe a cadeira, que ele aceitou, sem dizer uma única palavra. Mas quando o brutamonte voltou, ficou histérico com o que viu. Entrou espumando na cela, deu-me um pescoção, que me jogou de encontro aos ferros da grade, me cortando o lábio, puxou o Jota pela camisa, deu-lhe vários chutes nas pernas e aplicações de cassetetes na barriga. Ele nem gritava mais. Só gemia e chorava baixinho, num lamento de cortar o coração.
O interrogatório? Foi um massacre. Psicologicamente, eu já estava arrasado. Nem conseguia raciocinar direito. Não precisei mentir, porque a maioria das perguntas era sobre fatos e pessoas por mim desconhecidos. Mas, quando me mostraram slides onde eu aparecia na missa de sétimo dia do Marquinho e participando em reuniões do CEPEGE, o meu interrogador de ar paternalista, entre seus intermináveis goles de leite, sentenciou:
-Muito bem Baianinho – ele usava o meu nome de guerra na escola –vamos checar suas respostas. Pelos nossos controles, você é um contumaz agitador na Geologia. Vamos ficar de olho. Dentro de um mês, você e sua república estarão vigiados 24 horas por dia. Não saia de São Paulo e nem pense em fugir. Se, dentro de um mês, você não for reconvocado, estará, em princípio, livre. Nem preciso lhe lembrar que você não viu nem ouviu nada aqui dentro. Apague esse dia da sua vida, porque se der com a língua nos dentes, nós saberemos e não vamos gostar. Um conselho: não participe do CEPEGE. Aquilo é um ninho de agitadores. Boa sorte. Daqui a pouco ordenarei sua soltura.
E lá se vão vinte anos. Que fossem mil! Jamais esquecerei a forma humilhante como me “soltaram”. Cerca de 20h00, noite fria. Não soube dos demais colegas desde o interrogatório da manhã. Estariam também saindo comigo? Puxa pra lá, puxa pra cá, roda, passa a mão, risadas, gozações. Um tempão parado, esperando o momento adequado para a cena final. De repente alguém dá o sinal:
-Agora!
Um portão de ferro se abre rapidamente, o capuz é puxado com violência, um chute na bunda com a sola do coturno, batida de portão e o tombo em pleno asfalto da Rua Tutóia. Livre. Um pequeno corte na cabeça.
Amigo, dá pra imaginar como foram os dias seguintes, até se completar um mês? Os sustos, o constrangimento, as fugas das perguntas, o medo de falar, o sono agitado... Enfim, lá se vão vinte anos.
Quando me levantei em plena Rua Tutóia, livre, olhei para um lado e para o outro e segui no rumo da Paulista. Nem vi o sangue que descia da cabeça. Parei num bar e tomei um café. Nesse trajeto, compreendi que eu jamais sairia daquela rua. Compreendi que aquela fora uma experiência definitiva. É uma rua muito comprida. Ela não tem fim. Há vinte anos transito por seus labirintos, suas calçadas, sem encontrar a saída.
No hospital, senti grande alívio. O corpo foi entorpecendo e as lembranças foram se embaçando. Eu estava dormindo. Ou morrendo. Ainda ouvi alguém dizer:
-A hemorragia foi controlada. Está tudo sob controle.
Amigo, se fores a São Paulo, cuidado! Quando vires uma placa indicando “Rua Tutóia”, domina o calafrio, faze um Pai Nosso, reza pelas almas que ali agonizaram, desvia e segue em paz. Posso estar morrendo e esse é meu último pedido.
Antes de dormir, ou morrer, vislumbrei um imenso mapa, segurado por quatro anjos, me sorrindo, mansamente. Era um mapa de fundo branco, onde se destacava uma rua, muito comprida e tortuosa. Essa rua começava em 1973, com uma coronhada de metralhadora no peito do Jota e terminava em 1994, em Recife, com a lâmina na mão do pivete, apontada para uma placa que trazia, em letras garrafais: SAÍDA. Era o fim do labirinto. Acho que sorri, aliviado. Os quatro anjos enrolaram o mapa e foram desaparecendo muito lentamente, até sumirem.
(Fim...)

[1] Jota e Marquinho – nomes fictícios de personagens reais