sábado, fevereiro 24, 2007

O Pum Magnético

Corria o ano da graça de 1979. O projeto Palmeirópolis ia de vento em popa, lá naquelas quebradas de Goiás, sertão bravo, trabalho duro. Geologia, geoquímica, geofísica, sondagem, topografia, poços, trincheiras, o escambau. No acampamento, em pleno chapadão do Morro Solto, chegou-se a ter mais de cem pessoas, que se distribuíam por seis alojamentos, entenda-se, barracos de palha, com cerca de 10 m de comprimento. Além dos alojamentos, tínhamos os escritórios, a cozinha, o depósito dos testemunhos de sondagem, outros depósitos, oficinas, garagens, enfim, no total eram uns vinte barracos, na verdade uma mini-cidade, ali naquelas solidões goianas. As únicas diversões, além do trabalho, claro, era um “tapa no beiço” dentro dos barracos, após o expediente e as visitas à cidade de Palmeirópolis, aos sábados, para um relax, que ninguém é de ferro.
A distribuição dos alojamentos era profissional, isto é, tinha o barraco dos geólogos e engenheiros (ou dos NS, de nível superior), dos técnicos, dos motoristas, e assim por diante. O dos técnicos ficava ao lado do dos NS e era o mais divertido de todos, porque a turma era grande, muito animada, criativa e sacana, no bom sentido. Viviam aprontando, uns com os outros. Dr. Litrão, o que mandava o “tapa no beiço”, dava consulta até tarde da noite. Em tempo, tarde da noite, naqueles ermos era oito horas, porque às nove já todos dormiam. O trampo era pesado e a movimentação no acampamento começava às cinco da matina.
Do barraco dos NS, ficávamos ouvindo a zorra dos técnicos e nos deliciando com as aprontações. Quem se atrasasse um pouquinho pra se deitar, dançava na certa. A cambada ficava quietinha, fingindo dormir, só aguardando o cristo entrar e se deitar. Catapum-puf! No mínimo, tinham quatro pilhas sob os pés da cama. Isto, na melhor das hipóteses, quando a dita cuja estava no seu respectivo lugar. Muitas vezes, principalmente nos fins de semana, o pato chegava e a cama estava pendurada no teto, suspensa por um mecanismo de roldana, especialmente desenvolvido.
O cristo preferido era o Nunes. Tudo o que tinham que aprontar era pra cima do coitado. Era apagar as luzes (gerador a diesel) e tudo que era sapato, bota, sandália, meiões bufentos de chulé, etc, tudo voava pra cama do Nunes. Dos outros barracos, a gente ouvia a voz suplicante da vítima:
-Faz isso não gente!
-Pára, Barbalho!
-Puta que pariu!
Todo novato que chegava, tinha que ser batizado. Era lei. Depois, o noviço se entrosava. Mas tinha que passar por um bom trote.
Anunciaram a chegada de um tal de Erivã*, para estágio. A turma se ouriçou. Começaram o bolar a recepção e as sugestões sádicas foram surgindo:
-Óleo de rícino na comida!
-Mijo no cantil!
-Ácido clorídrico no tubo de desodorante!
Alguns babavam só de imaginar. Pareciam o Fradim, do saudoso Henfil. Ou, como dizia Zeca Mato Grosso, chefe do projeto, aquilo era uma súcia de sacripantas, sátrapas e sicofantas. Deu pra entender? Pois é.
Bem, acertados os detalhes, foi preparado um plano diabólico.
No dia seguinte, formou-se uma comissão para ir buscar o condenado, isto é, o estagiário, na estação rodoviária da cidade. Zé do Egito era o presidente, Divino, o secretário e Barbalho, o assessor especial do presidente. Na rodoviária mesmo, já foram preparando o espírito da vítima:
-Ó bicho, tem que trabalhar com cuidado, porque os caras aqui são foda. Qualquer coisa, eles enrabam a gente na maior. Tem um tal de Dr. Gedel*, que só de ver ele, a gente se borra. Até tapa na orêia de técnico ela já deu e por nadica, só por uma coisinha à toa. Tomara que você não tenha que trabalhar com ele!
O tal Dr. Gedel, na verdade, era o Gelão, encarregado da sondagem. Negão de 1,80m de altura, 1,50m de largura, 150 kg de massa bruta. Ao contrário do que sua figura sugeria, Gelão era um doce de figura. Paciência de Jó, prestativo, filósofo, vivia cantarolando e sorria o tempo todo. Dormia num barraco à parte, porque o volume do seu ronco, não deixava ninguém dormir, num raio de 50m ao redor. Era uma cena bizarra, vê-lo passar cantarolando, para ir tomar banho, enrolado em duas toalhas, que D. Maguinha, sua esposa, emendava, para poder abarcar toda a circunferência de sua exuberante barriga. Uma figuraça, o Gelão.
Mas, voltemos à tortura, isto é, à comissão de recepção. Quando o Divino falou no Dr. Gedel, o Barbalho ponderou, com ar de simulada preocupação:
-Ixe rapaz! Eu ouvi ontem, pelo rádio do acampamento, que o Dr. Gedel estaria chegando hoje, de helicóptero, só para supervisionar o trabalho dos estagiários.
Zé do Egito, fingindo surpresa:
-Porra!, Para o home vir de helicóptero, a coisa é séria mesmo. Será que ele já chegou?
Divino pegou a deixa:
-Vamos perguntar praquele Senhor ali na esquina, se passou algum helicóptero por aqui.
-Seu Delfino! O Senhor viu se passou um helicóptero hoje, por aqui?
-Vi sim, coisa de meia hora, mais ou menos.
-E o Senhor viu pra que lado ele seguiu?
-Lá pras bandas do Morro Solto.
Não pensem que algo tinha sido combinado com o Delfino. Qualquer um ali na cidade responderia do mesmo jeito, porque, na verdade, tratava-se do helicóptero de uma empresa que estava fazendo levantamento aerogeofísico para a CPRM e todos os dias, naquele período, era visto sobrevoando a região.
Aí começou o terror psicológico:
-Ih! Cê tá fudido, companheiro!
-O cara é foda, meu irmão!
-Mas pode contar com a gente pra qualquer coisa. Não se desespere antes da hora. Tenha fé em Deus. O Claret fez estágio com ele e tá aí, vivinho da silva.
O Erivã estava boquiaberto, sem saber o que falar. Com os olhos esbugalhados, ficava ouvindo aquelas considerações, já arrependido de ter aceitado aquele estágio. Começou a suar frio. Os carrascos não davam trégua:
-Aposto como amanhã, domingo, aquele monstro vai querer que você trabalhe. O cara é desumano!
-Pior é que se você se recusar, tá fudido. É capaz dele te dar uns sopapos, como fez com o Délio Silva*.
-Lembram de quando ele fez o Rocha lamber o sal do IP, só porque o coitado saiu dez minutos pra tomar água?. IP é a sigla inglesa de Polarização Induzida, um método geofísico que usa uma solução salina para melhorar a injeção da corrente elétrica no solo.
-E a vez que ele fez o Góia* dormir no mato, só porque ele desviou o rumo da picada em meio grau?
-O cara é fodão me-es-mo!
Ao chegarem no acampamento, o Erivã, alma da maior boa fé que pode haver no mundo, estava pálido como cera, trêmulo, muito sério, apenas olhava de um lado para o outro, incapaz de pronunciar qualquer palavra com mais de uma sílaba. Foi logo procurando o banheiro, pois já havia adquirido uma diarréia de fundo nervoso. Mal sai do banheiro, suando em bicas, dá de cara com o Tóte, topógrafo que se apresenta em nome do Dr. Gedel:
-Você é que é o novo estagiário?
-S-Sim.
-Prazer! Você já trabalhou com magnetometria?
-J-Já.
-Sabe calibrar o magnetômetro?
-Hem?!
-Porra, bicho! Agora fodeu... Mas fique tranqüilo. Nós vamos te ensinar. Basta fazer leituras periódicas e plotar os valores num gráfico como este aqui, ó. Depois, é só construir o gráfico das leituras. O formato da curva vai mostrar se o aparelho está calibrado ou não. Entendeu?
-Acho que s-sim.
