Corria o ano da graça de 1979. O projeto Palmeirópolis ia de vento em popa, lá naquelas quebradas de Goiás, sertão bravo, trabalho duro. Geologia, geoquímica, geofísica, sondagem, topografia, poços, trincheiras, o escambau. No acampamento, em pleno chapadão do Morro Solto, chegou-se a ter mais de cem pessoas, que se distribuíam por seis alojamentos, entenda-se, barracos de palha, com cerca de 10 m de comprimento. Além dos alojamentos, tínhamos os escritórios, a cozinha, o depósito dos testemunhos de sondagem, outros depósitos, oficinas, garagens, enfim, no total eram uns vinte barracos, na verdade uma mini-cidade, ali naquelas solidões goianas. As únicas diversões, além do trabalho, claro, era um “tapa no beiço” dentro dos barracos, após o expediente e as visitas à cidade de Palmeirópolis, aos sábados, para um relax, que ninguém é de ferro.
A distribuição dos alojamentos era profissional, isto é, tinha o barraco dos geólogos e engenheiros (ou dos NS, de nível superior), dos técnicos, dos motoristas, e assim por diante. O dos técnicos ficava ao lado do dos NS e era o mais divertido de todos, porque a turma era grande, muito animada, criativa e sacana, no bom sentido. Viviam aprontando, uns com os outros. Dr. Litrão, o que mandava o “tapa no beiço”, dava consulta até tarde da noite. Em tempo, tarde da noite, naqueles ermos era oito horas, porque às nove já todos dormiam. O trampo era pesado e a movimentação no acampamento começava às cinco da matina.
Do barraco dos NS, ficávamos ouvindo a zorra dos técnicos e nos deliciando com as aprontações. Quem se atrasasse um pouquinho pra se deitar, dançava na certa. A cambada ficava quietinha, fingindo dormir, só aguardando o cristo entrar e se deitar. Catapum-puf! No mínimo, tinham quatro pilhas sob os pés da cama. Isto, na melhor das hipóteses, quando a dita cuja estava no seu respectivo lugar. Muitas vezes, principalmente nos fins de semana, o pato chegava e a cama estava pendurada no teto, suspensa por um mecanismo de roldana, especialmente desenvolvido.
O cristo preferido era o Nunes. Tudo o que tinham que aprontar era pra cima do coitado. Era apagar as luzes (gerador a diesel) e tudo que era sapato, bota, sandália, meiões bufentos de chulé, etc, tudo voava pra cama do Nunes. Dos outros barracos, a gente ouvia a voz suplicante da vítima:
-Faz isso não gente!
-Pára, Barbalho!
-Puta que pariu!
Todo novato que chegava, tinha que ser batizado. Era lei. Depois, o noviço se entrosava. Mas tinha que passar por um bom trote.
Anunciaram a chegada de um tal de Erivã*, para estágio. A turma se ouriçou. Começaram o bolar a recepção e as sugestões sádicas foram surgindo:
-Óleo de rícino na comida!
-Mijo no cantil!
-Ácido clorídrico no tubo de desodorante!
Alguns babavam só de imaginar. Pareciam o Fradim, do saudoso Henfil. Ou, como dizia Zeca Mato Grosso, chefe do projeto, aquilo era uma súcia de sacripantas, sátrapas e sicofantas. Deu pra entender? Pois é.
Bem, acertados os detalhes, foi preparado um plano diabólico.
No dia seguinte, formou-se uma comissão para ir buscar o condenado, isto é, o estagiário, na estação rodoviária da cidade. Zé do Egito era o presidente, Divino, o secretário e Barbalho, o assessor especial do presidente. Na rodoviária mesmo, já foram preparando o espírito da vítima:
-Ó bicho, tem que trabalhar com cuidado, porque os caras aqui são foda. Qualquer coisa, eles enrabam a gente na maior. Tem um tal de Dr. Gedel*, que só de ver ele, a gente se borra. Até tapa na orêia de técnico ela já deu e por nadica, só por uma coisinha à toa. Tomara que você não tenha que trabalhar com ele!
