Início de 1977. Precisava reconhecer quase uma centena de alvarás de pesquisa, no nordeste de Goiás, com geologia preliminar, geoquímica de solo, sedimentos de corrente e perfis de cintilometria. Por conveniência logística, a base operacional dessa campanha foi estabelecida na cidade de Natividade. No mapa, uma cidade. Na verdade, um ex-quilombo encravado entre serras e vales esquecidos do mundo, sem a mínima infra-estrutura. Mesmo para a década de 70, Natividade era uma volta no tempo, um aglomerado de casas velhas, sem arruamento, cheia de mato, sem energia e água encanada.
Havia esqueletos de construções antigas, de paredes de pedra, entre as quais uma igreja, que era objeto de culto local. O pouco de modernidade que ali se via era devido à recente estrada, que vinha de Dianópolis e dava acesso a Porto Nacional. Ao seu redor se instalou um posto de combustível e uma pensão que vendia “cama”. O hóspede não pagava pela hospedagem e sim pela dormida. O detalhe é que o pagante não tinha direito de escolher seu companheiro de quarto e não podia recusar ninguém, a não ser que pagasse pela cama vazia.
Resolvemos alugar um imóvel, um casarão, no oitão da igreja, com mais de 10 cômodos e um quintal que era uma verdadeira mata. O dono morava em Goiânia, e fazia cinco anos que o local não era habitado. Não era o paraíso mas, por absoluta falta de opções, aluguamos. O valor era tão irrisório que talvez, se eu pleiteasse morar de graça, não faria diferença. Como se fosse hoje, R$ 50,00, mais ou menos.
Mandamos dar uma limpeza geral, incluindo pintura nova, mas nada que alterasse o aspecto mal-assombrado daquela construção cheia de sótãos misteriosos, lacrados. Era rodeado de mangueiras centenárias que cobriam quase todo o telhado e faziam barulhos assustadores de noite. Para suprir a falta de energia, trouxemos vários lampiões a gás, daqueles de camisinha (não confundir com camisa de vênus) que alguns hão de se lembrar.
Para completar a lugubridade do lugar, a igreja ao lado, era infestada de corujas e morcegos, que faziam uma festa todas as noites, noites que levavam dias para passar. É que o tempo ali, parece que obedecia a outro relógio, muito mais lento.
Na primeira semana de ocupação do imóvel, tive a companhia de dois técnicos em mineração, mas no sábado seguinte eles foram deslocados para a região de Almas, outro remanescente de velhos quilombos, cerca de 50 km de Natividade. O nome já diz tudo. Nunca fui de me impressionar com o sobrenatural, mas confesso que para dormir sozinho naquele casarão, tomava sempre uns bons goles para catalisar o sono e apagar os ruídos sinistros dos ratos no sótão, das corujas na igreja vizinha e dos galhos das mangueiras roçando o telhado e outros, inexplicáveis, como passos, risadas, sussurros...
Detalhe importante para o causo que se vai contar: a casa, originalmente, não tinha banheiro. Os donos atuais construíram no quintal um cômodo com uma caixa d’água, abastecida manualmente, sob a qual adaptou um balde de metal, furado embaixo, simulando um chuveiro. Uma fossa coberta, com um aparelho sanitário adaptado, sem descarga, completava o aposento destinado à higiene. Agora, imaginem ter de atravessar cerca de 10 metros ao ar livre, no escuro, por um capinzal, para chegar a esse local, no meio da madrugada!
E assim fomos tocando a vida, até que anunciaram a vinda de uma comitiva da sede da empresa, diretamente do Canadá, para supervisionar os trabalhos no Brasil. Junto com a comitiva, que fui apanhar em Brasília, veio minha amiga Mag*, geóloga argentina, sobre quem já falei em causos anteriores. Eles trouxeram um verdadeiro estoque de bebidas e comidas enlatadas, e achavam aquilo tudo muito exótico. Tiraram mil fotos da casa, da cidade, de tudo. Na noite da chegada, ninguém tomou banho. Primeiro pelo frio, segundo pelo inconveniente do banheiro externo.
Dia seguinte, cinco e meia, já estávamos todos de pé, que a jornada ia ser longa. Enquanto a empregada preparava o almoço (isso mesmo, almoço: carne de sol, arroz, cuscuz, macaxeira, ovos mexidos, etc). Mag se adiantou e foi tomar banho, tendo antes aquecido um pouco de água no fogão a lenha, por causa do frio.