-Então está bom. O Dr. Gedel chegou hoje de Goiânia e precisa desse aparelho devidamente calibrado o mais rápido possível. Ele mandou que você o calibrasse amanhã de manhã. Alguma dúvida?
-Onde eu faço isso? Gemeu o Erivã.
-Ah! Ia me esquecendo. É procê instalar o aparelho no centro do campo de futebol, e fazer leituras de 15 em 15 minutos, das seis da manhã até as 18 horas. Depois, apresente-se a ele, naquele barraco ali, ó. E lhe apontou o barraco do Gelão.
-Uma última recomendação. Durante as leituras, evite movimentos bruscos, ou qualquer barulho que possa afetar a sensibilidade do aparelho. Certo?
Erivã ameaçou um desmaio, mas foi contido com uma baldada de água fria.
Natal ensaia um consolo paternal:
-É bom você dormir cedo, companheiro, porque o Dr. Gedel se levanta às 4h00, todos os dias.
É claro que o leitor já sentiu que esse papo de calibrar aparelho era uma grande armação, aproveitando a inexperiência do estagiário.
No restaurante, durante o jantar, quando todos estavam em volta das mesas, alguém entra e fala bem alto para o cozinheiro:
-Ô Cabelo! Cabelo era o nome do cozinheiro. Dr. Gedel pede pra mandar servir o jantar dele lá no barraco, com três bifes macios e suco de maracujá, porque ele está muito nervoso!
Erivã sentiu uma súbita vontade de vomitar e saiu às pressas do restaurante. Pegou seu livrinho de orações, fez um Pai Nosso, dois Credos, três Salve Rainhas, dez Ave Marias e se deitou, com um último pensamento de consolo íntimo: “Seja o que Deus quiser!”
Enquanto o pobre dormia, a cambada foi toda pra cidade e lá era só o que se comentava, todo mundo antegozando o dia de amanhã.
E o dia de amanhã chegou. Meio dia, a negada começando a se levantar, todos numa ressaca braba, e lá estava o Erivã , sentado num banquinho, no centro do campinho de peladas. No céu, uma lua de 35 graus. O pobre fazia anotações e suava em bicas. Uns 5 m afastados, uma garrafa térmica, com água. De vez em quando ele se levantava lentamente, ia pé-ante-pé até a garrafa e dava umas goladas, sem tirar os olhos do aparelho.
Às 13h00, o Cabelo ficou com pena e foi levar-lhe um prato de comida, mas de longe foi contido pelos insistentes sinais do técnico que se levantou na ponta dos pés e foi saltitando ao seu encontro. Beliscou um naco de carne, sentiu as vistas turvas, dispensou o cozinheiro e voltou, lépido, para seu banquinho.
Finalmente, às 18h00, o Erivã já tinha o bendito gráfico prontinho. Chegara o momento mais temido: ir ter com o Dr. Gedel. Nenhum dos colegas quis acompanhá-lo. Cada um alegava um motivo:
-Eu tenho filhos pra criar.
-Eu preciso do emprego. Sou arrimo de família.
-Cara que mamãe beijou...
Quase se borrando, o coitado se dirige ao escritório, onde uma placa na porta anunciava:
ESCRITÓRIO DO Dr. GEDEL
NÃO ENTRE SEM SER CONVIDADO
Erivã volta ofegante ao barraco dos técnicos:
-Como é que eu entro? Eu sou convidado?
Compadecido, o Claudionor se oferece para acompanhá-lo. Na porta, ainda faz seu terrorzinho:
-Momentinho. Deixa eu lhe anunciar. Dá três pancadinhas e entra.
Lá dentro, o negão tava numa ressaca desgraçada. Tinha acordado naquela hora e nem se lembrava do trote. Mas decidiu colaborar. Cinco minutos depois, o Claudionor sai:
-Pode entrar, companheiro. Boa sorte!
Quando Erivã deu de cara com aqueles 150 kg de crioulo atrás da mesa, sem camisa e com aquela cara do Idi Amin, só não voltou correndo porque suas pernas jamais lhe obedeceriam naquele momento.
Gelão, conforme o combinado, foi logo atacando:
Então o Senhor é que é o seu Jerivã? Prazer. Hum... Fez a calibragem direitinho? Deixa eu ver!
-T-Tá aqui doutor. E lhe entregou o gráfico.
Gelão nunca tinha visto um gráfico daqueles na sua vida. Nem desconfiava pra que servia aquilo. Mas foi correndo os dedos sobre a curva, como se estivesse analisando profundamente.
– Hum.. Ahã... Senta aí seu Ronivan. O Senhor está bem? Está sentindo alguma coisa?
-Eu tô bem. Meu nome é Erivã ...
-Grande merda!. E segue analisando o gráfico.
–Hum... Ahã... De repente pára, como se tivesse encontrado algo suspeito.
-Seu Jonivan, que significa essa quebra da curva aqui às 14h30? Dá pra me explicar, heim?
O estado do infeliz era de dar compaixão. As pernas tremiam, o queixo batia e a camisa, literalmente, encharcou-se de suor. A boca era algo indefinível, entre o riso e o choro. Quis balbuciar uma resposta, mas só conseguiu um lamento:
-Não sei Doutor... mas o meu nome é...
-Eu sei seu nome seu João Ivan, por favor, apenas responda minhas perguntas! Por acaso o Senhor se lembra se por volta aí das 14h20, 14h25, deu um vento forte?
-N-n-não Senhor.
-Choveu?
-N-n-não Senhor.
-Relampejou? Trovejou?
-N-n-não Senhor.
-Aqui tem algo muito estranho... Vejamos...
Repentinamente, dá um soco na mesa e se vira para o Erivã , os olhos arregalados, como se tivesse descoberto algo grave. Ao ver aquela expressão, Erivã se lembrou da imagem do Gelão enfiando a mão na orêia do Délio.
-Seu Renivan, me responda com toda sinceridade, olhando bem nos meus olhos. Nesse intervalo a que me referi, por acaso o Senhor não soltou nenhum peido, perto do aparelho, soltou?
Na frente da mesa havia um trapo humano:
-B-b-bem, Dr. Gedel, na verdade eu acho que soltei uns dois ou três peidinhos, m-m-mas não me lembro bem da hora e...
-Seu biltre! Só falta agora me dizer que comeu carne no almoço...
-M-m-mas foi só um pedacinho...
-Seu parvo, estúpido! Outro soco na mesa –Então não lhe ensinaram, na escola, que peido de carne de vaca provoca uma tempestade magnética local? Hein? O Senhor estudou pra que? Pra asno?
-E-eu n-n-não sabia...
Gelão, que estava tomando gosto pela coisa, tascou três socos que abriram um rombo no tampo da mesa:
-Seu pústula! Seu pulha! Seu pustema! Seu...
Não precisou prosseguir, porque Erivã , quando viu o buraco na mesa, desmaiou e caiu durinho no chão. Gelão aflito, chamou a negada que estava tudo ali por perto, ouvindo, se deliciando.
Socorrido o coitado, o pessoal resolveu dar por encerrado o trote, ou seu coração poderia não resistir.
Após o jantar, fizeram uma grande festa para o Erivã , que a partir daí se entrosou perfeitamente e tornou-se um grande técnico, depois contratado oficialmente. Mas ficou definitivamente marcado pelo episódio do peido magnético. Dizem que até hoje, quando surge um negão em sua frente, vem aquele friozinho na barriga e ele corre pro banheiro mais próximo. Dizem, não sei se é verdade. Mas aí já é uma outra história.
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* Nomes fictícios de personagns reais

Tardes de Julho

Tardes nubladas de fina garoa,
Tardes geladas de sombras, granizo,
Tardes doridas, de lembranças vagas...
Vaga saudade que ressuma, ecoa,
Retratos difusos de amores vãos.
De onde me vem agora esse sorriso?
És tu Joana que me afagas?
Teu riso fere, magoa...
És tu que meu peito rasgas?
Por entre véus te diviso,
E então foges, negas-me as mãos.
Por certo, vingas radiante,
A mão negada na manhã distante

Mãos de neve, de olor jasmim,
Sinto agora nos cachos grisalhos.
Certamente, és tu Mariana
Que, há muitos anos, te foste de mim,
E nos desvãos dos meus sutis atalhos
Sorvi o travo da saudade insana.
Mas, sinto trêmulos teus róseos dedos
Anda, querida, conta teus segredos!

