terça-feira, outubro 28, 2008

Nos tempos do rádio II

Leitinho pra chaninha, no rádio não pode!

Dia de domingo no acampamento, todo mundo na cidade, os relógios lentos... E aquele silêncio que chega a doer o ouvido! Depois de todos os cafezinhos do mundo, não tem jeito, só tomando uma! E aí a solidão se agiganta e traz consigo uma saudade intraduzível e aí o Clóvis* não resistia: ligava o rádio e pedia ao operador da Sede pra botar sua esposa na maricota (estão lembrados da maricota? Se não, leiam post anterior).

- Okapa, Dr. Clóvis! Um momentinho, que vou verificar se ela está em casa, câmbio!

Depois de feita a conexão caseira, o Clóvis desfiava toda sua saudade, naturalmente sabendo que o Dentel e o resto do Brasil estavam na escuta, naquela frequência, claro. Geralmente as conversas eram formais, tipo, que dia você vem, estou bem, as crianças estão com saúde, o Silvinho se apresentou no coral da escola, foi o máximo, só faltou você, sua mãe deu notícias, está tudo bem, até hoje a CPRM não depositou as diárias... E por aí afora.

Meninos, eu ouvi! Naquele dia, estava no canal 5, quando o Clóvis comunicou à sua Nêga (era assim que ele chamava carinhosamente sua querida Lizete*), o adiamento de seu retorno:

- Puxa Nêga! Preciso ficar mais uns dez dias... deu bronca aqui... Zeca* não pode vir, tenho de esperar, câmbio!

- Ah, não Nêgo! Esqueceu o casamento do Beto? Tu não disse que viria dia 20? Hoje são 18... Tu tem de vir, Nêgo, dá um jeito aí! Por favor, câmbio!

- Não dá Nêga! O filho dele (do Zeca) está internado, o Diego... Suspeita de meningite... Coisa séria, câmbio!

Silêncio... A Nêga caíra em si da gravidade da situação e entendeu, comovida, a solidariedade do marido. Mas, quando retornou, algo em sua voz traíra sua decepção, seus planos desfeitos:

- Tá Nêgo! Entendido... Fazer o quê, né? Câmbio!

Agora foi o maridão quem se derreteu todo. Certamente tinha tomado mais um gole, quando atiçou os desejos guardados da esposa saudosa:

- Não fica assim Neguinha, só uns diazinhos a mais! O que foi heim? A chaninha tá com saudade, é? Câmbio!

Chaninha, era o diminutivo de bichana, uma gatinha que eles criavam. Mas quem é o juiz que vai julgar o verdadeiro sentido das palavras de um casal apaixonado? Acho até que a Lizete tinha tomado umas cervejinhas também, pois respondeu toda desinibida, jogando gasolina na fogueira:

- Claro Nêgo! Chaninha tá sem leitinho há 20 dias... Tu sabe que ela só toma leite quando tu tá aqui, né?

Como é lindo o amor dos animais, não?! Mas a temperatura foi subindo e todo mundo na escuta, se deliciando:

- Calma Neguinha, no dia da minha chegada, vou dar uma mamadeira cheinha de leitinho... A chaninha vai transbordar...

Mas quem transbordou foi o Dentel. Depois de provocar aquela interferência infernal, interrompendo as comunicações, um certo operador Lucena, não sem antes fornecer patente, matrícula e lotação, lembrou ao entusiasmado casal que a concessão da CPRM era de caráter público e só deveria ser utilizada no estrito interesse da Companhia, etc, etc, etc.... Aquilo que já sabemos.

Quando os ruídos cessaram, após o sabão, um constrangido operador da Sede perguntou ao leitoso Dr. Clóvis:

- Atento Dr. Clóvis! Não tô conseguindo contato com D. Lizete pela maricota. Telefone ocupado... Continuo tentando? Câmbio!

Ou o Clóvis, p. da vida, terminou de mamar a garrafa que certamente estava ao lado, ou mandou alguma mensagem cifrada, que só ele saberia traduzir:

- Negativo Marcelo*, negativo! Quando conseguir, apenas diga a D. Lizete que estou levando o adubo da macieira. Chego no dia 28. Que ela molhasse bem a cova durante o dia, pois o adubo deve ser aplicado à noite.

Pois é... Marcelo, muito prestativo, ainda quis ser gentil:

- Positivo Dr. Clóvis! Se o senhor quiser, posso ver esse adubo por acá, hem! Basta me dar o nome... Tenho um irmão que trabalha com plantas, câmbio!

Naturalmente, o Clóvis agradeceu a presteza, mas tratava-se de adubo especial que ele ia levar.
O marcante dessa lembrança não é a natureza do diálogo entre Clóvis e Lizete, algo digno de cândidos adolescentes, nos dias atuais. Mas, ele nos remete à violência da vida sob censura. Ao perigo de ser mal interpretado e das consequências morais e até penais, dependendo do caso. À auto-censura que muitas vezes nos impúnhamos, a pior de todas as censuras.