O tal Dr. Gedel, na verdade, era o Gelão, encarregado da sondagem. Negão de 1,80m de altura, 1,50m de largura, 150 kg de massa bruta. Ao contrário do que sua figura sugeria, Gelão era um doce de figura. Paciência de Jó, prestativo, filósofo, vivia cantarolando e sorria o tempo todo. Dormia num barraco à parte, porque o volume do seu ronco, não deixava ninguém dormir, num raio de 50m ao redor. Era uma cena bizarra, vê-lo passar cantarolando, para ir tomar banho, enrolado em duas toalhas, que D. Maguinha, sua esposa, emendava, para poder abarcar toda a circunferência de sua exuberante barriga. Uma figuraça, o Gelão.
Mas, voltemos à tortura, isto é, à comissão de recepção. Quando o Divino falou no Dr. Gedel, o Barbalho ponderou, com ar de simulada preocupação:
-Ixe rapaz! Eu ouvi ontem, pelo rádio do acampamento, que o Dr. Gedel estaria chegando hoje, de helicóptero, só para supervisionar o trabalho dos estagiários.
Zé do Egito, fingindo surpresa:
-Porra!, Para o home vir de helicóptero, a coisa é séria mesmo. Será que ele já chegou?
Divino pegou a deixa:
-Vamos perguntar praquele Senhor ali na esquina, se passou algum helicóptero por aqui.
-Seu Delfino! O Senhor viu se passou um helicóptero hoje, por aqui?
-Vi sim, coisa de meia hora, mais ou menos.
-E o Senhor viu pra que lado ele seguiu?
-Lá pras bandas do Morro Solto.
Não pensem que algo tinha sido combinado com o Delfino. Qualquer um ali na cidade responderia do mesmo jeito, porque, na verdade, tratava-se do helicóptero de uma empresa que estava fazendo levantamento aerogeofísico para a CPRM e todos os dias, naquele período, era visto sobrevoando a região.
Aí começou o terror psicológico:
-Ih! Cê tá fudido, companheiro!
-O cara é foda, meu irmão!
-Mas pode contar com a gente pra qualquer coisa. Não se desespere antes da hora. Tenha fé em Deus. O Claret fez estágio com ele e tá aí, vivinho da silva.
O Erivã estava boquiaberto, sem saber o que falar. Com os olhos esbugalhados, ficava ouvindo aquelas considerações, já arrependido de ter aceitado aquele estágio. Começou a suar frio. Os carrascos não davam trégua:
-Aposto como amanhã, domingo, aquele monstro vai querer que você trabalhe. O cara é desumano!
-Pior é que se você se recusar, tá fudido. É capaz dele te dar uns sopapos, como fez com o Délio Silva*.
-Lembram de quando ele fez o Rocha lamber o sal do IP, só porque o coitado saiu dez minutos pra tomar água?. IP é a sigla inglesa de Polarização Induzida, um método geofísico que usa uma solução salina para melhorar a injeção da corrente elétrica no solo.
-E a vez que ele fez o Góia* dormir no mato, só porque ele desviou o rumo da picada em meio grau?
-O cara é fodão me-es-mo!
Ao chegarem no acampamento, o Erivã, alma da maior boa fé que pode haver no mundo, estava pálido como cera, trêmulo, muito sério, apenas olhava de um lado para o outro, incapaz de pronunciar qualquer palavra com mais de uma sílaba. Foi logo procurando o banheiro, pois já havia adquirido uma diarréia de fundo nervoso. Mal sai do banheiro, suando em bicas, dá de cara com o Tóte, topógrafo que se apresenta em nome do Dr. Gedel:
-Você é que é o novo estagiário?
-S-Sim.
-Prazer! Você já trabalhou com magnetometria?
-J-Já.
-Sabe calibrar o magnetômetro?
-Hem?!
-Porra, bicho! Agora fodeu... Mas fique tranqüilo. Nós vamos te ensinar. Basta fazer leituras periódicas e plotar os valores num gráfico como este aqui, ó. Depois, é só construir o gráfico das leituras. O formato da curva vai mostrar se o aparelho está calibrado ou não. Entendeu?
-Acho que s-sim.
-Então está bom. O Dr. Gedel chegou hoje de Goiânia e precisa desse aparelho devidamente calibrado o mais rápido possível. Ele mandou que você o calibrasse amanhã de manhã. Alguma dúvida?
-Onde eu faço isso? Gemeu o Erivã.
-Ah! Ia me esquecendo. É procê instalar o aparelho no centro do campo de futebol, e fazer leituras de 15 em 15 minutos, das seis da manhã até as 18 horas. Depois, apresente-se a ele, naquele barraco ali, ó. E lhe apontou o barraco do Gelão.
