domingo, abril 29, 2007

Flechas, pra que te quero!

Recém-formado, 1976, fui trabalhar no sul do Pará, numa empresa canadense, do ramo de pesquisa mineral. Ali, no polígono formado por Conceição do Araguaia, Redenção, Rio Maria, Marabá, Transamazônica e Belém-Brasília. Chamava a atenção, na época, a quantidade de índios desocupados que viviam vagando pelas estradas, consequência da desagregação social e cultural provocada pela abertura da rodovia Transamazônica. O contato com o homem branco fora fatal para as comunidades que viviam ali isoladas, sobrevivendo dos rios e da floresta. Constrangia ver levas de índios bêbados e indiazinhas prostituídas, servindo aos caminhoneiros, garimpeiros e peões que por ali transitavam, de forma aventureira e irresponsável. Era só armar o acampamento e logo eles se chegavam, rondando, espiando, entrando e pegando tudo que lhes chamassem a atenção. A comunicação era gestual, intuitiva. Mas eles sabiam umas palavras-chaves, entre elas, aguardente. É claro que sempre tinha um estoque conosco, que ninguém é de ferro. Tínhamos que esconder, porque se déssemos bobeira eles pegavam e levavam, numa boa.
Detalhe: tudo o que lhes agradassem, eles simplesmente pegavam e levavam. Não saíam escondidos, correndo, nada disso. Saíam normalmente, como se estivessem levando algo seu. No dia seguinte traziam um monte de flechas e outros artesanatos tribais e deixavam conosco, sem ninguém pedir. Logo entendi que eles consideravam uma troca justa, levar o que quisessem e trazer o que, para eles, constituía valor equivalente. Digo isso porque a quantidade de flechas trazidas, dependia do que eles levassem. Utensílios de cozinha e aguardente valiam mais flechas do que, por exemplo, toalhas de banho.
Tentei contratar alguns para trabalhar como braçais, mas desisti. Eles não têm a cultura da prestação de serviço, do respeito ao horário, do compromisso com a produção, enfim esses valores da sociedade, dita civilizada. Não usavam o terçado (tipo de facão usado na Amazônia). Faziam tudo com as mãos, ou com as ferramentas próprias. Enquanto íamos todos pela picada, eles sumiam no meio da mata e só reapareciam quando queriam. Não davam satisfação. Quando atingíamos a margem de um rio, era uma festa. Eles pulavam na água do jeito que estavam e ficavam fazendo competições, brincando, gritando, se agarrando, mergulhando. Era só pedir, e eles mergulhavam e voltavam, um minuto depois, com um peixe espetado numa vara. Não perdiam um mergulho. Acabei me acostumando com eles e tivemos ótima convivência. Além dos bons amigos, levei daquela região os nomes do meus primeiros três filhos. Isso basta para dizer como me são caras essas recordações.
Certa vez, deixei a equipe no acampamento, entre Rio Maria e Marabá e me deslocava para Araguaína, sozinho, numa Rural Willys, para despachar amostras, fazer compras e telefonar para minha sede (Rio de Janeiro). Convém lembrar que, naquela época, telefone só em algumas cidades, em postos públicos. A estrada era de terra, toda esburacada, de modo que andávamos sempre em baixíssima velocidade. Foi o que me salvou de atropelar um bando de índios, provocando uma tragédia. O fato é que numa curva bem fechada, dessas que você não tem a menor visibilidade, dou com umas dezenas de índios (homens, mulheres, idosos e crianças), de braços dados, ocupando toda a estrada, gritando em uníssono, ameaçadores, batendo os pés no chão:
- Hu, hu, hu, hu, hu, hu!
Quando consegui frear a Rural, já tinha um índio com o pé no pára-choque. Acho que se eu tivesse ao menos a 40 km/h, não teria conseguido parar a tempo. Debaixo do banco havia uma espingarda e um revólver, mas não tinha a menor possibilidade de usá-los, naquelas circunstâncias.
Pensei que fosse um sequestro. Na fração de minuto que durou até que eles invadissem o carro, rezei todas as orações de que me lembrei, pedindo a Deus que, se fossem me matar, não me fizessem morte cruel, essas coisas que nos vêm à mente quando nos vemos sem saída.