Mas foges, também, nas brumas...
E então me roça a face um beijo,
Um lábio antigo que supunha morto
Nos arraiais da mocidade. Espumas
Borbulhantes de febril desejo.
Nancy: farol, jangada e porto.
Por que te foste? Não me lembro mais.
E agora, meu amor, por que te vais?

Ah! Esse perfume, esse fragor de rosas,
Esse calor que me aquece e acalma,
Esse desvelo em me abraçar, gentil...
Evocações de Dora, faces vaporosas,
Por entre os véus que me descerram a alma
E os velhos becos do meu peito frio
Já rola, agora, o pranto aos borbotões,
Do meu passado a remontar visões.

Meu Deus! Quem canta essa canção tão linda?
Que voz é essa que me leva ao céu?
Que me arrebata de saudade e dor?
És tu, Cinira? Amas-me ainda?
Acaso vens cobrar meu vil papel?
Pois saibas que fui eu o perdedor.
Mas fica, canta, dá-me teu perdão!
Ainda tens meu nome em teu cordão?

Debalde imploro. As sombras vêm e vão
Marília dança, Adélia brinca, Lina chora
És tu, Helena, que recita um verso?
Será Diana, com seu violão?
Mas qual! Tudo é silêncio agora!
Sons confusos e um lembrar perverso,
Som perverso, confusa visão.
Qual órfão da vida, cismo e choro,
E sem saber o quê, a Deus imploro.

Que fiz da vida, meus amores?
Que fiz dos beijos, das promessas?
Onde as Marias, as Caróis, as Teresas?
Quem me diz de suas vidas, suas dores?
Foram-se todas, menos essas
Loucas faces, frias de tristezas...
Faces tristes, vivas de rubores.
Odores, fumo, ácool, quais miasmas,
Sombras, vozes, nomes, mil fantasmas.

Mas vem a noite e traz Aldebarán
E tudo leva num arrastão fatal:
Mãos, silhuetas, rostos, risos,
Sombras fugazes da fugaz manhã,
Saudosa, alegre, do meu carnaval,
De fantasias e enganosos guisos,
Guisos vistosos de uma vida vã.
E não bastara o frio e a dor letal,
Inda me assaltam, vagos e imprecisos,
Os acicates acres da moral cristã.
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(Brasília, jul/2005)