-Uma última recomendação. Durante as leituras, evite movimentos bruscos, ou qualquer barulho que possa afetar a sensibilidade do aparelho. Certo?
Erivã ameaçou um desmaio, mas foi contido com uma baldada de água fria.
Natal ensaia um consolo paternal:
-É bom você dormir cedo, companheiro, porque o Dr. Gedel se levanta às 4h00, todos os dias.
É claro que o leitor já sentiu que esse papo de calibrar aparelho era uma grande armação, aproveitando a inexperiência do estagiário.
No restaurante, durante o jantar, quando todos estavam em volta das mesas, alguém entra e fala bem alto para o cozinheiro:
-Ô Cabelo! Cabelo era o nome do cozinheiro. Dr. Gedel pede pra mandar servir o jantar dele lá no barraco, com três bifes macios e suco de maracujá, porque ele está muito nervoso!
Erivã sentiu uma súbita vontade de vomitar e saiu às pressas do restaurante. Pegou seu livrinho de orações, fez um Pai Nosso, dois Credos, três Salve Rainhas, dez Ave Marias e se deitou, com um último pensamento de consolo íntimo: “Seja o que Deus quiser!”
Enquanto o pobre dormia, a cambada foi toda pra cidade e lá era só o que se comentava, todo mundo antegozando o dia de amanhã.
E o dia de amanhã chegou. Meio dia, a negada começando a se levantar, todos numa ressaca braba, e lá estava o Erivã , sentado num banquinho, no centro do campinho de peladas. No céu, uma lua de 35 graus. O pobre fazia anotações e suava em bicas. Uns 5 m afastados, uma garrafa térmica, com água. De vez em quando ele se levantava lentamente, ia pé-ante-pé até a garrafa e dava umas goladas, sem tirar os olhos do aparelho.
Às 13h00, o Cabelo ficou com pena e foi levar-lhe um prato de comida, mas de longe foi contido pelos insistentes sinais do técnico que se levantou na ponta dos pés e foi saltitando ao seu encontro. Beliscou um naco de carne, sentiu as vistas turvas, dispensou o cozinheiro e voltou, lépido, para seu banquinho.
Finalmente, às 18h00, o Erivã já tinha o bendito gráfico prontinho. Chegara o momento mais temido: ir ter com o Dr. Gedel. Nenhum dos colegas quis acompanhá-lo. Cada um alegava um motivo:
-Eu tenho filhos pra criar.
-Eu preciso do emprego. Sou arrimo de família.
-Cara que mamãe beijou...
Quase se borrando, o coitado se dirige ao escritório, onde uma placa na porta anunciava:
ESCRITÓRIO DO Dr. GEDEL
NÃO ENTRE SEM SER CONVIDADO
Erivã volta ofegante ao barraco dos técnicos:
-Como é que eu entro? Eu sou convidado?
Compadecido, o Claudionor se oferece para acompanhá-lo. Na porta, ainda faz seu terrorzinho:
-Momentinho. Deixa eu lhe anunciar. Dá três pancadinhas e entra.
Lá dentro, o negão tava numa ressaca desgraçada. Tinha acordado naquela hora e nem se lembrava do trote. Mas decidiu colaborar. Cinco minutos depois, o Claudionor sai:
-Pode entrar, companheiro. Boa sorte!
Quando Erivã deu de cara com aqueles 150 kg de crioulo atrás da mesa, sem camisa e com aquela cara do Idi Amin, só não voltou correndo porque suas pernas jamais lhe obedeceriam naquele momento.
Gelão, conforme o combinado, foi logo atacando:
Então o Senhor é que é o seu Jerivã? Prazer. Hum... Fez a calibragem direitinho? Deixa eu ver!
-T-Tá aqui doutor. E lhe entregou o gráfico.
Gelão nunca tinha visto um gráfico daqueles na sua vida. Nem desconfiava pra que servia aquilo. Mas foi correndo os dedos sobre a curva, como se estivesse analisando profundamente.
A distribuição dos alojamentos era profissional, isto é, tinha o barraco dos geólogos e engenheiros (ou dos NS, de nível superior), dos técnicos, dos motoristas, e assim por diante. O dos técnicos ficava ao lado do dos NS e era o mais divertido de todos, porque a turma era grande, muito animada, criativa e sacana, no bom sentido. Viviam aprontando, uns com os outros. Dr. Litrão, o que mandava o “tapa no beiço”, dava consulta até tarde da noite. Em tempo, tarde da noite, naqueles ermos era oito horas, porque às nove já todos dormiam. O trampo era pesado e a movimentação no acampamento começava às cinco da matina.