Simplesmente eles começaram a entrar no carro. Tinha um líder que ia determinando quem entrava. Quando controlei a respiração, tentei puxar conversa, pois já havia mais de 10 criaturas apinhadas, não sei como, nos dois bancos, mas ninguém arranhava o português. Mencionei "aguardente" várias vezes, mas também não despertei o interesse. Solenemente me ignoraram. Quando o líder não conseguiu mais empurrar ninguém para dentro, trocou umas palavras com alguém que se postou a meu lado no banco da frente e liberou a estrada. Esse meu vizinho de banco indicou com a mão que eu tocasse em frente, sem nem ao menos olhar na minha cara.
O feixe de molas da Rural ficou horizontalizado de tanto peso. Estimo que devem ter entrado umas quinze pessoas, mais as flechas e demais apetrechos que carregavam. Eu só conseguia andar em primeira e segunda. Não tinha dúvidas de que era, de fato, um sequestro. Minha cabeça queimava, a 50º, tentando achar uma saída. Meu plano inicial era provocar um acidente, de raspão, com algum carro que cruzasse comigo, mas não apareceu carro algum. Enquanto isso, a turba começou a tagarelar e a mexer nas coisas que estavam na parte traseira do carro (um saco de amostras de solo, ferramentas e tralhas de acampamento). Para piorar meu pequeno drama kafkiano, o fedor era de matar. Acho que aquele bando não tomava banho há meses. Já estava com o estômago embrulhando, querendo vomitar. E nada de passar um carro.
Andei cerca de uma hora, suponho que uns 15 km, por buracos, pontes quebradas, vau de rios, sem atinar com uma saída honrosa. Eram eles que decidiam se eu devia passar pelas pontes ou pelos vaus. Eu simplesmente obedecia. E rezava, claro. Finalmente, me sinalizaram para pegar um ramal à esquerda, onde tinha uma placa sinalizando um posto da FUNAI a 1 km. Aí foi aquele alívio! Finalmente entendi que eles queriam apenas ser transportados para o posto. Não era um sequestro! Agradeci a Deus e os conduzi, com alegria, até à porta do posto, que logo avistei, num descampado próximo. Lá, uma funcionária me explicou que havia uma grande liderança daquela tribo doente (txucarramãe) e que as autoridades médicas da oca iriam fazer uma pajelança naquela noite. Aí reparei que o terreiro estava preparado, como se fosse haver uma festa pagã.
Esqueci de dizer um detalhe. Quando eles desceram da Rural, cada um saiu com alguma coisa na mão. Pegaram tudo que havia lá dentro. Só deixaram as amostras. Em compensação, ficaram mais de 10 flechas, tacapes e bordunas, como pagamento. Mas eu estava tão aliviado, que nem liguei. E ainda prometi que voltaria para trazer o restante que ficara na estrada. Eles acharam maravilhoso e me deram mais umas tantas flechas.
Realmente, voltei com a firme intenção de cumprir o prometido, mas quando cheguei no entroncamento com a estrada principal e pensei no que ia me meter... Mudei de idéia. Imaginei a catinga no carro, o carro quebrando e eu ficando sem pai nem mãe naquele fim de mundo. Já era mais de meio-dia e ali escurece por volta de 15h00, por causa da floresta. Me piquei pra Araguatins, onde já tinha uns conhecidos e ali dormi o sono dos justos, no "Dormitório Boa Noite", de D. Nanci e Seu Tança, grandes amigos que ali fizera, meses atrás. Não sem antes tomar uma cervejinha natural, pra relaxar (querosene para a geladeira era raro naquelas bandas, embora a cerveja nunca faltasse). Me reservaram a suíte da Casa, com direito a cortinado (pra proteger das carapanãs), colchão de macela, vela extra e urinol (alguém se lembra?) debaixo da cama. Um luxo!
Uma semana depois, quando tive de retornar pela mesma Transamazônica, me precavi. Na balsa do Araguaia, conversei com uns caminhoneiros e fomos de comboio até Marabá. A propósito, em Araguaína doei todas as flechas que ganhei. Hoje me arrependo. Seriam uma recordação viva daqueles tempos difíceis, mas na época, o que eu iria fazer com aquilo, ocupando espaço no carro já atulhado? Sinto muito. Se tenho saudade? Tenho sim, mas a falta de ar por que passei, naquela hora fatídica, pensando estar sendo sequestrado, até hoje me persegue, em sonhos agitados.