O Causo do Auto Lípido

Tudo começou quando o chefe, geólogo Natan Oliveira, leu o radiograma[1] de pedido de material, recém-posto em sua mesa, com o carimbo de urgente. Não entendendo um dos itens, achou melhor tirar a dúvida com o operador do rádio.
-Ô Marcelo, confirme, por favor, com o Zé Garcia, lá no acampamento de Palmeiras, o que é aí esse tal de auto-lípido, que tá nesse pedido urgente aqui na minha mesa. Depois me ligue, ok?
-Ó kapa[2], Dr. Natan. Daqui a pouco confirmo com o Senhor.
Dez minutos depois, Marcelo dá retorno:
-Negativo Dr. Natan. O Zé Garcia informou que Dr. Mato Grosso, que fez o pedido, teve de ir a Minaçu, lá na mina da ONÇA e só volta daqui a dois dias. Mas ele repetiu pra mim, na fonética[3]: alfa, uniforme, tango, Oscar, horizontal, lima, índia, papa, índia, delta, Oscar, ok?
-Ok, obrigado.
Conferiu novamente a listagem: 2 pincéis estreitos, 1 pincel largo, 2 brochas, 3 latas de tinta azul, cal virgem, flanelas, espátulas, 1 escada, querosene, etc, etc e 10 frascos de auto-lípido.
-Que porra será isso? Algum tipo de tinta?!
Apesar de intrigado, Natan não quis perder tempo, entendendo que isso era um problema do Valdir, da Seção de Compras. Sem mais delongas, sapecou no verso um “autorizo compra”, e mandou Dona Gláucia passar o pedido para frente, imediatamente.
-Auto-lípido?! Valdir pensou em voz alta. Que porra é essa?
Conferiu a listagem e telefonou pro Marcelo.
-Negativo, seu Valdir. Já chequei pro Dr. Natan. É isso mesmo: a-u-t-o-l-i-p-i-d-o. Ok?
Só por curiosidade, antes de passar o pedido para o Mano, responsável pelas compras do projeto Palmeiras, o Valdir resolveu consultar seus catálogos de produtos. Verificou na Casa das Tintas. Neca. Na Goiás Tintas. Neca. Só Tintas. Neca. E assim foi por mais de dez catálogos. Neca e neca e neca. Disfarçadamente, assim como quem não quer nada, deu uma consultada com Pepe Cachorro, seu colega de Seção, que estava profundamente absorto, preenchendo uma tabela:
-Pepão, cê sabe se ainda tem auto-lípido em nosso estoque?
-Auto-lípido?!. Que porra que é isso?
-Deixa pra lá Cachorro! Continue preenchendo sua tabela.
Chamou o Mano e determinou, enérgico:
-Dê prioridade a esse pedido de Palmeiras, por favor. Se possível pra hoje ainda, que o Dr. Natan tem pressa e amanhã Zelão tá seguindo pra lá com o carro vazio, tá bom?
Levantou-se rápido, para ir ao banheiro, antes de ouvir a pergunta fatal:
-Auto-lípido?!. Que porra que é isso? Mano franziu o cenho, mas o Valdir já tinha desaparecido.
De volta a sua sala, liga para o Marcelo, que já vai adiantando: - É auto-lípido mesmo, pô!. Já conferi com o Zé Garcia.
Depois de repetir todo o ritual do Valdir, consultando os catálogos, resolve passar a peteca para o Ademir que, afinal, é quem vai mesmo ter de ir ao balcão pegar a mercadoria.
-Dema! Tem uma comprinha aqui pra ser feita ainda hoje pra seguir para Palmeiras amanhã, com o Zelão. Tá aqui a lista, mas vai logo, que o Dr. Natan tá com pressa!
Já ia saindo pra ir ao banheiro também, mas não deu tempo de escapar da pergunta:
-Auto-lípido?! Que porra é essa?
-Deixa de ser trouxa, rapaz! Vai logo, vai!
Meio cabreiro, o Ademir saiu ali pelos corredores, pedindo informações aos geólogos que encontrava.
Auto-lípido?! Bem, saber com certeza, ninguém sabia, mas também ninguém deixou de especular. Afinal, geólogo que é geólogo, nunca deixa de opinar sobre qualquer coisa.
-Deve ser revelador de filme DDI, usado na sondagem, disparou Cidoca, circunspecto.
-Pra mim, é uma pasta de polir carros. Deve ser para lavar os Toyotas do acampamento, arriscou Gigi, com firmeza.
-Se não me engano, arrematou o João Cri-Cri, auto-lípido é uma cola especial que, após certo tempo, se dissolve e tudo que ela tiver grudado desgruda automaticamente.
Renatão foi mais científico: -Acho que é um diluente orgânico, usado na preparação de amostras geoquímicas.
Êh geologada! Gente boa, mas vai gostar de chutar assim na PQP!
Ademir já tinha se arrependido de fazer perguntas e ia saindo pra rua, quando o Eli lhe salvou a pátria:
-Olha seu Ademir, lá no Canadá, onde acabei de fazer um curso, ouvi falar desse produto. É um solvente especial que...
Ademir nem esperou a conclusão. Tava explicado: Solvente de tintas! Por isso estava junto com o pedido de tintas, pincéis e etc. Se mandou pra Casa das Tintas.
Na loja, dirigiu-se, confiante, ao vendedor, seu velho conhecido:
-Perebinha! Vê pra mim aqui esse pedido, que eu tô com pressa! Ah! Esse auto-lípido aí, eu quero do canadense, tá bom? Daquele nacional que vocês me venderam aqui outro dia, eu não quero não. Pense num auto-lipidozinho vagabundo rapaz!
-Auto-lípido?! O vendedor já ia soltar a segunda parte, quando se lembrou que, afinal, ele era vendedor e vendedor tem de conhecer todos os produtos. Lá nos fundos da loja, correu a consultar o gerente, que se mostrou surpreso, tanto quanto ele próprio. Vão ao escritório, consultam catálogos, fazem alguns telefonemas, discutem e... Bem, ninguém sabia que porra era essa.
Daí a uns quarenta minutos, lá vem Perebinha com a lista de produtos, em várias caixas que deposita sobre o balcão:
-Ó aqui Dema, seu pedido tá prontinho. Só que, infelizmente, o auto-lípido canadense nós estamos em falta. Estamos aguardando chegar nesse fim de semana, tá bom?
Na segunda, na terceira, na quarta e em todas as casas de tintas da cidade, Ademir ouviu sempre as mesmas respostas dos constrangidos vendedores:
-Nosso auto-lípido está em falta, mas na próxima semana, pode passar aqui!
Na parte da tarde desse mesmo dia, na Empresa, lá estão Natan e Valdir conversando no cafezinho, quando surge o chefe da Divisão de Administração, mais conhecido como Cabeção. Inteirando-se do problema do auto-lípido, ele dá uma pragmática sugestão:
-O problema é simples pô! Se é canadense, vamos fazer uma consulta à CACEX e ver se é muito difícil importar logo um bom estoque de auto-lípido. Pode deixar comigo que eu faço a consulta.
Dez minutos depois, ele liga pro Natan:
-Natanzinho, graças a um chapa que tenho lá dentro, a CACEX libera até cem frascos. Se quiser é só me dar as especificações que eu encaminho, tá bom?
O Superintendente, informado pelo Cabeção, procura dar força ao Natan:
-Tanzinho, meu filho, por que não me falou antes, cara? Olha, o Cabeça já me colocou a par, viu? Se precisar desobstruir algum caminho aí, eu falo com o general Fraga, sogro da minha irmã. Altos escalões do SNI... Mande as ordens!
Muito bem. Deixemos os técnicos com suas preocupações e voltemos aos gerentes das lojas de tintas da cidade. Estes, assim que o Ademir deu as costas, ligaram imediatamente para seus fornecedores em São Paulo, com a mesma reclamação:
-Pô! Então, lançam um novo tipo de solvente na praça e vocês não me mandam!? Toda a concorrência já tem e eu perdendo clientes! E blá-blá-blá, blá-blá-blá, de forma que me providenciem, até o fim de semana, um bom estoque de auto-lípido canadense, sem falta!
-Auto-lípido?! Os fornecedores ficaram assustados. De repente, uma saraivada de telefonemas cobrando estoques desse produto. Que porra será isso? Depois de algumas consultas mútuas, resolveram pelo caminho direto:
-Vamos consultar a Embaixada Canadense, sugeriu o presidente do Sindicato Nacional do Comércio de Tintas e Similares, SINDTINTAS.
O Embaixador, tirado às pressas de uma reunião com a vice-consulesa do Congo, ficou uma fera.
-Estão exportando auto-lípido para o Brasil e não avisam a Embaixada? Só pode ser contrabando. Vamos alertar a Polícia Federal. Liguem para meu amigo, Messier Tumá!
No dia seguinte, eis o temido Comissário Queiroga abrindo uma reunião de emergência, com seus melhores agentes, a pedido especial do Ministério da Justiça:
-Rapazes, vocês têm a honra de integrarem, a partir de agora, a OSACAL, Operação Secreta Anti Contrabando de Auto-Lípido.
-Auto-lípido?! Que porra é essa?
-Blitz ostensiva nas fronteiras. Contrabando industrial do grosso. Gente graúda envolvida e coisa e tal. Senha da operação: “sentei na tinta fresca, companheiro”. Contra-senha: “melhor do que sentar na merda, amigão”. Algum dúvida?
Quatro dias depois de deflagrada a OSACAL, o Natan recebe um telefonema do Marcelo:
-Dr. Natan, Dr. Mato Grosso está no acampamento de Palmeiras e deseja um QSO[4] com o senhor, no rádio agora. Pode ser?
-Positivo, Marcelo, pode passar.
Marcelo conecta e Natan chama:
-Atento 691, é 476.[5]
-Ok Natan. Aqui é o Mato Grosso operando. Como vão as coisas aí? Câmbio.[6]
-Positivo Mato Grosso. Por aqui vai tudo porreta meirmão. Tudo na mesma. Recebeu o material que mandei pelo Zelão? Câmbio.
-Ó kapa Natan. Cem por cento. Recebi esse material por acá[7], hem? Já fiz a conferência e tá tudo certo. Só não vi os frascos de Autan líquido. Tá em falta aí em Goiânia? Vê se arranja logo, que as muriçocas por acá estão brabas. Entendido? Câmbio.
Natan, pensando em voz alta:
-Autan líquido??? Puta que pariu!
Bem, para a empresa o caso ficou inteiramente resolvido e esclarecido.
Quanto ao rolo entre gerentes de lojas de tintas, seus fornecedores, Embaixada Canadense, Polícia Federal e o escambau, ninguém sabe como terminou, se é que terminou. O certo é que, duas semanas após a deflagração da OSACAL, aparecia nas páginas policiais dos principais jornais do país:
“Interpol prende três bolivianos e dois paraguaios, transportando 10 ton de maconha em falsas latas de tintas, numa das maiores operações conjuntas das polícias sul-americanas de todos os tempos. Dr Tuma afirma que a operação levou dois anos para ser montada e garante que sua atuação será por tempo indeterminado.”
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Notas de rodapé[1] Radiograma era um formulário de comunicação transmitido por rádio.[2] Ó kapa, na comunicação por rádio significa OK. Geralmente os operadores utilizam essa expressão como jargão para o início das frases, assim como “positivo!”.[3] Na fonética das transmissões por rádio, alfa representa a letra A; beta, a letra B; Charles, o C e assim por diante. Horizontal significa o hífen.[4] QSO, no código das radiotransmissões, significa bate-papo.[5] Esse era o chavão para a chamada da estação de Palmeiras, pela estação sede.[6] Câmbio é o sinal que o interlocutor dá para passar a palavra para o outro interlocutor.[7] Acá é um chavão que significa aqui.

O Amor Proibido

Ah, o amor proibido!
Não há nada mais gostoso,
Não há nada mais picante,
Nem nada é mais excitante
Que o desejo fogoso
Daquele amor proibido!