Do barraco dos NS, ficávamos ouvindo a zorra dos técnicos e nos deliciando com as aprontações. Quem se atrasasse um pouquinho pra se deitar, dançava na certa. A cambada ficava quietinha, fingindo dormir, só aguardando o cristo entrar e se deitar. Catapum-puf! No mínimo, tinham quatro pilhas sob os pés da cama. Isto, na melhor das hipóteses, quando a dita cuja estava no seu respectivo lugar. Muitas vezes, principalmente nos fins de semana, o pato chegava e a cama estava pendurada no teto, suspensa por um mecanismo de roldana, especialmente desenvolvido.
O cristo preferido era o Nunes. Tudo o que tinham que aprontar era pra cima do coitado. Era apagar as luzes (gerador a diesel) e tudo que era sapato, bota, sandália, meiões bufentos de chulé, etc, tudo voava pra cama do Nunes. Dos outros barracos, a gente ouvia a voz suplicante da vítima:
-Faz isso não gente!
-Pára, Barbalho!
-Puta que pariu!
Todo novato que chegava, tinha que ser batizado. Era lei. Depois, o noviço se entrosava. Mas tinha que passar por um bom trote.
Anunciaram a chegada de um tal de Erivã*, para estágio. A turma se ouriçou. Começaram o bolar a recepção e as sugestões sádicas foram surgindo:
-Óleo de rícino na comida!
-Mijo no cantil!
-Ácido clorídrico no tubo de desodorante!
Alguns babavam só de imaginar. Pareciam o Fradim, do saudoso Henfil. Ou, como dizia Zeca Mato Grosso, chefe do projeto, aquilo era uma súcia de sacripantas, sátrapas e sicofantas. Deu pra entender? Pois é.
Bem, acertados os detalhes, foi preparado um plano diabólico.
No dia seguinte, formou-se uma comissão para ir buscar o condenado, isto é, o estagiário, na estação rodoviária da cidade. Zé do Egito era o presidente, Divino, o secretário e Barbalho, o assessor especial do presidente. Na rodoviária mesmo, já foram preparando o espírito da vítima:
-Ó bicho, tem que trabalhar com cuidado, porque os caras aqui são foda. Qualquer coisa, eles enrabam a gente na maior. Tem um tal de Dr. Gedel*, que só de ver ele, a gente se borra. Até tapa na orêia de técnico ela já deu e por nadica, só por uma coisinha à toa. Tomara que você não tenha que trabalhar com ele!
O tal Dr. Gedel, na verdade, era o Gelão, encarregado da sondagem. Negão de 1,80m de altura, 1,50m de largura, 150 kg de massa bruta. Ao contrário do que sua figura sugeria, Gelão era um doce de figura. Paciência de Jó, prestativo, filósofo, vivia cantarolando e sorria o tempo todo. Dormia num barraco à parte, porque o volume do seu ronco, não deixava ninguém dormir, num raio de 50m ao redor. Era uma cena bizarra, vê-lo passar cantarolando, para ir tomar banho, enrolado em duas toalhas, que D. Maguinha, sua esposa, emendava, para poder abarcar toda a circunferência de sua exuberante barriga. Uma figuraça, o Gelão.
Mas, voltemos à tortura, isto é, à comissão de recepção. Quando o Divino falou no Dr. Gedel, o Barbalho ponderou, com ar de simulada preocupação:
-Ixe rapaz! Eu ouvi ontem, pelo rádio do acampamento, que o Dr. Gedel estaria chegando hoje, de helicóptero, só para supervisionar o trabalho dos estagiários.
Zé do Egito, fingindo surpresa:
-Porra!, Para o home vir de helicóptero, a coisa é séria mesmo. Será que ele já chegou?
Divino pegou a deixa:
-Vamos perguntar praquele Senhor ali na esquina, se passou algum helicóptero por aqui.
-Seu Delfino! O Senhor viu se passou um helicóptero hoje, por aqui?
-Vi sim, coisa de meia hora, mais ou menos.
-E o Senhor viu pra que lado ele seguiu?
-Lá pras bandas do Morro Solto.
Não pensem que algo tinha sido combinado com o Delfino. Qualquer um ali na cidade responderia do mesmo jeito, porque, na verdade, tratava-se do helicóptero de uma empresa que estava fazendo levantamento aerogeofísico para a CPRM e todos os dias, naquele período, era visto sobrevoando a região.
Aí começou o terror psicológico:
-Ih! Cê tá fudido, companheiro!
-O cara é foda, meu irmão!
-Mas pode contar com a gente pra qualquer coisa. Não se desespere antes da hora. Tenha fé em Deus. O Claret fez estágio com ele e tá aí, vivinho da silva.
O Erivã estava boquiaberto, sem saber o que falar. Com os olhos esbugalhados, ficava ouvindo aquelas considerações, já arrependido de ter aceitado aquele estágio. Começou a suar frio. Os carrascos não davam trégua:
-Aposto como amanhã, domingo, aquele monstro vai querer que você trabalhe. O cara é desumano!
-Pior é que se você se recusar, tá fudido. É capaz dele te dar uns sopapos, como fez com o Délio Silva*.
-Lembram de quando ele fez o Rocha lamber o sal do IP, só porque o coitado saiu dez minutos pra tomar água?. IP é a sigla inglesa de Polarização Induzida, um método geofísico que usa uma solução salina para melhorar a injeção da corrente elétrica no solo.
-E a vez que ele fez o Góia* dormir no mato, só porque ele desviou o rumo da picada em meio grau?
-O cara é fodão me-es-mo!
Ao chegarem no acampamento, o Erivã, alma da maior boa fé que pode haver no mundo, estava pálido como cera, trêmulo, muito sério, apenas olhava de um lado para o outro, incapaz de pronunciar qualquer palavra com mais de uma sílaba. Foi logo procurando o banheiro, pois já havia adquirido uma diarréia de fundo nervoso. Mal sai do banheiro, suando em bicas, dá de cara com o Tóte, topógrafo que se apresenta em nome do Dr. Gedel:
-Você é que é o novo estagiário?
-S-Sim.
-Prazer! Você já trabalhou com magnetometria?
-J-Já.
-Sabe calibrar o magnetômetro?
-Hem?!
-Porra, bicho! Agora fodeu... Mas fique tranqüilo. Nós vamos te ensinar. Basta fazer leituras periódicas e plotar os valores num gráfico como este aqui, ó. Depois, é só construir o gráfico das leituras. O formato da curva vai mostrar se o aparelho está calibrado ou não. Entendeu?
-Acho que s-sim.
-Então está bom. O Dr. Gedel chegou hoje de Goiânia e precisa desse aparelho devidamente calibrado o mais rápido possível. Ele mandou que você o calibrasse amanhã de manhã. Alguma dúvida?
-Onde eu faço isso? Gemeu o Erivã.
-Ah! Ia me esquecendo. É procê instalar o aparelho no centro do campo de futebol, e fazer leituras de 15 em 15 minutos, das seis da manhã até as 18 horas. Depois, apresente-se a ele, naquele barraco ali, ó. E lhe apontou o barraco do Gelão.
-Uma última recomendação. Durante as leituras, evite movimentos bruscos, ou qualquer barulho que possa afetar a sensibilidade do aparelho. Certo?
Erivã ameaçou um desmaio, mas foi contido com uma baldada de água fria.
Natal ensaia um consolo paternal:
-É bom você dormir cedo, companheiro, porque o Dr. Gedel se levanta às 4h00, todos os dias.
É claro que o leitor já sentiu que esse papo de calibrar aparelho era uma grande armação, aproveitando a inexperiência do estagiário.
No restaurante, durante o jantar, quando todos estavam em volta das mesas, alguém entra e fala bem alto para o cozinheiro:
-Ô Cabelo! Cabelo era o nome do cozinheiro. Dr. Gedel pede pra mandar servir o jantar dele lá no barraco, com três bifes macios e suco de maracujá, porque ele está muito nervoso!
Erivã sentiu uma súbita vontade de vomitar e saiu às pressas do restaurante. Pegou seu livrinho de orações, fez um Pai Nosso, dois Credos, três Salve Rainhas, dez Ave Marias e se deitou, com um último pensamento de consolo íntimo: “Seja o que Deus quiser!”
Enquanto o pobre dormia, a cambada foi toda pra cidade e lá era só o que se comentava, todo mundo antegozando o dia de amanhã.
E o dia de amanhã chegou. Meio dia, a negada começando a se levantar, todos numa ressaca braba, e lá estava o Erivã , sentado num banquinho, no centro do campinho de peladas. No céu, uma lua de 35 graus. O pobre fazia anotações e suava em bicas. Uns 5 m afastados, uma garrafa térmica, com água. De vez em quando ele se levantava lentamente, ia pé-ante-pé até a garrafa e dava umas goladas, sem tirar os olhos do aparelho.
Às 13h00, o Cabelo ficou com pena e foi levar-lhe um prato de comida, mas de longe foi contido pelos insistentes sinais do técnico que se levantou na ponta dos pés e foi saltitando ao seu encontro. Beliscou um naco de carne, sentiu as vistas turvas, dispensou o cozinheiro e voltou, lépido, para seu banquinho.
Finalmente, às 18h00, o Erivã já tinha o bendito gráfico prontinho. Chegara o momento mais temido: ir ter com o Dr. Gedel. Nenhum dos colegas quis acompanhá-lo. Cada um alegava um motivo:
-Eu tenho filhos pra criar.
-Eu preciso do emprego. Sou arrimo de família.
-Cara que mamãe beijou...
Quase se borrando, o coitado se dirige ao escritório, onde uma placa na porta anunciava:
ESCRITÓRIO DO Dr. GEDEL
NÃO ENTRE SEM SER CONVIDADO
Erivã volta ofegante ao barraco dos técnicos:
-Como é que eu entro? Eu sou convidado?
Compadecido, o Claudionor se oferece para acompanhá-lo. Na porta, ainda faz seu terrorzinho:
-Momentinho. Deixa eu lhe anunciar. Dá três pancadinhas e entra.
Lá dentro, o negão tava numa ressaca desgraçada. Tinha acordado naquela hora e nem se lembrava do trote. Mas decidiu colaborar. Cinco minutos depois, o Claudionor sai:
-Pode entrar, companheiro. Boa sorte!
Quando Erivã deu de cara com aqueles 150 kg de crioulo atrás da mesa, sem camisa e com aquela cara do Idi Amin, só não voltou correndo porque suas pernas jamais lhe obedeceriam naquele momento.
Gelão, conforme o combinado, foi logo atacando:
Então o Senhor é que é o seu Jerivã? Prazer. Hum... Fez a calibragem direitinho? Deixa eu ver!
-T-Tá aqui doutor. E lhe entregou o gráfico.
Gelão nunca tinha visto um gráfico daqueles na sua vida. Nem desconfiava pra que servia aquilo. Mas foi correndo os dedos sobre a curva, como se estivesse analisando profundamente.
– Hum.. Ahã... Senta aí seu Ronivan. O Senhor está bem? Está sentindo alguma coisa?
-Eu tô bem. Meu nome é Erivã ...
-Grande merda!. E segue analisando o gráfico.
–Hum... Ahã... De repente pára, como se tivesse encontrado algo suspeito.
-Seu Jonivan, que significa essa quebra da curva aqui às 14h30? Dá pra me explicar, heim?
O estado do infeliz era de dar compaixão. As pernas tremiam, o queixo batia e a camisa, literalmente, encharcou-se de suor. A boca era algo indefinível, entre o riso e o choro. Quis balbuciar uma resposta, mas só conseguiu um lamento:
-Não sei Doutor... mas o meu nome é...
-Eu sei seu nome seu João Ivan, por favor, apenas responda minhas perguntas! Por acaso o Senhor se lembra se por volta aí das 14h20, 14h25, deu um vento forte?
-N-n-não Senhor.
-Choveu?
-N-n-não Senhor.
-Relampejou? Trovejou?
-N-n-não Senhor.
-Aqui tem algo muito estranho... Vejamos...
Repentinamente, dá um soco na mesa e se vira para o Erivã , os olhos arregalados, como se tivesse descoberto algo grave. Ao ver aquela expressão, Erivã se lembrou da imagem do Gelão enfiando a mão na orêia do Délio.
-Seu Renivan, me responda com toda sinceridade, olhando bem nos meus olhos. Nesse intervalo a que me referi, por acaso o Senhor não soltou nenhum peido, perto do aparelho, soltou?
Na frente da mesa havia um trapo humano:
-B-b-bem, Dr. Gedel, na verdade eu acho que soltei uns dois ou três peidinhos, m-m-mas não me lembro bem da hora e...
