A Falconbrigde tinha uns alvos de pesquisa a sul do município de Porangatu, parte dos quais ficava numa das fazendas dos Ludovico. Essa família era famosíssima em todo o interior de Goiás naquela época, 1977, pelos métodos que usava para grilar terras e expulsar posseiros. O chefe do clã, conhecido como “o velho Ludovico” tinha mais de 90 anos, mas uma vitalidade e lucidez impressionantes. Além disso, tinha uma fala mansa, aquele olhar bondoso dos velhinhos e um inofensivo cajado sempre à mão. Enfim, aquele vô, ou bisavô, que todos nós gostaríamos de ter. Quem visse e ouvisse aquela figura cândida, não poderia imaginar, mas o que se dizia, a boca pequena, era que o velho era de uma crueldade e frieza inacreditáveis, tendo vários crimes nas costas.
Atualmente, seu herdeiro mais fiel era Ludinho, um de seus filhos que já contava aí com seus 45 anos. Segundo se comentava, superava o velho em todas as virtudes, especialmente nos métodos de convencimento. Raramente vinha a Porangatu, cuidando das demais propriedades da família, pra dentro do sertão goiano. Diziam as más línguas que de vez em quando vinha se esconder de algum crime cometido nos cafundós do cerrado. Dava um tempo e depois desaparecia novamente, meses a fio.
O fato é que, ao constatar que um dos nossos alvos ficava na fazenda do velho, fui lá pedir permissão e explicar nossas intenções. Os peões duvidavam que tivesse sucesso, temendo inclusive por minha vida, já que toda a fazenda era vigiada por capangas ocultos em pontos estratégicos, desde a cancela da entrada. Fizeram mil recomendações.
Mesmo assim arrisquei. Parei o carro na guarita e tentei explicar ao troglodita de plantão. Ele não entendeu bulhufas, mas diante de nossa argumentação, concordou que eu fosse sozinho falar com o velho.
- O restante dos cabras fica aqui, por garantia!
Por um rádio transmissor requisitou alguém para me acompanhar. Menos de cinco minutos depois, uma Picape C-10 nos apanhou, exigindo que deixasse o martelo, o cantil, o porta-caderneta e a mochila na guarita. Só me deixou levar as fotografias aéreas.
Estava meio cabreiro, porque meu tipo físico não era propriamente um modelo conservador, e por isso, às vezes assustava as velhas gerações. Um macacão cor laranja, desses de posto de gasolina, cabelo estilo Morais Moreira, amarrado atrás, barba de meses, chapéu espalhafatoso, óculos escuros, enfim... Mas também é verdade que tinha lá minha simpatia e magnetismo pessoal. Como nasci e me criei no interior, sei a linguagem dos sertanejos. O velho me recebeu mais com curiosidade do que com desconfiança. Olhava-me de cima abaixo esboçando um sorriso enigmático. Ofereceu café e depois de uns 15 minutos já estávamos quase íntimos. Expliquei que iríamos coletar umas amostras de terra, em tal e tal lugar e outras de areia nos córregos tais e tais. E deixei claro que se nossa pesquisa desse positiva, faríamos um acordo para executar outros trabalhos mais invasivos. Depois de algumas perguntas ele consentiu, com três condições:
1- Que todos os dias, ao final dos trabalhos, passasse na sede para tomar um café;
2- Que falasse com Ludinho, quando ele aparecesse, e;
3- Que viesse à fazenda numa noite de lua, fazer uma seresta, “daquelas de antigamente” (na conversa, tinha dito ao velho que gostava de fazer serestas).
Claro que concordei com as simpáticas exigências e dei início, imediatamente, aos trabalhos.
Aqui devo esclarecer que, para manter a regularidade das malhas de amostragem, usava cordas padronizadas de 50 m, tanto nas picadas, quanto ao longo das drenagens amostradas. E, logicamente, toda nossa movimentação era acompanhada, diariamente, pelos olheiros do velho. No cafezinho dos fins de tardes, ele sempre perguntava como iam os trabalhos e se ainda faltava muito. E eu ia informando com exatidão, atualizando-o sobre o estágio da campanha. E os dias transcorreram sem surpresa, até uma segunda-feira inesquecível. Quando encostei a Rural no terreiro da sede, para o cafezinho, fui recebido por um galego dos cabelos crespos, meio sarará, muito alto e espadaúdo, barba mal feita e bigode ruivo estilo português de padaria. Botas de rodeio, um cinturão vistoso, fivela cabeça-de-cavalo... Dava pra ver a saliência do revolver por baixo da camisa aberta no peito.
Veio caminhando bem devagar, de encontro ao carro. Adivinhei imediatamente quem era e meu sexto sentido me deixou alerta.
- Boa tarde!
Tinha os olhos miúdos, perscrutadores e a testa franzida, de quem observa. Fez um leve movimento de cabeça, sem se preocupar em responder o cumprimento.
- O senhor é o Dr. Reginaldo?