sábado, abril 28, 2007

Meu Troller de chocolate

Foi um sonho lindo...
Comprei um Troller de chocolate com cereja
E, com meu amor a bordo,
Fomos desbravar os céus.
Fizemos trilhas nas nuvens de algodão
E escalamos as crateras lunares
Nas ancas do cavalo de São Jorge,
Que nos abençoou.
E descemos aos céus da terra.
Ao pé dos Andes, tomamos vinho,
Nos vales do Chile.
Nas coxilhas gaúchas, tomamos mate,
Nos vales do Sul.
Na Chapada, tomamos pinga,
Nos vales sem fim.
Em Santa Teresa, tomamos chope,
E um café no Flamengo...
E meu Troller não parava...
E era tanto amor que ficamos bêbados.
Mas, quando íamos para a terra dos violões encantados,
Veio um castigo
E um troço ruim me acometeu
E apodreci por dentro
E fiquei doente
E a magia se desfez
E tudo se acabou.
Meu Troller derreteu,
A nuvem evaporou,
O meu amor se foi...
E eu fiquei só.
Mas foi um sonho lindo,
Quem dera tê-lo outra vez!

sábado, abril 14, 2007

O segredo de César

Trabalhando nos arredores da cidade de Porangatu – GO, fiz amizade com César*, funcionário de uma das agências bancárias da cidade, transferido de Goiânia, havia um ano.
Todos os dias, na volta do campo, passava num boteco, na periferia da cidade, para tirar a poeira da garganta, lá estava César, com sua duas “molecas”, como ele dizia: uma caninha e uma cerveja. Quando queria renovar a mesa pedia:
- Seu Dino*! Uma moleca pequena! Seu Dino lhe trazia uma dose de cana.
Raramente ele estava acompanhado. O mais comum era vê-lo sozinho, tomando suas molecas, meditativo, olhar perdido no nada. Não era de muitos amigos. Via-se que carregava uma tristeza, um desgosto. Era novo, Talvez uns trinta anos, mas parecia ter mais.
O certo é que acabamos fazendo forte amizade. Ele sempre me esperava, mesmo em meus eventuais atrasos. Adorava me ouvir tocar violão. E eu tinha de atender seus pedidos que começavam, invariavelmente, com Boemia, de Nelson Gonçalves.
Eventualmente, dávamos uma esticada por outros botecos, mas nada que ultrapassasse as oito, nove horas. Era casado, mas nunca lhe conhecemos a esposa. Um dia, quando falávamos das nossas vidas, ele me relatou o motivo do seu “desgosto”, a causa da sua bebedeira diária. Compartilho agora esse segredo que guardei por tantos anos. Mais precisamente, desde 1978. Aliás, lembro que antes de soltar a língua, me fez jurar que jamais revelaria a ninguém o que iria ouvir. Jurei e cumpri. Faço-o agora, sob o manto do tempo e do nome fictício do meu saudoso amigo.
Era casado com uma vizinha de infância. Seu romance fora selado pela amizade dos pais e eles foram crescendo juntos e adolescendo juntos e juntos tornaram-se hippies, caíram na estrada. Sempre fiéis e apaixonados. O amor maior do mundo, dizia ele, emocionado. O tempo dos hippies passou. Vieram as necessidades e ele acabou entrando para o banco. Ela era professora primária. E suas vidas era um mar de rosas.
Até que um dia, não se sabe como nem por que, sua amada acabou seduzida por uma dessas igrejas xiitas. Não ia mais a festas, não via televisão, aboliu as roupas curtas, deixou de fazer as axilas e via, em tudo, influência do maligno. Nem a cervejinha, antes sagrada, entrava mais em casa.
- Regi, assim ele me chamava, minha vida acabou. Não tenho mais mulher.
- Mas o pior, continuou, é que nossa vida sexual, antes tão intensa, agora, virou simples rotina fisiológica. Não tem mais graça.
- Como assim, César?
- Quando já estou "subindo nas paredes", e dou a entender que quero... Quero... “trocar o óleo”, sabe o que ela faz?
- Não César, não tenho a menor idéia.
- Pois ela me faz ajoelhar ao lado da cama, coloca a bíblia sobre o ventre, repetindo umas frases que não entendo e por fim, exige que ponha a mão sobre a... Sobre a... Você sabe, né?
- Sei....
- E aí eu tenho de jurar que vou fazer com todo o respeito, sem intenção pecaminosa, em estrito cumprimento ao santo dever conjugal, nas leis de Deus. O diabo é que, depois do juramento, o tesão já foi embora. Onde já se viu invocar Deus numa hora dessas?
E arrematou, com um suspiro do fundo d’alma, depois de um lapada na moleca, o olhar perdido no nada:
- Ah muié marvada!
O minuto que se seguiu foi o silêncio mais completo e respeitoso que já se produziu no boteco de seu Dino, jamais igualado, em todos os tempos. Quebrado apenas pelo barulho das molecas escorrendo por nossas gargantas ávidas de consolo.
Em solidariedade ao meu amigo, tomei todas com ele naquela noite.
* Nome fictício

