quarta-feira, maio 30, 2007

Chanãzinha, quem diria, foi pro brejo

1993, projeto Carutapera. Baixada maranhense, um lugar maravilhoso de encantos naturais e caboclos amistosos, hospitaleiros. E havia o garimpo de ouro... E o garimpo, aonde chega, traz muitos forasteiros e desfigura a paisagem e inocula a desconfiança nas gentes locais. E assim foi com seu Antonio.
Ele tinha (não sei se ainda tem) uma propriedade entre as cidades de Godofredo Viana e Cândido Mendes, onde a CPRM tinha alvos de pesquisa nos quais eu desenvolvia atividades rotineiras de prospecção, com equipes de topografia, amostragem geoquímica e mapeamento de detalhe. E o nome era fazenda Marimbondo. Todos os dias parava o carro na “sede” da Marimbondo, um rancho de parede estucada e telhado de palha e tirava um dedo de prosa com seu Antonio e seus dois filhos adolescentes, Marquinho e Marcelo, acredito que não mais de 15 e 17 anos, respectivamente. Ele oferecia uma cuia de açaí ou café e perguntava assim como quem não quer nada:
- E os trabalhos? Será que tem ouro aí nessas baixadas, home de Deus?
Eu respondia com evasivas, dizendo que ainda era prematuro dizer alguma coisa, que os trabalhos estavam no início, ainda não tinha os resultados das análises... Essas coisas de desconversar.
Pois bem, o terreno de seu Antonio ficava nas margens de um igarapé com vasta área de inundação, formando uma planície embrejada de intocada vegetação nativa. Só havia pastagens nas partes mais altas, em ambas as margens do igarapé. Normalmente, o gado de cria não circulava pelo brejo, pois não havia trilhas, a não ser uma, artificialmente construída, sobre aterro tosco, que descia com as primeiras chuvas. Mas, como geólogo não se liga nas leis bovinas, nossas picadas cruzaram o brejo em vários pontos, oferecendo novas possibilidades de circular entre as pastagens. Determinados trechos desse brejo eram pantanosos, a perna afundava até a coxa e era um sacrifício atravessar.
Um belo dia paro eu, para o costumeiro café e noto seu Antonio meio aperreado, apesar da hospitalidade de sempre.
- Doutô! Sabe aquela picada de vocês, que passa lá na solta do açaizal?
- Sei, seu Antonio.
- Pois é home! Uma desgraceira! Vai lá pra tu ver! Uma das minhas melhores vacas tá lá atolada. A Chanã. Passemo a madrugada toda tentando tirar a pobre, mas não tem jeito... Vai morrer.
Fiquei sem saber o que dizer e ele prosseguiu:
- Quatro horas da manhã, a vaca não apareceu no curral, fomos atrás, levando o bezerro. Logo achemo ela lá, quietinha... Quase não mexia mais, de tão fraca. Deve ter passado a noite atolada. Não passa de hoje! Vamos ter de matar, para aproveitar pelo menos a carne!
Eu ouvia o relato sem interromper, mas já prevendo que meu dia não seria dos melhores. O pior é que estava sozinho. Tinha deixado as turmas nas picadas e voltava para Godofredo Viana.
Depois de um longo e tenebroso silêncio, só me ocorreu dizer o seguinte:
- Há algo que eu possa fazer seu Antonio? Posso trazer mais gente pra ajudar tirar a vaca, quem sabe?
- Não, seu Reginaldo! Chanãzinha tá perdida, home!. Aquela, nem Deus salva.
Muito calmamente, ele se levantou até o alforje de couro, pendurado num esteio de madeira do alpendre tosco e de lá retirou um pacote de papel de cigarro, desses que ainda se usa no interior, e um saquinho de pano, de cor indefinida, contendo fumo picado. Enquanto enrolava o pito, foi me dizendo com uma determinação que não ousei desconhecer:
- Seu Reginaldo, o negócio é o seguinte. Nós deixemo o senhor trabalhar na nossa terra e demo toda assistência, não foi?
- Claro, seu Antonio.
- Mas nós não pode ficar no prejuízo. O senhor mesmo vê que somos gente sofrida, de poucas posses. Uma vaca daquela, das melhores do rebanho, é muito pra nós home, o senhor compreende? Além do mais, tava enxertada, ia dar cria...
Fez uma pausa, sorveu a primeira tragada do pito e arrematou com firmeza:
- Se não fosse a picada que o senhor mandou abrir, a vaca não ia morrer, não é mesmo? Então é muito justo que o senhor me pague pra mode eu comprar outra, o senhor não acha certo, seu Reginaldo?
- Entendo perfeitamente que o senhor não pode ficar no prejuízo, seu Antonio. Mas gostaria que o senhor entendesse, também, que eu, aqui na região, represento uma empresa e, na verdade, é essa empresa e não eu, como pessoa física, que vai arcar com a indenização da sua vaca.
Seu Antonio me ouvia, com paciência, saboreando o pito. Completei:
- Vamos combinar um valor justo e eu prometo me empenhar, pessoalmente, para que o senhor seja indenizado o mais rápido possível.
Ouviu-se então, um pigarro, uma cusparada e a resposta, em tom que começou a ativar minha adrenalina:
- Olha seu Reginaldo, meu trato sempre foi com o senhor, não foi? Não conheço ninguém da sua empresa e nem autorizei ninguém a fazer desgraceira em minha terra, a não ser o senhor. A bem da verdade, o preço da vaca é mil e duzentos reais (esse é o valor aproximado da conversão que fiz da moeda da época) e eu quero saber quando vou receber. O senhor que se entenda lá com seus patrão.
O valor estipulado foi absurdamente acima do mercado. Uma vaca de 15 arrobas não vale mais de setecentos e cinqüenta reais. Quanto a estar prenha, nunca pude apurar a veracidade da afirmação. Mas vi que a partir daquele momento só me restava negociar a melhor saída para mim e não questionar as condições que ele impusesse. Meu instinto de sobrevivência me fez compreender que estava sob ameaça real e perigosa.
- Tudo bem, seu Antonio. Assumo pessoalmente com o senhor. Mas vou ter de solicitar para alguém me mandar o dinheiro para o Banco do Brasil de Bragança, no Pará. Eu não tenho esse valor comigo no momento. Preciso ir até Cândido Mendes (onde havia posto telefônico), para usar o telefone.
- Humm... Vamo fazer o seguinte. O senhor naturalmente tem algum, porque não ia tocar um serviço desses, aqui nessas lonjuras, só com trocados. Me adianta o que puder, ainda hoje. Depois o senhor vai lá na cidade e faz uma declaração no cartório de dona Amália, reconhecendo o débito. Ela é minha amiga e de confiança. Meus meninos vai acompanhar o senhor, só por segurança. Não leve a mal, mas aqui nós age desse jeito, não sabe? É tudo certim, pra não terminar em confusão sem necessidade.
A seu chamado, os “meninos” saíram de dentro do rancho, cada qual com uma cartucheira 38 a tiracolo, para me acompanharem. Compreendi que estava seqüestrado e que a partir dali tinha de agir muito comportada e calmamente, para a situação não ficar fora de controle.
Depois de confabularem, os três, bem baixinho, Marquinho, o mais velho, aboletou-se na carroceria da picape Toyota, enquanto Marcelo veio a meu lado. Ambos eram extremamente fechados. Decididamente, não gostavam da “invasão” daquele pessoal de fora, em suas terras. As armas ficaram à vista.
Voltei para Godofredo, onde tínhamos uma casa alugada. Ao entrar na rua esburacada, de terra, Marquinho berrou no meu ouvido:
- Faça a volta do carro e pare de frente da casa. Não converse com ninguém e se chegar visita não receba, tá doutô? Pegue logo o dinheiro que puder, que o pai quer nós de volta antes de meio dia.
Peguei mais ou menos o equivalente a duzentos reais, guardei na mochila e voltamos imediatamente para Cândido Mendes. Lá, fui guiado para o cartório da dona Amália, uma senhora obesa e asmática, que mal conseguia falar, de tanta falta de ar. Ao solicitar a declaração, ela me perguntou se eu mesmo não podia redigir. Fui pra máquina de datilografia e fiz uma declaração de que uma vaca do senhor Antonio, tinha sido sacrificada, em função de ter atolado em picada aberta pela CPRM, cujo valor de indenizatório fora estipulado pelo proprietário, em mil e duzentos reais, dos quais saldei de imediato, a quantia de duzentos reais, etc. Após todos os trâmites no cartório, fomos ao posto telefônico da TELMA, sempre o Marquinho na minha cola.
Pedi uma ligação para o Gerente de Recursos Minerais da Superintendência de Recife e fiz um relato bem pausado, medindo as palavras, do ocorrido. De modo que ele me achou estranho e perguntou, se estava tudo bem, até porque eu estava ligando no meio da manhã, coisa absolutamente anormal.
- Não! Respondi em tom aflito.
- O que está havendo?
Usando o alfabeto do jargão do rádio, informei, bem rapidamente:
- eco, sierra, tango, oscar, uniforme, espaço, november, uniforme, michel, alfa, espaço, fox, romeu, índia, alfa. Traduzindo: estou numa fria!
Daí, ele foi fazendo as perguntas e eu respondendo com monossílabos. Até que ficou claro que estava sob a mira do filho do interessado e que ele, pelo amor de Deus, me depositasse mil reais, urgente! Ele me garantiu que faria isso o mais rápido possível e perguntou se queria acionar a polícia federal, o que eu descartei.
Tranqüilizei os “meninos”, tomamos um refrigerante e voltamos pra fazenda de seu Antonio. Adiantei-lhe os duzentos reais, fazendo-o assinar um recibo e as coisas se distensionaram. Ao me despedir, já mais de meio dia, ele me fez uma sutil recomendação:
- Não desapareça não, viu seu Reginaldo? Nós gostemo muito do senhor.
Registrei o que as palavras não disseram e pedi proteção a meu anjo da guarda.
E toquei a vida normalmente, sempre passando lá, pra dar um alôzinho ao meu algoz. Nunca perguntei o destino final da vítima do brejo.
Uma semana depois, fui a Bragança, saquei o restante da indenização e completei meu resgate. Agora, era um homem livre.
Decorridos uns dois meses do acontecido, fiquei sabendo o final da história, pelos peões, sempre bem informados. Seu Antonio conseguira salvar a Chanãzinha, que ficou aleijada de uma perna, mas continuou dando leite e, com o dinheiro da indenização, comprou oito bezerros e ainda fez uma reforma no curral.
Certa tarde de feira, encontro seu Antonio, em Godofredo.
- Oi seu Reginaldo! Já tem o resultado das pesquisas? Tem ou não tem ouro no Marimbondo, home?
- Infelizmente, os resultados foram bem fraquinhos, seu Antonio. Vamos descartar a área.
Ele se lamentou e nos despedimos. Nunca mais o vi.
Um peão que estava ao meu lado comentou:
- Bem, ouro ele não vai ter, mas pelo menos umas pratinhas a CPRM deu pra ele, né?
Pensei comigo:
- É... Não deixa de ser verdade.

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