Dentro do carro ainda, respondi que sim. Achei impertinente perguntar quem era ele. Fiquei na minha.
- E como vai o andamento dos trabalhos?
- Quase no fim. Daqui até sexta-feira acho que concluímos.
- Hum... Mas desça sô! Papai quer te ver. Deixe os meninos esperando aqui.
Os meninos, a que ele se referia, eram um técnico e três peões.
Na sala, só nós três, Ludinho foi direto ao assunto, deixando de lado qualquer intenção de simpatia:
- Papai tá muito decepcionado com o senhor, Dr. Reginaldo. Lhe deu permissão pra fazer uma coisa, na boa fé e o senhor tá fazendo outra. Olha aqui, vá logo dizendo quem são vocês, realmente, e o que pretendem em nossas terras.
Atualmente, seu herdeiro mais fiel era Ludinho, um de seus filhos que já contava aí com seus 45 anos. Segundo se comentava, superava o velho em todas as virtudes, especialmente nos métodos de convencimento. Raramente vinha a Porangatu, cuidando das demais propriedades da família, pra dentro do sertão goiano. Diziam as más línguas que de vez em quando vinha se esconder de algum crime cometido nos cafundós do cerrado. Dava um tempo e depois desaparecia novamente, meses a fio.
O fato é que, ao constatar que um dos nossos alvos ficava na fazenda do velho, fui lá pedir permissão e explicar nossas intenções. Os peões duvidavam que tivesse sucesso, temendo inclusive por minha vida, já que toda a fazenda era vigiada por capangas ocultos em pontos estratégicos, desde a cancela da entrada. Fizeram mil recomendações.
Mesmo assim arrisquei. Parei o carro na guarita e tentei explicar ao troglodita de plantão. Ele não entendeu bulhufas, mas diante de nossa argumentação, concordou que eu fosse sozinho falar com o velho.
- O restante dos cabras fica aqui, por garantia!
Por um rádio transmissor requisitou alguém para me acompanhar. Menos de cinco minutos depois, uma Picape C-10 nos apanhou, exigindo que deixasse o martelo, o cantil, o porta-caderneta e a mochila na guarita. Só me deixou levar as fotografias aéreas.
Estava meio cabreiro, porque meu tipo físico não era propriamente um modelo conservador, e por isso, às vezes assustava as velhas gerações. Um macacão cor laranja, desses de posto de gasolina, cabelo estilo Morais Moreira, amarrado atrás, barba de meses, chapéu espalhafatoso, óculos escuros, enfim... Mas também é verdade que tinha lá minha simpatia e magnetismo pessoal. Como nasci e me criei no interior, sei a linguagem dos sertanejos. O velho me recebeu mais com curiosidade do que com desconfiança. Olhava-me de cima abaixo esboçando um sorriso enigmático. Ofereceu café e depois de uns 15 minutos já estávamos quase íntimos. Expliquei que iríamos coletar umas amostras de terra, em tal e tal lugar e outras de areia nos córregos tais e tais. E deixei claro que se nossa pesquisa desse positiva, faríamos um acordo para executar outros trabalhos mais invasivos. Depois de algumas perguntas ele consentiu, com três condições:
1- Que todos os dias, ao final dos trabalhos, passasse na sede para tomar um café;
2- Que falasse com Ludinho, quando ele aparecesse, e;
3- Que viesse à fazenda numa noite de lua, fazer uma seresta, “daquelas de antigamente” (na conversa, tinha dito ao velho que gostava de fazer serestas).
Claro que concordei com as simpáticas exigências e dei início, imediatamente, aos trabalhos.
Aqui devo esclarecer que, para manter a regularidade das malhas de amostragem, usava cordas padronizadas de 50 m, tanto nas picadas, quanto ao longo das drenagens amostradas. E, logicamente, toda nossa movimentação era acompanhada, diariamente, pelos olheiros do velho. No cafezinho dos fins de tardes, ele sempre perguntava como iam os trabalhos e se ainda faltava muito. E eu ia informando com exatidão, atualizando-o sobre o estágio da campanha. E os dias transcorreram sem surpresa, até uma segunda-feira inesquecível. Quando encostei a Rural no terreiro da sede, para o cafezinho, fui recebido por um galego dos cabelos crespos, meio sarará, muito alto e espadaúdo, barba mal feita e bigode ruivo estilo português de padaria. Botas de rodeio, um cinturão vistoso, fivela cabeça-de-cavalo... Dava pra ver a saliência do revolver por baixo da camisa aberta no peito.
Veio caminhando bem devagar, de encontro ao carro. Adivinhei imediatamente quem era e meu sexto sentido me deixou alerta.
- Boa tarde!
Tinha os olhos miúdos, perscrutadores e a testa franzida, de quem observa. Fez um leve movimento de cabeça, sem se preocupar em responder o cumprimento.
- O senhor é o Dr. Reginaldo?
Dentro do carro ainda, respondi que sim. Achei impertinente perguntar quem era ele. Fiquei na minha.
