Segunda parte - leia post anterior
Os fatos aqui narrados foram escritos há quase 15 anos, mas aconteceram há mais de 30 anos, quando o autor cursava o 2º ano de Geologia, na USP. Ficção?! Realidade?! Na verdade, a pergunta é se o Brasil de então era ficção ou realidade... Leia este singelo relato, floreado com tons de melancolia, medo e sonhos acalentados e atormentados que ainda hoje convivem com o autor. E tire suas próprias conclusões.
(Continuação...)
Quando saímos encapuzados, algemados uns aos outros, em fila indiana, jogados no fundo da Rural, que subiu de ré na calçada, encostando a traseira na porta da casa, cobertos com um grosso cobertor de lã e com a promessa de que iríamos ser mortos e atirados no Tietê, naquela madrugada gelada, não foi propriamente medo o que senti. Quer dizer, é claro que senti medo, mas não era só medo. Era um imenso vazio, uma imensa sensação de impotência. Durante todo o trajeto, fui pensando na família, meu pai, minha mãe, meus irmãos... Bateu uma saudade intraduzível, um desespero pela possibilidade de dar-lhes causa a sofrimentos atrozes. Rezei as poucas orações de que me lembrava.
Tudo vai se consumar agora, avisaram os seqüestradores. Havíamos chegado ao destino. A Rural parou e as portas da frente se abriram. Sob o cobertor, apertamo-nos desesperadamente as mãos. Era o único gesto que tínhamos liberdade para fazer. No entanto, quantas mensagens nos transmitimos por aquelas mãos nervosas! Nunca senti depois, em toda a minha vida, tanta solidariedade num único gesto. Uma solidariedade resgatadora, definitiva, que até hoje ainda sinto.
Por isso é que quando nos fizeram descer e avisaram: -“É agora que vocês vão se foder, seus comunistas de uma figa!”, havia em nós um quê de heroísmo, um destemor surpreendente. Nem mesmo quando tiros foram dados para o ar, algemados que estávamos uns aos outros, ninguém deteve os passos, ninguém transmitiu qualquer vacilo. Caminhávamos para o que desse e viesse, numa resignada valentia. A única alteração em nossa marcha, que não sabíamos para onde, foi quando alguém, provavelmente o primeiro da fila, que não era eu, levou um chute na bunda e caiu. Quase caímos todos, para delírio da sádica platéia.
Rua Tutóia. Esse endereço lhe diz alguma coisa, amigo? Você não sente certa densidade no ar, à simples menção do nome? Não sente certo pavor, um arrepio? Pois foi nessa rua que nos despejaram da Rural. Mais precisamente, nas dependências do DOI-CODI, órgão sinistro da repressão, nos anos 70, que tem cheiro de cemitério, como já disse. Isso, eu estou dizendo hoje, mas na hora eu não sabia. Sabia apenas que estávamos numa unidade da repressão, nada mais. Fui saber que era a Rua Tutóia, quando, 18 horas após, levei um chute na bunda e caí bem no meio da dita cuja. Livre.
Solidariedade, amigo, é mais do que uma atitude. É um sentimento concreto. Que você sente no corpo, como um casaco de frio, por exemplo. Pois era esse o sentimento que eu sentia, quando os colegas, nos dias seguintes, puxavam conversa, um pouco desajeitados, falando baixinho e olhando de lado, temerosos:
-Torturaram vocês? É verdade que o Jota[1] apanhou muito diante de vocês? E como vocês foram presos?
Eram mais que perguntas, na verdade. Eram as únicas expressões possíveis, de uma solidariedade impotente, mas humana, revoltada, mas contida. As respostas, lacônicas e monossilábicas, nos uniam a todos na mesma indignação, no mesmo medo, na mesma raiva. Nos subvertiam. Mas havia nas expressões dos colegas um calor que ainda me queima.
