segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Síndrome da Rua Tutóia (3)

Última parte - leia as partes 1 e 2 nos posts anteriores

Os fatos aqui narrados foram escritos há quase 15 anos, mas aconteceram há mais de 30 anos, quando o autor cursava o 2º ano de Geologia, na USP. Ficção?! Realidade?! Na verdade, a pergunta é se o Brasil de então era ficção ou realidade... Leia este singelo relato, floreado com tons de melancolia, medo e sonhos acalentados e atormentados que ainda hoje convivem com o autor. E tire suas próprias conclusões.

(Continuação...)

Por consideração, amigo, vou poupar-lhe detalhes mórbidos. Não valem a pena. Mas se você pensa que já viu tudo o que um ser humano pode descer na escada da moralidade, saiba que somente quem presenciou uma sessão na sala do crucifixo e na do pau-de-arara, no DOI-CODI, pode afirmar que conhece o fundo do poço da baixeza humana. Quando alguém lhe falar em porões da ditadura, amigo, por favor, reze pelas almas que ali penaram, covardemente torturadas, humilhadas no limite da dignidade da raça. A tudo me fizeram ver, retirando os capuzes daqueles mortos-vivos, novos Cristos, que certamente questionavam, em sua agonia:
-Pai, porque me abandonastes?
Saí daquelas salas, completamente abalado em minha estrutura nervosa, num misto de raiva, medo e, principalmente, tomado de uma imensa compaixão por aquelas vítimas indefesas, semimortas. Ainda não completara 20 anos. Não estava preparado para aquela pressão psicológica,
Nas celas, aconteceu-me um fenômeno interessante. Em conseqüência do abalo nervoso em que me encontrava, perdi o controle dos nervos faciais. Os carrascos me introduziam em cubículos onde uns trapos humanos jaziam, com os corpos dilacerados pela tortura, levantavam-lhes os capuzes e pergutavam:
-Conhece?
Ao abrir a boca para responder, eu ria involuntariamente. Começaram a me tratar de risadinha e isto me constrangia e humilhava, mas estava fora do meu controle. Anos mais tarde, soube de um psicólogo que este é um fenômeno comum, de fundo nervoso, que pode acometer qualquer um, em circunstâncias como aquelas.
Na última cela, quatro pessoas em pé, encapuzadas, todas se apoiando nas grades, visivelmente debilitadas. Havia uma única cadeira na cela, vazia, onde me fizeram sentar e esperar um pouco. Olhando as figuras de pé, reconheci o Jota[1]. Meu coração disparou, não sei como não desmaiei. Minha reação, quase instintiva, foi levantar e oferecer-lhe a cadeira, que ele aceitou, sem dizer uma única palavra. Mas quando o brutamonte voltou, ficou histérico com o que viu. Entrou espumando na cela, deu-me um pescoção, que me jogou de encontro aos ferros da grade, me cortando o lábio, puxou o Jota pela camisa, deu-lhe vários chutes nas pernas e aplicações de cassetetes na barriga. Ele nem gritava mais. Só gemia e chorava baixinho, num lamento de cortar o coração.
O interrogatório? Foi um massacre. Psicologicamente, eu já estava arrasado. Nem conseguia raciocinar direito. Não precisei mentir, porque a maioria das perguntas era sobre fatos e pessoas por mim desconhecidos. Mas, quando me mostraram slides onde eu aparecia na missa de sétimo dia do Marquinho e participando em reuniões do CEPEGE, o meu interrogador de ar paternalista, entre seus intermináveis goles de leite, sentenciou:
-Muito bem Baianinho – ele usava o meu nome de guerra na escola –vamos checar suas respostas. Pelos nossos controles, você é um contumaz agitador na Geologia. Vamos ficar de olho. Dentro de um mês, você e sua república estarão vigiados 24 horas por dia. Não saia de São Paulo e nem pense em fugir. Se, dentro de um mês, você não for reconvocado, estará, em princípio, livre. Nem preciso lhe lembrar que você não viu nem ouviu nada aqui dentro. Apague esse dia da sua vida, porque se der com a língua nos dentes, nós saberemos e não vamos gostar. Um conselho: não participe do CEPEGE. Aquilo é um ninho de agitadores. Boa sorte. Daqui a pouco ordenarei sua soltura.
E lá se vão vinte anos. Que fossem mil! Jamais esquecerei a forma humilhante como me “soltaram”. Cerca de 20h00, noite fria. Não soube dos demais colegas desde o interrogatório da manhã. Estariam também saindo comigo? Puxa pra lá, puxa pra cá, roda, passa a mão, risadas, gozações. Um tempão parado, esperando o momento adequado para a cena final. De repente alguém dá o sinal:
-Agora!
Um portão de ferro se abre rapidamente, o capuz é puxado com violência, um chute na bunda com a sola do coturno, batida de portão e o tombo em pleno asfalto da Rua Tutóia. Livre. Um pequeno corte na cabeça.
Amigo, dá pra imaginar como foram os dias seguintes, até se completar um mês? Os sustos, o constrangimento, as fugas das perguntas, o medo de falar, o sono agitado... Enfim, lá se vão vinte anos.
Quando me levantei em plena Rua Tutóia, livre, olhei para um lado e para o outro e segui no rumo da Paulista. Nem vi o sangue que descia da cabeça. Parei num bar e tomei um café. Nesse trajeto, compreendi que eu jamais sairia daquela rua. Compreendi que aquela fora uma experiência definitiva. É uma rua muito comprida. Ela não tem fim. Há vinte anos transito por seus labirintos, suas calçadas, sem encontrar a saída.
No hospital, senti grande alívio. O corpo foi entorpecendo e as lembranças foram se embaçando. Eu estava dormindo. Ou morrendo. Ainda ouvi alguém dizer:
-A hemorragia foi controlada. Está tudo sob controle.
Amigo, se fores a São Paulo, cuidado! Quando vires uma placa indicando “Rua Tutóia”, domina o calafrio, faze um Pai Nosso, reza pelas almas que ali agonizaram, desvia e segue em paz. Posso estar morrendo e esse é meu último pedido.
Antes de dormir, ou morrer, vislumbrei um imenso mapa, segurado por quatro anjos, me sorrindo, mansamente. Era um mapa de fundo branco, onde se destacava uma rua, muito comprida e tortuosa. Essa rua começava em 1973, com uma coronhada de metralhadora no peito do Jota e terminava em 1994, em Recife, com a lâmina na mão do pivete, apontada para uma placa que trazia, em letras garrafais: SAÍDA. Era o fim do labirinto. Acho que sorri, aliviado. Os quatro anjos enrolaram o mapa e foram desaparecendo muito lentamente, até sumirem.
(Fim...)

[1] Jota e Marquinho – nomes fictícios de personagens reais

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