Entretanto, a evocação dessa inocente impertinência do saudoso Clóvis é uma homenagem aos geólogos que tanto sacrificaram suas famílias, com ausências desestruturadoras, espinhosas, no exercício de pesquisas cheias de ciências e impiedades com o relacionamenrto familiar. Ausências, muitas delas, que se tornaram irreversíveis. Que a nova geração de geólogos saiba que a geologia do Brasil foi desvendada a custa de sacrifícios inimagináveis, na era do palm top e do iphone! Que foi preciso enfrentar a ditadura militar e a logística de um país litorâneo, esquecido de seus rincões longínquos. E que muitos desses velhinhos, que já penduraram os martelos, o fizeram sob pesos terríveis de solidão, de um passado descuidado dos laços afetivos, aos olhos indiferentes da sociedade. Mas com a consciência de ter ajudado a despertar o gigante adormecido em berço esplêndido, para seu inexorável futuro mineral. Nem tudo foram rosas, nem tudo foram espinhos. Mas, nada foi fácil.

* Nomes fictícios
(Leia mais sobre fatos pitotescos e curiosidades dos tempos das comunicações por rádio, durante a ditadura militar, no post anterior)

sexta-feira, outubro 24, 2008

Nos tempos do rádio I

Censura em prosa e verso

Das lembranças marcantes dos tempos em que fazíamos geologia desbravando os interiores do Brasil, qual bandeirantes do século XX, uma das mais fortes é a dos rádios transmissores. Com eles, falávamos com o mundo, fosse dos confins do Amapá, fosse do interior de Goiás. Telefone era coisa rara e somente disponíveis nas cabines telefônicas, graças à gentileza de simpáticas telefonistas, muito mais simpáticas do que telefonistas, na maioria das vezes. Nossa valência era mesmo o velho e bom rádio de cinco canais. Levávamos sempre um de reserva, pois não nos arriscávamos a ficar isolados do mundo. Quem acompanha minhas despretensiosas narrativas, há de se lembrar de um causo em que narro o sufoco para salvar o rádio do projeto Palmeirópolis, durante inesperado incêndio no acampamento.

Pois é... Sem o rádio, seria como ir para o campo hoje, sem o celular. Dá pra imaginar? Tinha os fixos, que eram, na verdade poderosas estações de comunicação, e os portáteis, menores e mais leves, que transportávamos em pequenas mochilas e que tinham incrível poder de transmissão, bastando, para isso, estender pequena antena, em direção perpendicular à reta imaginária do local até a estação receptora. Certa vez, em emergência, estendemos uma antena desse tipo dentro do rio Ipitinga, usando duas voadeiras e, graças a isso, acionamos socorro, em Macapá, para um peão que tivera o dedo decepado pela hélice de um motor de popa, no extremo sul do Estado, fronteira com o Pará (veja o post Adoráveis barrigadas).

Tínhamos o sistema oficial de comunicação por rádio, cuja base eram as mensagens por formulários, denominados radiogramas. Os radiogramas eram lidos por operadores práticos, que transmitiam, geralmente, boletins de andamento de serviços e pedidos de material. Como as transmissões não eram límpidas, pelo contrário, sempre carregadas de muito ruído, o operador normalmente ditava a mensagem por códigos: alfa, era a letra "a"; beta a letra "b"; charles, o "c" e assim por diante. Dinheiro era QSJ. Ficar na espera, era QAP e tome sopa de letras!. Assim como fazem hoje, os motoristas de táxi.

Domingo nos acampamentos dos projetos era dia de descanso e melancolia. Geralmente, suspendiam-se as atividades de campo e cada um buscava o lazer possível, a depender de onde se estava. E aí, batia a saudade da família, da namorada, dos amigos, enfim, aquele banzo! O jeito era minimizar o estrago com uma branquinha, que ninguém é de ferro e reunir a família, à distância, usando o rádio e a maricota. Calma que eu explico! Maricota, era uma geringonça, acoplada ao rádio da sede, que, ao comando do operador, transferia a comunicação para um aparelho telefônico. E, dessa forma esquisita, sem privacidade, já que o operador e o resto do Brasil que estivesse na frequência a tudo ouvia, era possível matar a saudade da patroa, da gurizada e saber das últimas. O diabo é que tinha o Dentel - Departamento de Telecomunicações, que era uma espécie de big brother, sempre atento e na escuta. Era o órgão que concedia as licenças e fiscalizava a comunicação. Lembremo-nos que a ditadura ainda vigia e espalhava seus tentáculos até pelos inocentes acampamentos de pesquisa da CPRM. No termo de concessão de licença, uma cláusula draconiana estabelecia que "as comunicações deveriam ser no exclusivo interesse da CPRM, vedado qualquer assunto de natureza particular, política, religiosa, etc". E não pensem que era uma cláusula morta. Quem assim pensa, não sabe o que foram os anos de chumbo.

A primeira vez em que constatei a ostensiva presença do Dentel, eu estava acampado no interior do Pará. Meninos, eu ouvi! Estávamos em plena apuração das primeiras eleições diretas para governador, desde o golpe militar de 64. Um companheiro de outro projeto entrou na frequência e quis saber do operador da Sede, em Belém, a quantas iam as apurações. Havia a grande expectativa de que o candidato da oposição (MDB), Jáder Barbalho, derrotasse a situação. Ainda não tínhamos urnas eletrônicas e as apurações, no Norte, duravam semanas. Éramos todos da oposição, claro! O diálogo, surrealista, foi mais ou menos assim:

- Atento 698, 794 chamando, câmbio!