O barulho da sirene me chegava tão longe, que mais parecia o ressoar de um sino de bronze, desses do interior, que ficam zunindo nos ouvidos, pelo resto da vida, longínquo, saudoso, anunciando missas, casamentos e enterros. Afinal, para onde estavam me levando? Pro hospital ou pra Rua Tutóia? As idéias não estavam muito claras. Eu delirava. Quem segurava minha cabeça era um enfermeiro ou aquele elegante agente que me interrogava, dando conselhos de pai para filho, enquanto sorvia, o tempo todo, pequenos goles de um copo de leite gelado? Alto, muito magro, cor negra, andar cadenciado, fala pausada e clara, ar tranqüilo, procurava me infundir confiança:
-Meu jovem, ouça meus conselhos. A luta de vocês é louvável, porque todo jovem é idealista, quer mudar o mundo. Eu também fui assim. Mas os estudantes não estão percebendo que são apenas massa de manobra do movimento comunista internacional. São buchas de canhão, usadas para causar turbulência na frente, enquanto os verdadeiros mentores estão por trás, na clandestinidade, subvertendo a ordem, enfrentando o regime. Por isso, vocês estão levando a pior. O poder está conosco e não vamos entregá-lo, sem muito derramamento de sangue. Compreendeu, meu jovem?
Uma golada de leite, sempre oferecido e recusado.
-Portanto, não tenha nenhuma dúvida de que nós damos as cartas nesse jogo, certo? A regra do jogo é muito simples: nós mandamos e vocês obedecem. Só isso. Queremos saber algumas coisas de vocês. Coisas banais, sem importância. Apenas para nos ajudar a montar alguns quebra-cabeças. Vou lhe fazer perguntas simples e diretas e você vai responder. Tudo muito rápido. Tenha a certeza de que nós somos de paz e não defendemos a violência contra o ser humano. Porém, às vezes, alguns colegas de vocês nos obrigam a medidas mais enérgicas, porque se recusam a falar. Então, não nos deixam escolha. Mas a culpa é deles, uns trouxas. É preciso que você entenda, portanto, que deve responder sempre o que souber. Isso é pelo bem do nosso país.
-Um copinho de leite? Faz bem pro estômago, sabia?
-Bem, mas como lhe dizia, vamos tomar, em instantes, seu depoimento. Antes, vou mandar lhe servir uma refeição e depois, vamos dar uma circulada por nossas salas de trabalho e pelas celas, pra ver se você reconhece algumas pessoas, do nosso interesse. Não se preocupe, é coisa rápida.
Amigo, pensa que eu consegui comer? Trouxeram-me uma quentinha, mas eu quase vomitei só de sentir cheiro de comida. O nervosismo, pelas visitas que faria em seguida, me embrulhava o estômago, que nem água descia. Ao retirar a marmita, o funcionário ainda soltou uma piadinha:
-Saudades da comidinha da mamãe, neném?
Tudo vai se consumar agora, avisaram os seqüestradores. Havíamos chegado ao destino. A Rural parou e as portas da frente se abriram. Sob o cobertor, apertamo-nos desesperadamente as mãos. Era o único gesto que tínhamos liberdade para fazer. No entanto, quantas mensagens nos transmitimos por aquelas mãos nervosas! Nunca senti depois, em toda a minha vida, tanta solidariedade num único gesto. Uma solidariedade resgatadora, definitiva, que até hoje ainda sinto.
Por isso é que quando nos fizeram descer e avisaram: -“É agora que vocês vão se foder, seus comunistas de uma figa!”, havia em nós um quê de heroísmo, um destemor surpreendente. Nem mesmo quando tiros foram dados para o ar, algemados que estávamos uns aos outros, ninguém deteve os passos, ninguém transmitiu qualquer vacilo. Caminhávamos para o que desse e viesse, numa resignada valentia. A única alteração em nossa marcha, que não sabíamos para onde, foi quando alguém, provavelmente o primeiro da fila, que não era eu, levou um chute na bunda e caiu. Quase caímos todos, para delírio da sádica platéia.