Passados cerca de cinco minutos, estávamos todos reunidos ao redor da imensa mesa da cozinha, tomando um cafezinho, quando se deu uma cena inesquecível, pelo susto e pela bizarrice. Primeiro, ouviu-se um baque surdo na porta do banheiro, com se alguém desferisse contra ela um violento chute ou algo assim. Ao mesmo tempo, a Mag disparou um grito tão agudo e apavorante que nos paralisou a todos. A coisa foi muito repentina. Seus gritos agora eram seguidos, de puro terror. Não distinguíamos o que ela dizia, apenas vimos que a situação era deveras preocupante pelo tom da voz e pelo barulho, com se ela lutasse contra algo... Ou alguém. Passado o susto, todos nos precipitamos para o quintal. Minha dedução era de que havia uma cobra no banheiro, o que não seria nenhum absurdo, segundo os relatos que já tinha ouvido da empregada.
A cena mais bizarra estava por vir, no entanto. Quando estávamos a meio caminho, a Mag sai do banheiro, nua, completamente descontrolada, a mão esquerda tentando segurar a toalha na frente e a direita sacudindo o cabelo, como se tentasse expelir algo da cabeça, que não conseguíamos ver. Ela estava em estado de choque. Tão apavorada que parece que nem nos via. A custo, a acalmamos, após lhe providenciar toalhas e roupas para se recompor. Enquanto os colegas cuidavam dela, fui ao banheiro ver a causa de tanto pavor. Lá estava no chão, ainda se mexendo, mas bastante ferida, uma também apavorada caranguejeira, imensa, daquelas vermelhas, realmente assustadora.
Quando conseguiu finalmente, articular as palavras, após um reconfortante cafezinho, ela nos contou que enquanto se ensaboava, a caranguejeira caiu do telhado sobre sua cabeça. Ao tentar tirá-la, ainda sem saber do que se tratava, levou uma ferroada na mão. Quando se apercebeu do que se dera, perdeu o controle e o resto foi o que se viu. Levou um bom tempo para superar o trauma. Ríamos, dizendo que ela fora atacada por uma caranguejeira tarada. A picada não teve conseqüência maior, a não ser um leve inchaço. Desse dia em diante, tínhamos de fazer minuciosa vistoria no telhado, além de montar guarda nas proximidades, para que ela voltasse a usar aquele sinistro aposento. Mas ela era valente e não entregou os pontos. Resignada, dizia:
- Quien mandou hacer geologia?
Pois é... Uma guerreira, essa Mag.
Havia esqueletos de construções antigas, de paredes de pedra, entre as quais uma igreja, que era objeto de culto local. O pouco de modernidade que ali se via era devido à recente estrada, que vinha de Dianópolis e dava acesso a Porto Nacional. Ao seu redor se instalou um posto de combustível e uma pensão que vendia “cama”. O hóspede não pagava pela hospedagem e sim pela dormida. O detalhe é que o pagante não tinha direito de escolher seu companheiro de quarto e não podia recusar ninguém, a não ser que pagasse pela cama vazia.
Resolvemos alugar um imóvel, um casarão, no oitão da igreja, com mais de 10 cômodos e um quintal que era uma verdadeira mata. O dono morava em Goiânia, e fazia cinco anos que o local não era habitado. Não era o paraíso mas, por absoluta falta de opções, aluguamos. O valor era tão irrisório que talvez, se eu pleiteasse morar de graça, não faria diferença. Como se fosse hoje, R$ 50,00, mais ou menos.
Mandamos dar uma limpeza geral, incluindo pintura nova, mas nada que alterasse o aspecto mal-assombrado daquela construção cheia de sótãos misteriosos, lacrados. Era rodeado de mangueiras centenárias que cobriam quase todo o telhado e faziam barulhos assustadores de noite. Para suprir a falta de energia, trouxemos vários lampiões a gás, daqueles de camisinha (não confundir com camisa de vênus) que alguns hão de se lembrar.
Para completar a lugubridade do lugar, a igreja ao lado, era infestada de corujas e morcegos, que faziam uma festa todas as noites, noites que levavam dias para passar. É que o tempo ali, parece que obedecia a outro relógio, muito mais lento.
