sábado, fevereiro 24, 2007

O Causo do Auto Lípido

Tudo começou quando o chefe, geólogo Natan Oliveira, leu o radiograma[1] de pedido de material, recém-posto em sua mesa, com o carimbo de urgente. Não entendendo um dos itens, achou melhor tirar a dúvida com o operador do rádio.
-Ô Marcelo, confirme, por favor, com o Zé Garcia, lá no acampamento de Palmeiras, o que é aí esse tal de auto-lípido, que tá nesse pedido urgente aqui na minha mesa. Depois me ligue, ok?
-Ó kapa[2], Dr. Natan. Daqui a pouco confirmo com o Senhor.
Dez minutos depois, Marcelo dá retorno:
-Negativo Dr. Natan. O Zé Garcia informou que Dr. Mato Grosso, que fez o pedido, teve de ir a Minaçu, lá na mina da ONÇA e só volta daqui a dois dias. Mas ele repetiu pra mim, na fonética[3]: alfa, uniforme, tango, Oscar, horizontal, lima, índia, papa, índia, delta, Oscar, ok?
-Ok, obrigado.
Conferiu novamente a listagem: 2 pincéis estreitos, 1 pincel largo, 2 brochas, 3 latas de tinta azul, cal virgem, flanelas, espátulas, 1 escada, querosene, etc, etc e 10 frascos de auto-lípido.
-Que porra será isso? Algum tipo de tinta?!
Apesar de intrigado, Natan não quis perder tempo, entendendo que isso era um problema do Valdir, da Seção de Compras. Sem mais delongas, sapecou no verso um “autorizo compra”, e mandou Dona Gláucia passar o pedido para frente, imediatamente.
-Auto-lípido?! Valdir pensou em voz alta. Que porra é essa?
Conferiu a listagem e telefonou pro Marcelo.
-Negativo, seu Valdir. Já chequei pro Dr. Natan. É isso mesmo: a-u-t-o-l-i-p-i-d-o. Ok?
Só por curiosidade, antes de passar o pedido para o Mano, responsável pelas compras do projeto Palmeiras, o Valdir resolveu consultar seus catálogos de produtos. Verificou na Casa das Tintas. Neca. Na Goiás Tintas. Neca. Só Tintas. Neca. E assim foi por mais de dez catálogos. Neca e neca e neca. Disfarçadamente, assim como quem não quer nada, deu uma consultada com Pepe Cachorro, seu colega de Seção, que estava profundamente absorto, preenchendo uma tabela:
-Pepão, cê sabe se ainda tem auto-lípido em nosso estoque?
-Auto-lípido?!. Que porra que é isso?
-Deixa pra lá Cachorro! Continue preenchendo sua tabela.
Chamou o Mano e determinou, enérgico:
-Dê prioridade a esse pedido de Palmeiras, por favor. Se possível pra hoje ainda, que o Dr. Natan tem pressa e amanhã Zelão tá seguindo pra lá com o carro vazio, tá bom?
Levantou-se rápido, para ir ao banheiro, antes de ouvir a pergunta fatal:
-Auto-lípido?!. Que porra que é isso? Mano franziu o cenho, mas o Valdir já tinha desaparecido.
De volta a sua sala, liga para o Marcelo, que já vai adiantando: - É auto-lípido mesmo, pô!. Já conferi com o Zé Garcia.
Depois de repetir todo o ritual do Valdir, consultando os catálogos, resolve passar a peteca para o Ademir que, afinal, é quem vai mesmo ter de ir ao balcão pegar a mercadoria.
-Dema! Tem uma comprinha aqui pra ser feita ainda hoje pra seguir para Palmeiras amanhã, com o Zelão. Tá aqui a lista, mas vai logo, que o Dr. Natan tá com pressa!
Já ia saindo pra ir ao banheiro também, mas não deu tempo de escapar da pergunta:
-Auto-lípido?! Que porra é essa?
-Deixa de ser trouxa, rapaz! Vai logo, vai!
Meio cabreiro, o Ademir saiu ali pelos corredores, pedindo informações aos geólogos que encontrava.
Auto-lípido?! Bem, saber com certeza, ninguém sabia, mas também ninguém deixou de especular. Afinal, geólogo que é geólogo, nunca deixa de opinar sobre qualquer coisa.
-Deve ser revelador de filme DDI, usado na sondagem, disparou Cidoca, circunspecto.
-Pra mim, é uma pasta de polir carros. Deve ser para lavar os Toyotas do acampamento, arriscou Gigi, com firmeza.
-Se não me engano, arrematou o João Cri-Cri, auto-lípido é uma cola especial que, após certo tempo, se dissolve e tudo que ela tiver grudado desgruda automaticamente.
Renatão foi mais científico: -Acho que é um diluente orgânico, usado na preparação de amostras geoquímicas.
Êh geologada! Gente boa, mas vai gostar de chutar assim na PQP!
Ademir já tinha se arrependido de fazer perguntas e ia saindo pra rua, quando o Eli lhe salvou a pátria:
-Olha seu Ademir, lá no Canadá, onde acabei de fazer um curso, ouvi falar desse produto. É um solvente especial que...
Ademir nem esperou a conclusão. Tava explicado: Solvente de tintas! Por isso estava junto com o pedido de tintas, pincéis e etc. Se mandou pra Casa das Tintas.
Na loja, dirigiu-se, confiante, ao vendedor, seu velho conhecido:
-Perebinha! Vê pra mim aqui esse pedido, que eu tô com pressa! Ah! Esse auto-lípido aí, eu quero do canadense, tá bom? Daquele nacional que vocês me venderam aqui outro dia, eu não quero não. Pense num auto-lipidozinho vagabundo rapaz!
-Auto-lípido?! O vendedor já ia soltar a segunda parte, quando se lembrou que, afinal, ele era vendedor e vendedor tem de conhecer todos os produtos. Lá nos fundos da loja, correu a consultar o gerente, que se mostrou surpreso, tanto quanto ele próprio. Vão ao escritório, consultam catálogos, fazem alguns telefonemas, discutem e... Bem, ninguém sabia que porra era essa.
Daí a uns quarenta minutos, lá vem Perebinha com a lista de produtos, em várias caixas que deposita sobre o balcão:
-Ó aqui Dema, seu pedido tá prontinho. Só que, infelizmente, o auto-lípido canadense nós estamos em falta. Estamos aguardando chegar nesse fim de semana, tá bom?
Na segunda, na terceira, na quarta e em todas as casas de tintas da cidade, Ademir ouviu sempre as mesmas respostas dos constrangidos vendedores:
-Nosso auto-lípido está em falta, mas na próxima semana, pode passar aqui!
Na parte da tarde desse mesmo dia, na Empresa, lá estão Natan e Valdir conversando no cafezinho, quando surge o chefe da Divisão de Administração, mais conhecido como Cabeção. Inteirando-se do problema do auto-lípido, ele dá uma pragmática sugestão:
-O problema é simples pô! Se é canadense, vamos fazer uma consulta à CACEX e ver se é muito difícil importar logo um bom estoque de auto-lípido. Pode deixar comigo que eu faço a consulta.
Dez minutos depois, ele liga pro Natan:
-Natanzinho, graças a um chapa que tenho lá dentro, a CACEX libera até cem frascos. Se quiser é só me dar as especificações que eu encaminho, tá bom?
O Superintendente, informado pelo Cabeção, procura dar força ao Natan:
-Tanzinho, meu filho, por que não me falou antes, cara? Olha, o Cabeça já me colocou a par, viu? Se precisar desobstruir algum caminho aí, eu falo com o general Fraga, sogro da minha irmã. Altos escalões do SNI... Mande as ordens!
Muito bem. Deixemos os técnicos com suas preocupações e voltemos aos gerentes das lojas de tintas da cidade. Estes, assim que o Ademir deu as costas, ligaram imediatamente para seus fornecedores em São Paulo, com a mesma reclamação:
-Pô! Então, lançam um novo tipo de solvente na praça e vocês não me mandam!? Toda a concorrência já tem e eu perdendo clientes! E blá-blá-blá, blá-blá-blá, de forma que me providenciem, até o fim de semana, um bom estoque de auto-lípido canadense, sem falta!