Rua Tutóia. Esse endereço lhe diz alguma coisa, amigo? Você não sente certa densidade no ar, à simples menção do nome? Não sente certo pavor, um arrepio? Pois foi nessa rua que nos despejaram da Rural. Mais precisamente, nas dependências do DOI-CODI, órgão sinistro da repressão, nos anos 70, que tem cheiro de cemitério, como já disse. Isso, eu estou dizendo hoje, mas na hora eu não sabia. Sabia apenas que estávamos numa unidade da repressão, nada mais. Fui saber que era a Rua Tutóia, quando, 18 horas após, levei um chute na bunda e caí bem no meio da dita cuja. Livre.
Solidariedade, amigo, é mais do que uma atitude. É um sentimento concreto. Que você sente no corpo, como um casaco de frio, por exemplo. Pois era esse o sentimento que eu sentia, quando os colegas, nos dias seguintes, puxavam conversa, um pouco desajeitados, falando baixinho e olhando de lado, temerosos:
-Torturaram vocês? É verdade que o Jota[1] apanhou muito diante de vocês? E como vocês foram presos?
Eram mais que perguntas, na verdade. Eram as únicas expressões possíveis, de uma solidariedade impotente, mas humana, revoltada, mas contida. As respostas, lacônicas e monossilábicas, nos uniam a todos na mesma indignação, no mesmo medo, na mesma raiva. Nos subvertiam. Mas havia nas expressões dos colegas um calor que ainda me queima.
O barulho da sirene me chegava tão longe, que mais parecia o ressoar de um sino de bronze, desses do interior, que ficam zunindo nos ouvidos, pelo resto da vida, longínquo, saudoso, anunciando missas, casamentos e enterros. Afinal, para onde estavam me levando? Pro hospital ou pra Rua Tutóia? As idéias não estavam muito claras. Eu delirava. Quem segurava minha cabeça era um enfermeiro ou aquele elegante agente que me interrogava, dando conselhos de pai para filho, enquanto sorvia, o tempo todo, pequenos goles de um copo de leite gelado? Alto, muito magro, cor negra, andar cadenciado, fala pausada e clara, ar tranqüilo, procurava me infundir confiança:
-Meu jovem, ouça meus conselhos. A luta de vocês é louvável, porque todo jovem é idealista, quer mudar o mundo. Eu também fui assim. Mas os estudantes não estão percebendo que são apenas massa de manobra do movimento comunista internacional. São buchas de canhão, usadas para causar turbulência na frente, enquanto os verdadeiros mentores estão por trás, na clandestinidade, subvertendo a ordem, enfrentando o regime. Por isso, vocês estão levando a pior. O poder está conosco e não vamos entregá-lo, sem muito derramamento de sangue. Compreendeu, meu jovem?
Uma golada de leite, sempre oferecido e recusado.
-Portanto, não tenha nenhuma dúvida de que nós damos as cartas nesse jogo, certo? A regra do jogo é muito simples: nós mandamos e vocês obedecem. Só isso. Queremos saber algumas coisas de vocês. Coisas banais, sem importância. Apenas para nos ajudar a montar alguns quebra-cabeças. Vou lhe fazer perguntas simples e diretas e você vai responder. Tudo muito rápido. Tenha a certeza de que nós somos de paz e não defendemos a violência contra o ser humano. Porém, às vezes, alguns colegas de vocês nos obrigam a medidas mais enérgicas, porque se recusam a falar. Então, não nos deixam escolha. Mas a culpa é deles, uns trouxas. É preciso que você entenda, portanto, que deve responder sempre o que souber. Isso é pelo bem do nosso país.
-Um copinho de leite? Faz bem pro estômago, sabia?
-Bem, mas como lhe dizia, vamos tomar, em instantes, seu depoimento. Antes, vou mandar lhe servir uma refeição e depois, vamos dar uma circulada por nossas salas de trabalho e pelas celas, pra ver se você reconhece algumas pessoas, do nosso interesse. Não se preocupe, é coisa rápida.
Amigo, pensa que eu consegui comer? Trouxeram-me uma quentinha, mas eu quase vomitei só de sentir cheiro de comida. O nervosismo, pelas visitas que faria em seguida, me embrulhava o estômago, que nem água descia. Ao retirar a marmita, o funcionário ainda soltou uma piadinha:
-Saudades da comidinha da mamãe, neném?
(termina na próxima postagem...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário