terça-feira, fevereiro 13, 2007

Tempo Voraz

Lavei a alma nas águas do rio,
Limpei o corpo no algodão das nuvens,
Sorvi o ar da madrugada, o frio.
Ouvi, na tarde, uma canção além...
Senti, do tempo, a lerdeza...
Úmido e morno a passar,
A se arrastar, com desdém,
Atrás dos relógios, lento.
Na porta da igreja chorei
Pelas missas domingueiras,
Pelas procissões,
Pelo terno branco,
Pelo Padre Roque,
Pelos leilões.

Ah! Tempo voraz...
Que doces lembranças daqueles dias
Que me levaste,
Que não voltam mais!

Brinquei de ura nos becos estreitos,
Joguei bola de meia nas praças,
Com velhos fantasmas, amigos do peito,
Andei ruas,
Corri campos,
Colhi frutas.
Menino, voltei à escola,
Ao velho prédio amarelo,
Que ainda resiste,
Imponente, decadente e triste,
Ali... Saudosamente belo,
Respeitoso como um túmulo.
Ouçam! Das velhas paredes
Ecoam eternas lições
De D. Albertina,
De D. Gerúsia,
De D. Diozinha...

Ah! Tempo voraz!
Que doce saudade dos companheiros,
Que se encantaram,
Que não voltam mais!

O velho sobrado já não mete medo,
Até faz graça o coronel com seu bigodão,
E João-Cabelo-Azul e João-Queridão
E os joões e marias das histórias
Que meu pai contava,
Que mamãe contava,
Que vovó contava
Pra nos entreter, nos acalmar,
Nas noites de brumas,
Sob o querosene.
Dormi, criança, e sonhei
Com lindos dias azuis.
Na rua das minhas saudades
Revi o passado morto.
Refizeram (sem graça)
A calçada de pedra
Do primeiro beijo,
Do primeiro amor.

Ah! Tempo voraz!
Que doce memória dos meus verdes anos,
Que me levaste,
Que não voltam mais.

No entardecer sonolento,
Ouvi o bando alegre
Das andorinhas trelosas,
Em seu fragor barulhento,
E as badaladas das seis,
Longe, muito longe...
Nas lembranças chuvosas
Dos meus oito anos.
No amanhecer vermelhado
Senti o frescor do orvalho
Dos jasmineiros floridos nos quintais
E os passarinhos cantando na algaroba,
E os bezerros berrando nos currais,
E o meu pai na luta da fazenda,
E mamãe na faina da cozinha,
E a fumaça nas chaminés das casinhas,
E Dindinha no estrado, a fazer renda,
E Vó Liza a preparar suas verdinhas.

Ah! Tempo voraz!
Como era linda a infância,
Que ficou velha,
Que não volta mais!

Com o olhar nos anis horizontes da Serra
Com o cheiro de terra no nariz,
Volto aos fronts sutis dessa guerra
Atual e fera, em que me vejo, atroz,
Firme e forte a desfazer os nós
Dessa teia urdida nessa tarde gris,
Com a paz dos dias em que fui feliz.

Ah! Tempo voraz!
Entre as marcas de ferro que me deste,
Há uma forte, que ensina: Lutes!
E por isso a dor e os embates,
Por mais que me alquebrem e acicatem,
Até que me enterrem nessas terras férteis,
Hão de conhecer essa energia bruta,
E mesmo morto viverei nas portas,
Nas pedras, nas pontes, nos postes,
Como um eco eterno dos eternos ais,
Eternizando os tempos que não voltam mais.
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(Brasília, fev/2004. Sem raízes não há planta, não há fruto, não há nada.)

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