Na primeira semana de ocupação do imóvel, tive a companhia de dois técnicos em mineração, mas no sábado seguinte eles foram deslocados para a região de Almas, outro remanescente de velhos quilombos, cerca de 50 km de Natividade. O nome já diz tudo. Nunca fui de me impressionar com o sobrenatural, mas confesso que para dormir sozinho naquele casarão, tomava sempre uns bons goles para catalisar o sono e apagar os ruídos sinistros dos ratos no sótão, das corujas na igreja vizinha e dos galhos das mangueiras roçando o telhado e outros, inexplicáveis, como passos, risadas, sussurros...
Detalhe importante para o causo que se vai contar: a casa, originalmente, não tinha banheiro. Os donos atuais construíram no quintal um cômodo com uma caixa d’água, abastecida manualmente, sob a qual adaptou um balde de metal, furado embaixo, simulando um chuveiro. Uma fossa coberta, com um aparelho sanitário adaptado, sem descarga, completava o aposento destinado à higiene. Agora, imaginem ter de atravessar cerca de 10 metros ao ar livre, no escuro, por um capinzal, para chegar a esse local, no meio da madrugada!
E assim fomos tocando a vida, até que anunciaram a vinda de uma comitiva da sede da empresa, diretamente do Canadá, para supervisionar os trabalhos no Brasil. Junto com a comitiva, que fui apanhar em Brasília, veio minha amiga Mag*, geóloga argentina, sobre quem já falei em causos anteriores. Eles trouxeram um verdadeiro estoque de bebidas e comidas enlatadas, e achavam aquilo tudo muito exótico. Tiraram mil fotos da casa, da cidade, de tudo. Na noite da chegada, ninguém tomou banho. Primeiro pelo frio, segundo pelo inconveniente do banheiro externo.
Dia seguinte, cinco e meia, já estávamos todos de pé, que a jornada ia ser longa. Enquanto a empregada preparava o almoço (isso mesmo, almoço: carne de sol, arroz, cuscuz, macaxeira, ovos mexidos, etc). Mag se adiantou e foi tomar banho, tendo antes aquecido um pouco de água no fogão a lenha, por causa do frio.
Passados cerca de cinco minutos, estávamos todos reunidos ao redor da imensa mesa da cozinha, tomando um cafezinho, quando se deu uma cena inesquecível, pelo susto e pela bizarrice. Primeiro, ouviu-se um baque surdo na porta do banheiro, com se alguém desferisse contra ela um violento chute ou algo assim. Ao mesmo tempo, a Mag disparou um grito tão agudo e apavorante que nos paralisou a todos. A coisa foi muito repentina. Seus gritos agora eram seguidos, de puro terror. Não distinguíamos o que ela dizia, apenas vimos que a situação era deveras preocupante pelo tom da voz e pelo barulho, com se ela lutasse contra algo... Ou alguém. Passado o susto, todos nos precipitamos para o quintal. Minha dedução era de que havia uma cobra no banheiro, o que não seria nenhum absurdo, segundo os relatos que já tinha ouvido da empregada.
A cena mais bizarra estava por vir, no entanto. Quando estávamos a meio caminho, a Mag sai do banheiro, nua, completamente descontrolada, a mão esquerda tentando segurar a toalha na frente e a direita sacudindo o cabelo, como se tentasse expelir algo da cabeça, que não conseguíamos ver. Ela estava em estado de choque. Tão apavorada que parece que nem nos via. A custo, a acalmamos, após lhe providenciar toalhas e roupas para se recompor. Enquanto os colegas cuidavam dela, fui ao banheiro ver a causa de tanto pavor. Lá estava no chão, ainda se mexendo, mas bastante ferida, uma também apavorada caranguejeira, imensa, daquelas vermelhas, realmente assustadora.
Quando conseguiu finalmente, articular as palavras, após um reconfortante cafezinho, ela nos contou que enquanto se ensaboava, a caranguejeira caiu do telhado sobre sua cabeça. Ao tentar tirá-la, ainda sem saber do que se tratava, levou uma ferroada na mão. Quando se apercebeu do que se dera, perdeu o controle e o resto foi o que se viu. Levou um bom tempo para superar o trauma. Ríamos, dizendo que ela fora atacada por uma caranguejeira tarada. A picada não teve conseqüência maior, a não ser um leve inchaço. Desse dia em diante, tínhamos de fazer minuciosa vistoria no telhado, além de montar guarda nas proximidades, para que ela voltasse a usar aquele sinistro aposento. Mas ela era valente e não entregou os pontos. Resignada, dizia:
- Quien mandou hacer geologia?
Pois é... Uma guerreira, essa Mag.
* Nome fictício
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