Aquele amor fugidio,
Aquele olhar de malícia,
Faces rubras de desejo
Bocas sedentas de um beijo,
Imaginada carícia
Daquele amor fugidio...

A boca nunca beijada...
Os lábios de carne e mel...
Ah, como é doce o odor
Do beijo tenso de amor,
Ferindo as harpas do céu
Da boca nunca beijada...

O amor que não se permite,
Ah! Quando é correspondido
Nos devolve a juventude
Fingindo que nos ilude,
Brinca de herói e bandido,
Sacia e abre o apetite

Amores escancarados
São armadilhas cruéis
Que assassinam as ilusões,
Que tornam dois corações
Infelizes, infiéis,
E matam os sonhos dourados

Prefiro o doce suspiro,
Do peito arfante e comparsa,
Olhar de puro pecado,
Gestos do amor bem guardado
No andar de leveza e graça,
Mil vezes, digo, prefiro,

A sofrer os desenganos
Dos vãos ideais desfeitos,
Da perfeição desnudada
Do tudo desfeito em nada,
Decepções e defeitos,
Onde eram sonhos e planos

Prefiro a visão sublime
Do meu amor ideal,
Que só me deseja e ama.
Que nada pede ou reclama.
Prefiro esse amor fatal
Que a sociedade reprime:
Livre prisão voluntária,
Saúde atrás da malária,
Atrás do bandido, o crime.
..................................................................................................................
(Brasília, dez/2004. Nada é mais verdadeiro que um sonho acalentado, com esperença viva. A grande ilusão é pensar que o real é o que se vê... Para encontrar a Verdade é preciso desvendar os mistérios.)

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Tempo Voraz

Lavei a alma nas águas do rio,
Limpei o corpo no algodão das nuvens,
Sorvi o ar da madrugada, o frio.
Ouvi, na tarde, uma canção além...
Senti, do tempo, a lerdeza...
Úmido e morno a passar,
A se arrastar, com desdém,
Atrás dos relógios, lento.
Na porta da igreja chorei
Pelas missas domingueiras,
Pelas procissões,
Pelo terno branco,
Pelo Padre Roque,
Pelos leilões.

Ah! Tempo voraz...
Que doces lembranças daqueles dias
Que me levaste,
Que não voltam mais!

Brinquei de ura nos becos estreitos,
Joguei bola de meia nas praças,
Com velhos fantasmas, amigos do peito,
Andei ruas,
Corri campos,
Colhi frutas.
Menino, voltei à escola,
Ao velho prédio amarelo,
Que ainda resiste,
Imponente, decadente e triste,
Ali... Saudosamente belo,
Respeitoso como um túmulo.
Ouçam! Das velhas paredes
Ecoam eternas lições
De D. Albertina,
De D. Gerúsia,
De D. Diozinha...

Ah! Tempo voraz!
Que doce saudade dos companheiros,
Que se encantaram,
Que não voltam mais!

O velho sobrado já não mete medo,
Até faz graça o coronel com seu bigodão,
E João-Cabelo-Azul e João-Queridão
E os joões e marias das histórias
Que meu pai contava,
Que mamãe contava,
Que vovó contava
Pra nos entreter, nos acalmar,
Nas noites de brumas,
Sob o querosene.
Dormi, criança, e sonhei
Com lindos dias azuis.
Na rua das minhas saudades
Revi o passado morto.
Refizeram (sem graça)
A calçada de pedra
Do primeiro beijo,
Do primeiro amor.

Ah! Tempo voraz!
Que doce memória dos meus verdes anos,
Que me levaste,
Que não voltam mais.

No entardecer sonolento,
Ouvi o bando alegre
Das andorinhas trelosas,
Em seu fragor barulhento,
E as badaladas das seis,
Longe, muito longe...
Nas lembranças chuvosas
Dos meus oito anos.
No amanhecer vermelhado
Senti o frescor do orvalho
Dos jasmineiros floridos nos quintais
E os passarinhos cantando na algaroba,
E os bezerros berrando nos currais,
E o meu pai na luta da fazenda,
E mamãe na faina da cozinha,
E a fumaça nas chaminés das casinhas,
E Dindinha no estrado, a fazer renda,
E Vó Liza a preparar suas verdinhas.

Ah! Tempo voraz!
Como era linda a infância,
Que ficou velha,
Que não volta mais!

Com o olhar nos anis horizontes da Serra
Com o cheiro de terra no nariz,
Volto aos fronts sutis dessa guerra
Atual e fera, em que me vejo, atroz,
Firme e forte a desfazer os nós
Dessa teia urdida nessa tarde gris,
Com a paz dos dias em que fui feliz.

Ah! Tempo voraz!
Entre as marcas de ferro que me deste,
Há uma forte, que ensina: Lutes!
E por isso a dor e os embates,
Por mais que me alquebrem e acicatem,
Até que me enterrem nessas terras férteis,
Hão de conhecer essa energia bruta,
E mesmo morto viverei nas portas,
Nas pedras, nas pontes, nos postes,
Como um eco eterno dos eternos ais,
Eternizando os tempos que não voltam mais.
..............................................................................
(Brasília, fev/2004. Sem raízes não há planta, não há fruto, não há nada.)