quinta-feira, abril 05, 2007

Aprendiz

Não sei se o olho é de cobra,
Não sei se o leite é de cabra,
Não sei se é abracadabra,
Se no escuro o medo medra,
Só sei que não sei de nada.

Se a vizinha é gorda ou magra,
Se o velho toma viagra,
Se cão que morde não ladra
Se vaso ruim não quebra,
Só sei que não sei de nada.

Não sei se a reza é do padre
Ou se o filho é do compadre
Se o azedo é do vinagre,
Se o peixe é dourado ou bagre,
Só sei que não sei de nada.

Não sei nem quero saber
Se a dor vai me surpreender,
Se no amor vou me perder,
Sei lá... se me arrepender,
Se o certo é ser ou não ser,
Se amar é bom se doer,
Não sei nem quero saber

Mas, moço, eu sei tudo dela...
Do arrastar da sua chinela,
Dos seus pés de Cinderela,
Sua cor de cravo e canela,
Seu moço, eu sei tudo dela.

Sei o cheiro do seu beijo,
Sei o gosto do seu cheiro.
Sua língua é puro tempero
Temperando meu desejo.
Seu olhar é feiticeiro
Seu rosto é tudo que vejo.

Os cachos dos seus cabelos
Parecem macios lençóis,
Ondas de mil caracóis
Na praia dos meus desvelos,
Onde eu enrosco meus dedos,
Cochichando mil segredos.

Seus olhos são de um negrume!
Duas bolas de betume,
Que me atraem como a luz
Que à mariposa seduz.
No imã desse pretume
Me enfeitiço, fico mudo,
Feito estátua, feito escudo.

É isso que eu sei, seu moço,
Nada mais quero saber.
Bom mesmo é sentir o gosto
Das frutinhas mussambê
Do enrosco do seu pescoço,
Enquanto lhe beijo a boca.
Seu cabelo descomposto,
Seu peito arfante, a voz rouca...
Bom mesmo é beijar-lhe a nuca,
Sentir-lhe a pele eriçada,
Sentir-lhe a mão no meu rosto,
Querendo mais ser beijada
Querendo mais... Muito mais...
Me achar e se perder.
É isso que eu sei seu moço
Nada mais quero saber.

Sei que a vida é muito curta
A chama logo se apaga
E é preciso ser feliz
Tudo está só por um triz
Futuro é palavra vaga,
Que o presente esmaga e encurta
Por isso há que se viver...
É isso que eu sei, seu moço,
Nada mais quero saber.
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(Rio, fev/2007)