-Seu biltre! Só falta agora me dizer que comeu carne no almoço...
-M-m-mas foi só um pedacinho...
-Seu parvo, estúpido! Outro soco na mesa –Então não lhe ensinaram, na escola, que peido de carne de vaca provoca uma tempestade magnética local? Hein? O Senhor estudou pra que? Pra asno?
-E-eu n-n-não sabia...
Gelão, que estava tomando gosto pela coisa, tascou três socos que abriram um rombo no tampo da mesa:
-Seu pústula! Seu pulha! Seu pustema! Seu...
Não precisou prosseguir, porque Erivã , quando viu o buraco na mesa, desmaiou e caiu durinho no chão. Gelão aflito, chamou a negada que estava tudo ali por perto, ouvindo, se deliciando.
Socorrido o coitado, o pessoal resolveu dar por encerrado o trote, ou seu coração poderia não resistir.
Após o jantar, fizeram uma grande festa para o Erivã , que a partir daí se entrosou perfeitamente e tornou-se um grande técnico, depois contratado oficialmente. Mas ficou definitivamente marcado pelo episódio do peido magnético. Dizem que até hoje, quando surge um negão em sua frente, vem aquele friozinho na barriga e ele corre pro banheiro mais próximo. Dizem, não sei se é verdade. Mas aí já é uma outra história.
..................................................................................................................................................-Eu tô bem. Meu nome é Erivã ...
-Grande merda!. E segue analisando o gráfico.
–Hum... Ahã... De repente pára, como se tivesse encontrado algo suspeito.
-Seu Jonivan, que significa essa quebra da curva aqui às 14h30? Dá pra me explicar, heim?
O estado do infeliz era de dar compaixão. As pernas tremiam, o queixo batia e a camisa, literalmente, encharcou-se de suor. A boca era algo indefinível, entre o riso e o choro. Quis balbuciar uma resposta, mas só conseguiu um lamento:
-Não sei Doutor... mas o meu nome é...
-Eu sei seu nome seu João Ivan, por favor, apenas responda minhas perguntas! Por acaso o Senhor se lembra se por volta aí das 14h20, 14h25, deu um vento forte?
-N-n-não Senhor.
-Choveu?
-N-n-não Senhor.
-Relampejou? Trovejou?
-N-n-não Senhor.
-Aqui tem algo muito estranho... Vejamos...
Repentinamente, dá um soco na mesa e se vira para o Erivã , os olhos arregalados, como se tivesse descoberto algo grave. Ao ver aquela expressão, Erivã se lembrou da imagem do Gelão enfiando a mão na orêia do Délio.
-Seu Renivan, me responda com toda sinceridade, olhando bem nos meus olhos. Nesse intervalo a que me referi, por acaso o Senhor não soltou nenhum peido, perto do aparelho, soltou?
Na frente da mesa havia um trapo humano:
-B-b-bem, Dr. Gedel, na verdade eu acho que soltei uns dois ou três peidinhos, m-m-mas não me lembro bem da hora e...
-Seu biltre! Só falta agora me dizer que comeu carne no almoço...
-M-m-mas foi só um pedacinho...
-Seu parvo, estúpido! Outro soco na mesa –Então não lhe ensinaram, na escola, que peido de carne de vaca provoca uma tempestade magnética local? Hein? O Senhor estudou pra que? Pra asno?
-E-eu n-n-não sabia...
Gelão, que estava tomando gosto pela coisa, tascou três socos que abriram um rombo no tampo da mesa:
-Seu pústula! Seu pulha! Seu pustema! Seu...
Não precisou prosseguir, porque Erivã , quando viu o buraco na mesa, desmaiou e caiu durinho no chão. Gelão aflito, chamou a negada que estava tudo ali por perto, ouvindo, se deliciando.
Socorrido o coitado, o pessoal resolveu dar por encerrado o trote, ou seu coração poderia não resistir.
Após o jantar, fizeram uma grande festa para o Erivã , que a partir daí se entrosou perfeitamente e tornou-se um grande técnico, depois contratado oficialmente. Mas ficou definitivamente marcado pelo episódio do peido magnético. Dizem que até hoje, quando surge um negão em sua frente, vem aquele friozinho na barriga e ele corre pro banheiro mais próximo. Dizem, não sei se é verdade. Mas aí já é uma outra história.
* Nomes fictícios de personagns reais