domingo, fevereiro 11, 2007

A Caranguejeira Tarada

Início de 1977. Precisava reconhecer quase uma centena de alvarás de pesquisa, no nordeste de Goiás, com geologia preliminar, geoquímica de solo, sedimentos de corrente e perfis de cintilometria. Por conveniência logística, a base operacional dessa campanha foi estabelecida na cidade de Natividade. No mapa, uma cidade. Na verdade, um ex-quilombo encravado entre serras e vales esquecidos do mundo, sem a mínima infra-estrutura. Mesmo para a década de 70, Natividade era uma volta no tempo, um aglomerado de casas velhas, sem arruamento, cheia de mato, sem energia e água encanada.
Havia esqueletos de construções antigas, de paredes de pedra, entre as quais uma igreja, que era objeto de culto local. O pouco de modernidade que ali se via era devido à recente estrada, que vinha de Dianópolis e dava acesso a Porto Nacional. Ao seu redor se instalou um posto de combustível e uma pensão que vendia “cama”. O hóspede não pagava pela hospedagem e sim pela dormida. O detalhe é que o pagante não tinha direito de escolher seu companheiro de quarto e não podia recusar ninguém, a não ser que pagasse pela cama vazia.
Resolvemos alugar um imóvel, um casarão, no oitão da igreja, com mais de 10 cômodos e um quintal que era uma verdadeira mata. O dono morava em Goiânia, e fazia cinco anos que o local não era habitado. Não era o paraíso mas, por absoluta falta de opções, aluguamos. O valor era tão irrisório que talvez, se eu pleiteasse morar de graça, não faria diferença. Como se fosse hoje, R$ 50,00, mais ou menos.
Mandamos dar uma limpeza geral, incluindo pintura nova, mas nada que alterasse o aspecto mal-assombrado daquela construção cheia de sótãos misteriosos, lacrados. Era rodeado de mangueiras centenárias que cobriam quase todo o telhado e faziam barulhos assustadores de noite. Para suprir a falta de energia, trouxemos vários lampiões a gás, daqueles de camisinha (não confundir com camisa de vênus) que alguns hão de se lembrar.
Para completar a lugubridade do lugar, a igreja ao lado, era infestada de corujas e morcegos, que faziam uma festa todas as noites, noites que levavam dias para passar. É que o tempo ali, parece que obedecia a outro relógio, muito mais lento.
Na primeira semana de ocupação do imóvel, tive a companhia de dois técnicos em mineração, mas no sábado seguinte eles foram deslocados para a região de Almas, outro remanescente de velhos quilombos, cerca de 50 km de Natividade. O nome já diz tudo. Nunca fui de me impressionar com o sobrenatural, mas confesso que para dormir sozinho naquele casarão, tomava sempre uns bons goles para catalisar o sono e apagar os ruídos sinistros dos ratos no sótão, das corujas na igreja vizinha e dos galhos das mangueiras roçando o telhado e outros, inexplicáveis, como passos, risadas, sussurros...
Detalhe importante para o causo que se vai contar: a casa, originalmente, não tinha banheiro. Os donos atuais construíram no quintal um cômodo com uma caixa d’água, abastecida manualmente, sob a qual adaptou um balde de metal, furado embaixo, simulando um chuveiro. Uma fossa coberta, com um aparelho sanitário adaptado, sem descarga, completava o aposento destinado à higiene. Agora, imaginem ter de atravessar cerca de 10 metros ao ar livre, no escuro, por um capinzal, para chegar a esse local, no meio da madrugada!
E assim fomos tocando a vida, até que anunciaram a vinda de uma comitiva da sede da empresa, diretamente do Canadá, para supervisionar os trabalhos no Brasil. Junto com a comitiva, que fui apanhar em Brasília, veio minha amiga Mag*, geóloga argentina, sobre quem já falei em causos anteriores. Eles trouxeram um verdadeiro estoque de bebidas e comidas enlatadas, e achavam aquilo tudo muito exótico. Tiraram mil fotos da casa, da cidade, de tudo. Na noite da chegada, ninguém tomou banho. Primeiro pelo frio, segundo pelo inconveniente do banheiro externo.
Dia seguinte, cinco e meia, já estávamos todos de pé, que a jornada ia ser longa. Enquanto a empregada preparava o almoço (isso mesmo, almoço: carne de sol, arroz, cuscuz, macaxeira, ovos mexidos, etc). Mag se adiantou e foi tomar banho, tendo antes aquecido um pouco de água no fogão a lenha, por causa do frio.
Passados cerca de cinco minutos, estávamos todos reunidos ao redor da imensa mesa da cozinha, tomando um cafezinho, quando se deu uma cena inesquecível, pelo susto e pela bizarrice. Primeiro, ouviu-se um baque surdo na porta do banheiro, com se alguém desferisse contra ela um violento chute ou algo assim. Ao mesmo tempo, a Mag disparou um grito tão agudo e apavorante que nos paralisou a todos. A coisa foi muito repentina. Seus gritos agora eram seguidos, de puro terror. Não distinguíamos o que ela dizia, apenas vimos que a situação era deveras preocupante pelo tom da voz e pelo barulho, com se ela lutasse contra algo... Ou alguém. Passado o susto, todos nos precipitamos para o quintal. Minha dedução era de que havia uma cobra no banheiro, o que não seria nenhum absurdo, segundo os relatos que já tinha ouvido da empregada.
A cena mais bizarra estava por vir, no entanto. Quando estávamos a meio caminho, a Mag sai do banheiro, nua, completamente descontrolada, a mão esquerda tentando segurar a toalha na frente e a direita sacudindo o cabelo, como se tentasse expelir algo da cabeça, que não conseguíamos ver. Ela estava em estado de choque. Tão apavorada que parece que nem nos via. A custo, a acalmamos, após lhe providenciar toalhas e roupas para se recompor. Enquanto os colegas cuidavam dela, fui ao banheiro ver a causa de tanto pavor. Lá estava no chão, ainda se mexendo, mas bastante ferida, uma também apavorada caranguejeira, imensa, daquelas vermelhas, realmente assustadora.
Quando conseguiu finalmente, articular as palavras, após um reconfortante cafezinho, ela nos contou que enquanto se ensaboava, a caranguejeira caiu do telhado sobre sua cabeça. Ao tentar tirá-la, ainda sem saber do que se tratava, levou uma ferroada na mão. Quando se apercebeu do que se dera, perdeu o controle e o resto foi o que se viu. Levou um bom tempo para superar o trauma. Ríamos, dizendo que ela fora atacada por uma caranguejeira tarada. A picada não teve conseqüência maior, a não ser um leve inchaço. Desse dia em diante, tínhamos de fazer minuciosa vistoria no telhado, além de montar guarda nas proximidades, para que ela voltasse a usar aquele sinistro aposento. Mas ela era valente e não entregou os pontos. Resignada, dizia:
- Quien mandou hacer geologia?
Pois é... Uma guerreira, essa Mag.

* Nome fictício

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Réquiem

Nada é defiitivo no Universo, tudo tem seu alfa e seu ômega, até os amores. Não te admires disso.

Então ficamos assim,
Segue teu rumo pela vida a fora,
Vive tuas escolhas, vai-te agora,
Afasta-te de mim

Não olhes pra trás,
Esquece a rua, o casebre medonho,
Segue o rastro ascendente do teu sonho,
Mata-me em paz.

Enfurna-te nos bares,
Sorve, dos cristais de França, as ilusões,
Baila pelos palcos luminosos dos salões,
Entrega-te aos jantares.

Bebe teu vinho,
Aproveita o sucesso do teu charme,
Brinda à glória extrema de deixar-me,
Esquece o velho ninho.

Não te quero mal.
Foste meu brinquedo, a bola, o trem...
Não me deves porquês nem porém.
És livre, afinal.

Toma a serpentina
E segue o bloco alegre do teu carnaval.
Mascarada, seminua, passional!
Fria colombina!

Não me tenha dó.
Vive a liberdade louca dos ciganos,
Que eu também tenho sonhos, tenho planos,
Não me sinto só.

Já nada importa.
Já te arranquei do peito, não me serves!
Nem te ouço. Por ti mesmo, te preserves!
És folha morta.

Que mais queres?
Que te diga que sofro e morro e sou feliz?
Que te perdôo o desencanto, os desenganos vis?
Ah! As mulheres!

E então te vais...
Mas por que choras? Porque tremes! Vai!
Espera que te beije, que te abrace? Sai!
Não te quero mais

Vai com Deus!
Extirpei-te de mim, como um letal tumor.
Jamais saberás a extensão da dor...
Dos dias meus.
Perdida na tua ânsia de esplendor,
Nem viste o funeral do meu amor.
É tarde, adeus!
.........................................................................
Recife, nov/2002.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