Depois de várias tentativas, a Sede responde:

- Ok 794! 698 na escuta, câmbio!

- Okapa 698! Acá é Sinval* operando. Quem opera por aí, câmbio!

- Boa tarde Sinval! Acá é o Borges*. Adiante, câmbio!

- Boa tarde, Borges! Tenho três radiogramas, ok?

- Ok Sinval, pode mandar, câmbio!

Após a complicada transmissão dos boletins de sondagem, o técnico de campo quis saber, naturalmente, como ia a marcha das apurações e arriscou inocente indagação:

- Positivo Borges, positivo! Radiogramas encerrados. A propósito, aproveitando, o Jáder continua na frente, câmbio!

Nesse exato momento a comunicação foi interrompida por um infernal ruído extragalático. Após restabelecida a normalidade, o próprio Deus assumiu a operação, de algum lugar do universo:

- Atenção operador da estação 794 da CPRM! Aqui fala o capitão Dantes*, do Dentel. Repetindo, aqui é o capitão Dantes, do Dentel. Matrícula 010100001-111, DCC/DCCI/SVC/PA. Copiado, câmbio!

O técnico, naturalmente, não copiou porra nenhuma. Apenas respondeu desconfiado:

- Adiante, câmbio!

- Por favor, identifique-se e passe o prefixo completa de sua estação, câmbio!

Ih! Aí pegou! O técnico desconfiou que tinha feito alguma m...

- O que o senhor quer mesmo? Câmbio!

Percebendo o clima, o operador de Belém, que a tudo ouvia, resolveu ajudar o Borges e meteu a colher na sopa:

- Atenção Dentel, atenção Dentel, 698, Sede CPRM Belém chamando, câmbio!

Mas o burocrata do Dental não estava pra brincadeira:

- Um momento CPRM Belém! Estou numa conferência de notificação com uma estação móvel de vocês e preciso de informações locais, câmbio!

Embora a comunicação estivesse muito ruim, o Sinval ouvira a conversa e viu que a coisa era com ele:

- Pois não, Dr. Dentel, aqui é 698, Sinval operando, câmbio!

- Corrigindo... Dr. Dantes, do Dentel... Dentel! Entendido? Câmbio!

O ruído extragalático voltara, como se todos os grilos e cigarras da floresta resolvessem se meter na conversa:

- Positivo, hem! Mas não captei tudo, hem! Muito ruído! Só entendi até Pimentel, câmbio!

- Okapa, 698! Tudo bem. Por favor informe o prefixo completo da estação, câmbio!

- Ah.... Negativo! Muito ruído... Mas estou são sim. Tudo bem comigo, câmbio!

Agora foi o Dentel que pediu a interferência de Belém:

- Atento 698! Por favor peça a 794 para informar o prefixo da estação que se encontra no verso da licença do Dentel. Entendido, câmbio?

- Atenção 794, atenção 794! Favor ler o número no verso da licença que se encontra embaixo do aparelho, câmbio!

- Ok, 698, perfeitamente entendido... Já achei a licença, câmbio!

- Positivo 794, positivo! Agora leia o verso, câmbio!

- Ok 698, QAP!

Com esse código, Sinval pedira um tempo. Cinco minutos depois:

- Atento 698, 794!

- Adiante 794!

- Olha Borges, li a licença todinha e não tem nenhum verso. Só tem umas letrinhas miúdas, mas nada de verso, câmbio!

Borges, como se diz na minha terra, "queimou as priquita":

- Verso significa do outro lado! Outro lado, entendido, câmbio!

- Perfeitamente entendido... do outro lado... Mas qual lado? Já olhei os dois, de cabo a rabo... Não tem verso nenhum, câmbio!

Vendo que a comunicação não iria a lugar nenhum, o Capitão Dantes resolveu ser pragmático:

- Atenção 698! Capitão Dantes do Dentel chamando, câmbio!

- Adiante Capitão!

- Está complicada a comunicação direta... Sendo assim, através de Vossa Senhoria, o Dentel, no uso de suas atribuições legais, adverte a CPRM de que a licença para uso de estações móveis de rádio transmissor é para exclusivo uso no interesse da Companhia, vedada qualquer comunicação de conteúdo político. Entendido, câmbio?

- Positivo, câmbio!

E foi por aí afora, passando um sabão na CPRM, pelo fato "inusitado" de um cidadão querer acompanhar a marcha das eleições. E pensar que hoje as TVs mostram tudo, a cores a ao vivo, para todos os rincões do país. Pois é... Mas houve um tempo, é bom não esquecer, em que os grotões só recebiam aquelas informações, via Rádio Nacional, devidamente embaladas e acondicionadas pelos donos do poder. Acredite se quiser.

* Nomes fictícios
(Leia mais sobre fatos pitotescos e curiosidades dos tempos das comunicações por rádio, no próximo post)