-Auto-lípido?! Os fornecedores ficaram assustados. De repente, uma saraivada de telefonemas cobrando estoques desse produto. Que porra será isso? Depois de algumas consultas mútuas, resolveram pelo caminho direto:
-Vamos consultar a Embaixada Canadense, sugeriu o presidente do Sindicato Nacional do Comércio de Tintas e Similares, SINDTINTAS.
O Embaixador, tirado às pressas de uma reunião com a vice-consulesa do Congo, ficou uma fera.
-Estão exportando auto-lípido para o Brasil e não avisam a Embaixada? Só pode ser contrabando. Vamos alertar a Polícia Federal. Liguem para meu amigo, Messier Tumá!
No dia seguinte, eis o temido Comissário Queiroga abrindo uma reunião de emergência, com seus melhores agentes, a pedido especial do Ministério da Justiça:
-Rapazes, vocês têm a honra de integrarem, a partir de agora, a OSACAL, Operação Secreta Anti Contrabando de Auto-Lípido.
-Auto-lípido?! Que porra é essa?
-Blitz ostensiva nas fronteiras. Contrabando industrial do grosso. Gente graúda envolvida e coisa e tal. Senha da operação: “sentei na tinta fresca, companheiro”. Contra-senha: “melhor do que sentar na merda, amigão”. Algum dúvida?
Quatro dias depois de deflagrada a OSACAL, o Natan recebe um telefonema do Marcelo:
-Dr. Natan, Dr. Mato Grosso está no acampamento de Palmeiras e deseja um QSO[4] com o senhor, no rádio agora. Pode ser?
-Positivo, Marcelo, pode passar.
Marcelo conecta e Natan chama:
-Atento 691, é 476.[5]
-Ok Natan. Aqui é o Mato Grosso operando. Como vão as coisas aí? Câmbio.[6]
-Positivo Mato Grosso. Por aqui vai tudo porreta meirmão. Tudo na mesma. Recebeu o material que mandei pelo Zelão? Câmbio.
-Ó kapa Natan. Cem por cento. Recebi esse material por acá[7], hem? Já fiz a conferência e tá tudo certo. Só não vi os frascos de Autan líquido. Tá em falta aí em Goiânia? Vê se arranja logo, que as muriçocas por acá estão brabas. Entendido? Câmbio.
Natan, pensando em voz alta:
-Autan líquido??? Puta que pariu!
Bem, para a empresa o caso ficou inteiramente resolvido e esclarecido.
Quanto ao rolo entre gerentes de lojas de tintas, seus fornecedores, Embaixada Canadense, Polícia Federal e o escambau, ninguém sabe como terminou, se é que terminou. O certo é que, duas semanas após a deflagração da OSACAL, aparecia nas páginas policiais dos principais jornais do país:
“Interpol prende três bolivianos e dois paraguaios, transportando 10 ton de maconha em falsas latas de tintas, numa das maiores operações conjuntas das polícias sul-americanas de todos os tempos. Dr Tuma afirma que a operação levou dois anos para ser montada e garante que sua atuação será por tempo indeterminado.”
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Notas de rodapé[1] Radiograma era um formulário de comunicação transmitido por rádio.[2] Ó kapa, na comunicação por rádio significa OK. Geralmente os operadores utilizam essa expressão como jargão para o início das frases, assim como “positivo!”.[3] Na fonética das transmissões por rádio, alfa representa a letra A; beta, a letra B; Charles, o C e assim por diante. Horizontal significa o hífen.[4] QSO, no código das radiotransmissões, significa bate-papo.[5] Esse era o chavão para a chamada da estação de Palmeiras, pela estação sede.[6] Câmbio é o sinal que o interlocutor dá para passar a palavra para o outro interlocutor.[7] Acá é um chavão que significa aqui.

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