A Sambaíba Salvadora

Durante os anos de 1976 e 1977, recém-formado, percorri grande parte dos estados de Minas, Goiás, Tocantins e Pará, reconhecendo e amostrando áreas de pesquisa para a empresa multinacional na qual trabalhei. Nessa maratona, contava com a orientação geoquímica de uma geóloga argentina, com quem muito aprendi e com quem firmei uma fraternal amizade, que perdurou enquanto ela permaneceu no Brasil, se não me engano, 1980. Era descendente de russos e tinha um nome complicado, que nós simplificamos apenas para Mag*. Depois, nunca mais a vi . C’est la vie.
Era muito alta, do tipo galega, e para não chamar muito a atenção, sempre usava roupas masculinas e escondia os cabelos curtos sob um chapéu de palha ou boné. De tudo achava graça e de tudo se admirava, com interjeições engraçadas:
-Si! Si! Pero que lindito!
- Diós mio!
- Santa madrecita! Que cosa, non?
- Carajo!
-Mira Ale*! Mira! Ale era também um colega argentino que às vezes supervisionava as atividades de campo.
-Rrrreginaldo! Que és isso? Mandava ver no portunhol, puxando os erres.
Normalmente era eu quem dirigia a Rural ou a Picape F-100, que utilizávamos nos trabalhos de campo, e ela ia ouvindo milongas ou sambas, num toca-fitas a pilhas, que guardava no porta-luvas do carro.
Certo dia, para minha surpresa, ao voltarmos para a cidade de Porto Nacional, onde tínhamos uma base de campo, por volta de 17h00, ela, repentinamente manifestou desejo de conduzir a Rural. Assim, sem mais nem menos. Não ousei discutir. Pediu para parar o carro e se apossou da direção. Eu me acomodei, confortavelmente, no banco do passageiro e, invertendo as posições, passei a manejar o toca-fitas.
Devo esclarecer que estávamos numa rodovia estadual encascalhada, muito plana, onde se podia desenvolver 80 km/h na Rural, sem maiores riscos. Mas devo esclarecer, também, que o carro tinha um defeito, com o qual eu já me acostumara, mas que foi fatal para a Mag, como se verá. É que a pisada nos freios tinha que ser de leve e nunca bruscamente. Nesse caso, a roda dianteira esquerda era freada antes da direita e o carro puxava, violentamente para o lado do motorista. Era necessário, então, dar umas pisadas bem fortes e repetidas no pedal, para descolar as lonas de freio. Como eu já sabia desse macete, achava isso normal e nunca me embaracei com as constantes puxadas para a esquerda. Mas minha hermana não sabia. Foi uma pena.
Passados uns dez minutos, naquela trepidação monótona, dormia eu já placidamente, ao som de Martinho da Vila, quando sou acordado por um sacolejo violento e os gritos agudos da Mag, que ouço ainda, como se fosse hoje:
- Ui! Ui! Ui! Ui! Ui! Ui!
A última imagem que vi, antes da capotagem, foi da Mag aferrada ao volante, como se fosse arrancá-lo e os pés enterrados no freio, exatamente como não era pra ser feito naquela situação. Naquele átimo de segundo, compreendi tudo o que acontecera e, o que era pior, o que estava para acontecer. Quis gritar para ela tirar o pé do freio, mas não deu tempo. Na puxada para a esquerda, o carro deu um cavalo de pau, capotou espetacularmente e caiu de teto para baixo, ancorado numa salvadora sambaíba. Num segundo, sobreveio um silêncio mortal, só quebrado pelo barulho das engrenagens ainda girando, galhos se recompondo à brisa do cerrado e líquidos escorrendo no motor do carro.
A primeira reação que tive, decorrido não sei quanto tempo, foi de limpar o sangue que sentia nos lábios e de me livrar dos fragmentos de vidros estilhaçados que inundaram tudo, até dentro da boca. Comecei a me mexer, quando ouvi aquela voz, assustada, meio rindo, meio chorando:
-Rrrreginaldo? Estás bien? Que houve, hem?
- Calma Mag está tudo bem. E você? Consegue se mexer?
Confesso que tive medo da resposta, mas ela logo me tranqüilizou:
- Si, si. Estoy bien. Solo me parece que algo me prende la perna...
Saí o mais rápido que pude e ajudei minha amiga a se livrar do câmbio da Rural que lhe imprensava o joelho contra o banco. Esqueci de mencionar que esse modelo de Rural tinha o câmbio no volante.
Ambos fora do carro, ela me olhava com uma interrogação que ia de testa até as botas de caubói que usava.
- Que tonta soy! E ahora?
Além da marca na perna, azulada, ela não apresentou nenhuma outra escoriação visível. Eu levei um corte no queixo provocado pelo gravador e arranhões no rosto, devido a estilhaços de vidro. Nada mais sério.
Agora pude avaliar melhor o que houve. Quando iniciou a descida da ladeira para passar a ponte sobre o rio Manuel Alves, se não me falha a memória, ela se assustou porque havia ali uma picape C-10 estacionada e um pessoal em volta, exigindo redução de velocidade, por segurança. Ao pisar no freio, de forma repentina, vocês já sabem o resto. Nossa sorte foi a providencial sambaíba, porque se tivéssemos prosseguido na capotagem, nosso destino teria sido o leito do rio, mais embaixo.
O pessoal que estava na beira da ponte já vinha subindo a ladeira, apressado, para os primeiros socorros. Ao começar a retirar as coisas de dentro do carro, descubro um garrafão de cinco litros, que estava pela metade de uma cachaça de alambique, que sempre mantínhamos, para qualquer eventualidade. Quando os socorristas chegaram, nos encontraram mamando na boca do garrafão, para relaxar e fazer baixar a adrenalina. Pedi-lhes que brindassem conosco, nossa sorte, no que fui prontamente atendido. Dali a pouco, tudo era uma animação só, parecia festa.
Nossos animados socorristas nos levaram para a cidade, onde já chegamos tarde da noite. Fomos ao hospital para os exames de praxe e nos colocaram em observação, apenas por precaução.
No domingo seguinte, tomávamos uma caipirinha, no bar do hotel, quando ela comentou, filosfando:
- Pero vês, Rrrreginaldo! Que cosa! Será onde estaríamos hoy, se tuvéramos morridos, hem? Habrá outra vida? Que pensas?
Tomei um gole da minha bebida, busquei nos refolhos da mente todo o meu cabedal de reflexões filosóficas e sapequei:
- Na verdade Mag, eu não tenho a menor idéia de onde estaríamos. Não tenho conviçcão sobre a existência de outra vida, nem me preocupo muito com isso. Mas o último som que levaria dessa vida, e que ouvi antes de adormecer na Rural, seria um som de muito paz. Acho que morreria tranqüilo. Adormeci ouvindo as pastoras de Martinho da Vila repetirem:
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
“O sino da igejinha faz belém-blem-blem...”
O que eu não disse a Mag, para não impressioná-la, e também porque eu próprio não sabia o que significava aquilo, é que no dia seguinte de manhã, acordei com uma baita vontade de ligar para minha família. Fui a um posto telefônico da Telebrás e liguei. Atendeu uma irmã:
- Que coincidência! Onde você está? Ontem falamos muito em você.
- Estou bem. Nada de novo. Por que falaram tanto de mim?
- É que, numa reunião espírita ontem à noite, recebemos uma mensagem de que teria havido um acidente com você, mas que não nos preocupássemos, porque estava tudo bem.
- Mentira... Não houve nada. Não leve essas mensagens a sério...
- Ainda bem.
Anos mais tarde, já conhecendo os princípios do espiritismo, confessei à minha irmã o ocorrido. Ela disse simplesmente:
- Eu sempre soube.
Bem, como se diz lá na minha terra, tá contada a minha história. Acredite se quiser.

* Nomes fictícios

domingo, fevereiro 04, 2007

Monólogo do Último Cliente

-“Não, não sei do que se trata,
Batata! Apenas sinto,
Não minto, é uma dor danada.
Mas, nada! Deixa pra lá, moço!
É um poço sem fundo,
É um mundo de um tudo.
Contudo, talvez há que ser mesmo assim,
Enfim, quem sou eu?
Eu?! Um tonto, acho.
Diacho! Mas o que eu disse?
Tolice, decerto é tolice.
Não disse? Não ria!
Como dizia, é uma dor profunda,
Que inunda, que corta.
É torta, vem de lado, de banda,
Ciranda, roda, rede, balança...
Lembrança de um tempo antigo.
Amigo, só sei que sufoca
E desentoca dores já esquecidas,
Vidas que nem me lembro.
Dezembro!! Era um Natal.
Legal! Um menino, um presente,
Sente? Ai, como dói!
E rói, amigo. Deixa pra lá.
Alah! Tem dó! Compaixão, meu Deus!
Adeus! Vai-te satanás!
Rapaz! Quanta coisa junta!
Pergunta, pergunta, o que queres?
Mulheres? Passado?
Errado, sai fora!
Agora, nada mais conta.
A conta, garçom, a conta!
Desconta essa dor, o desleixo.
Deixo a gorjeta, aflito.
Esse grito não é nada, é prece.
Esquece, já é tarde!
Arde meu peito, só isso.
Feitiço brabo, sem jeito.
Bem feito! Amei e daí?
Morri, sou fantasma,
Miasma... sou nada, ninguém.
Nem vem... lembranças aos seus,
Adeus!”
......................................................................................
(Brasília, setembro de 2003. Ah, vida humana! Cada pessoa, um drama. Cada semblante uma dor.)

Mamón Bravo

Quando comecei minha vida profissional, numa empresa de mineração canadense, nos idos de 1976, trabalhava sob a coordenação de dois geólogos argentinos, de quem guardo as melhores recordações. Com eles muito aprendi e o bom relacionamento que fizemos, em nada evoca a dita rivalidade que existe entre nossos países. Se dependesse de nossa amizade, brasileiros e argentinos seriam de fato, verdadeiros hermanos. Falo da Mag* e do Ale*. Com eles aprendi, além dos fundamentos da pesquisa mineral de metais-bases, a gostar de chimarrão e da música dos pampas. E ensinei-lhes o gosto pela MPB e a cultura nordestina. Eles adoravam Martinho da Vila e Luiz Gonzaga.
Ale já partiu para o andar de cima. Que Deus o tenha! Mag voltou para sua Argentina, no início dos anos oitenta. Era descendente de russos, muito alta e alva, porte alto para os padrões brasileiros e trazia no rosto um permanente sorriso e um ar de admiração por tudo. Usava cabelos bem curtinhos, escondidos sob chapéu ou boné, o que lhe ocasionou, alhumas vezes, ser tratada de Senhor, pelas gentes locais. Ela dava gostosas risadas e desfazia o mal entendido com simpático bom humor.
Tinha uma verdadeira tara por mamão, que ele pronunciava, indefectivelmente, mamón. Durante os dois anos em que trabalhamos juntos, não consegui que ela emitisse a pronúncia correta. Era mamón e tudo bem. Se hospedávamos em alguma pensão do interior, ela logo pedia ao proprietário para providenciar sua fruta predileta no café da manhã e no jantar. Se acampávamos, ela levava caixas de mamão, de que cuidava como se fossem crianças.
Fazíamos um trabalho na cidade de Araguanã, margem direita do Tocantins, norte de Goiás, na época. Nossa base era Araguaína, para onde voltávamos todas as noites e onde eu tinha uma namoradinha, uma flor do cerrado, como eu a chamava, que ficava ansiosa me esperando nos entardeceres calientes daquelas longitudes goianas. De modo que eu fazia de tudo para chegar cedo ao hotel e não frustrar minha doce espera. A família impunha limite de horário. Depois das oito... Nem pensar!
Certo dia, era um sábado, voltávamos por uma estradinha de fazenda, muito retilínea, por volta de 18h30, sol já se escondendo, cansados da jornada de 10 horas seguidas, naquela temperatura de quase 40 graus. As construções da cidade já estavam à vista, quando passamos ao largo de belíssima fazenda ao pé de uma elevação, onde se avistava ao longe, imensa plantação de mamões. O mundo amarelou de tanto mamão, no pé da serra. Tudo madurinho, pedindo para ser colhido. Naquela noite, mais do que qualquer outra, eu não podia me atrasar. Tinha festa na cidade e a noite prometia ser especial. Eu já antegozava os bons momentos que me esperavam, quando a excitação da Mag me chamou à realidade:
- RRRReginaldo! (como ela puxava os erres!). Mamón! Veja! Quanto mamón. Que maravilha! Vamos a boscar-los!
Eu fiz um cálculo, rápido, que gastaria não menos de uma hora, para atravessar toda aquela extensão a pé, colher todos os mamões que ela quisesse e voltar novamente ao carro. Sem falar da arrumação que teria de fazer no carro, já lotado, e da possível conversa que ainda teria de entabular com os proprietários. E etc e etc.
- Meu programa foi pro brejo! Pensei, vendo o entusiasmo da hermana.
Mas não entreguei os pontos. Lutaria com todas as armas.
Desci da Rural Willys, fui até a cerca e mirei bem o mamoal, como quem avalia, com grande conhecimento. Coloquei as mãos sobre os olhos, para focar a mira, fiz uma encenação e concluí, do alto de minha especialização em mamón:
- Infelizmente Mag, trata-se de uma variedade nativa de mamão, conhecida como mamão bravo, que não é comestível. Tem muito aqui no norte de Goiás. Inclusive é muito tóxica e pode mesmo matar um ser humano. Por isso essa abundância... Ninguém colhe.
-Mamón bravo!? Pero son tan lindos hem! Que pena! Non sabia de esse mamón bravo. Como se los distinguistes de acá?
- Ah Mag, eu conheço mamão bravo de longe. Fui criado no meio deles. Há uma sutil característica da folhagem e do caule, que a gente distingue de longe. Qualquer hora te mostrarei.
-Ah, bom! Entonces nos vamos, hem! Pero que es uma pena es! Tan lindidtos!
Ela ficou tão tristinha, que o remorso me acometeu. Tive a pique de voltar e dizer que tinha me enganado. Mas havia uma flor do cerrado à minha espera!
Para compensar meu pequeno pecado, passei numa frutaria e comprei-lhe uns dez mamões, ao gosto de seu apetite. Ela ficou extremamente agradecida e eu salvei minha noite, graças ao mamón bravo.
Nos dias seguintes, sempre que via algum mamão ela perguntava:
- Esse es bravo? Se puede comer-lo?
Quando nos separamos, em meados de 1977 (a empresa em que trabalhávamos se fora do Brasil), quase lhe revelei minha traquinagem, mas na hora H, não tive coragem. Depois, nunca mais a vi. Acho que ela até hoje deve dizer a seus amigos argentinos para tomarem cuidado com mamón bravo, ao virem para o Brasil. Pode até matar.
Mas vocês não concordam que foi por uma causa justa?

sábado, fevereiro 03, 2007

Luneta Embaçada

O soldado tocando corneta,
O coxo arrastando uma maleta,
A mulher batendo no menino,
O palhaço fingindo ser perneta,
A beata, a bela e o proxeneta,
Em desespero, alguém reza e canta um hino.

Um alegre, um triste, um de veneta,
Aleijados, mancos e manetas.
Sineiro da matriz, toque seu dobre!
Sons furtivos de longe clarineta,
E o pedreiro insistindo com a marreta.
Silêncio! Adiante segue um pobre.

Choram Lia, Tiana e Marieta
Pelo corpo jogado na valeta
E o cheiro de cachaça na bodega.
Os escritos mofados na gaveta
São lembranças, são tiros de espoleta,
Vinho azedo no fundo da velha adega.

O que fugiu voltou, virou poeta.
A feia se vingou, é arquiteta.
De onde vêm, agora, essas lembranças?
E o jogo de pião? E a caixeta?
Me deram de presente uma caneta,
Mas quem? Quem são essas crianças?

Alguém caiu. Não pisem na muleta!
Coroa do santo, chifre do capeta
E o andor e a cruz das procissões!
Passa um, passam dois e passa vaca sem tetas.
E abram as salas, os salões e as saletas!
E tragam as fotos antigas das missões!

Mas o pranto já embaça essa luneta.
Nem velhos, nem meninos, nem sarjeta.
Só abraços de partida, mil adeuses,
Cenas turvas, tela cinza e preta,
Fumaça, neblina, silhueta,
Meninas morenas da infância, mitos, deuses.

Lembranças esparsas, tostões, gorjeta
De um tempo feliz que se projeta
E me mata de dor muitas vezes.
Inda que tente transpor a mureta,
Já não ouço a banda da retreta,
Vou bebendo, da vida, seus reveses.
..........................................................................
(Brasília, mar/2003. De vez em quando, o poeta tem de parar para fazer os devidos registros. Afinal, ele é o escrivão do cartório da vida.)