- E como vai o andamento dos trabalhos?
- Quase no fim. Daqui até sexta-feira acho que concluímos.
- Hum... Mas desça sô! Papai quer te ver. Deixe os meninos esperando aqui.
Os meninos, a que ele se referia, eram um técnico e três peões.
Na sala, só nós três, Ludinho foi direto ao assunto, deixando de lado qualquer intenção de simpatia:
- Papai tá muito decepcionado com o senhor, Dr. Reginaldo. Lhe deu permissão pra fazer uma coisa, na boa fé e o senhor tá fazendo outra. Olha aqui, vá logo dizendo quem são vocês, realmente, e o que pretendem em nossas terras.
Já tinha a resposta na ponta da língua:
- Me descuple, mas não tenho nada a acrescentar ao que expliquei em detalhes a seu Ludovico, dias atrás. O que lhe disse é a verdade. Não menti nem omiti nada. E só estou fazendo as amostragens consentidas. Nada mais.
O velho calado estava, calado ficou. Mas o sorriso bondoso sumiu-lhe do rosto. Fechou os olhos e passou a ser só ouvidos. A empregada deixou o café na mesa e um pesado silêncio se estabeleceu. Servi-me do café, primeiro, obedecendo a uma ordem gestual de Ludinho. Ao se servir, ele tirou o revolver de dentro da camisa e colocou, dentro do coldre, ao lado da bandeja. Em pé ainda, retomou a conversa:
- Olha Dr. Reginaldo, não somos bobos. O Senhor pediu permissão para tirar amostras de terras por aí, mas na verdade vocês estão medindo nossas terras. Nossos peões vêem vocês com uma corda medindo tudo por aí. É mentira?
- Não. Mas...
- Não tem mais nem menos, sô! Sabe o trabalho que nos deu legalizar essas terras todas? Aqui correu sangue! Se o senhor não sabia fique sabendo. Pra que diabos o senhor anda medindo as terras? É mapa para o INCRA?
Com muito esforço, repeti tudo o que fazíamos e o porquê das cordas e medições. Balancei a convicção dele, mas não lhe abrandei o coração. Consciência culpada, é fogo! Um pouco menos tenso, ele concluiu a conversa:
- Pois bem. A autorização de papai se encerrou ontem. Deixe no terreiro todas as amostras de hoje e não volte mais a nossas terras. Até hoje foram nossos visitantes. A partir de agora, se insistirem, serão considerados invasores. Falo pelo bem de vocês.
Levantou-se, indicando o fim da reunião. Garanti-lhe que não entraria mais na fazenda e ainda agradeci pela acolhida. Deixamos no terreiro todas as amostras de solo, sedimento e rocha recolhidas e batemo-nos em retirada. Os peões estavam apavorados e tementes pelo que poderia me acontecer, ante a ira do Ludinho. Felizmente, os resultados das amostras que coletamos não foram animadores, de modo que não tive mesmo nenhum motivo para voltar e me entender com os Ludovico.
- Me descuple, mas não tenho nada a acrescentar ao que expliquei em detalhes a seu Ludovico, dias atrás. O que lhe disse é a verdade. Não menti nem omiti nada. E só estou fazendo as amostragens consentidas. Nada mais.
O velho calado estava, calado ficou. Mas o sorriso bondoso sumiu-lhe do rosto. Fechou os olhos e passou a ser só ouvidos. A empregada deixou o café na mesa e um pesado silêncio se estabeleceu. Servi-me do café, primeiro, obedecendo a uma ordem gestual de Ludinho. Ao se servir, ele tirou o revolver de dentro da camisa e colocou, dentro do coldre, ao lado da bandeja. Em pé ainda, retomou a conversa:
- Olha Dr. Reginaldo, não somos bobos. O Senhor pediu permissão para tirar amostras de terras por aí, mas na verdade vocês estão medindo nossas terras. Nossos peões vêem vocês com uma corda medindo tudo por aí. É mentira?
- Não. Mas...
- Não tem mais nem menos, sô! Sabe o trabalho que nos deu legalizar essas terras todas? Aqui correu sangue! Se o senhor não sabia fique sabendo. Pra que diabos o senhor anda medindo as terras? É mapa para o INCRA?
Com muito esforço, repeti tudo o que fazíamos e o porquê das cordas e medições. Balancei a convicção dele, mas não lhe abrandei o coração. Consciência culpada, é fogo! Um pouco menos tenso, ele concluiu a conversa:
- Pois bem. A autorização de papai se encerrou ontem. Deixe no terreiro todas as amostras de hoje e não volte mais a nossas terras. Até hoje foram nossos visitantes. A partir de agora, se insistirem, serão considerados invasores. Falo pelo bem de vocês.
Levantou-se, indicando o fim da reunião. Garanti-lhe que não entraria mais na fazenda e ainda agradeci pela acolhida. Deixamos no terreiro todas as amostras de solo, sedimento e rocha recolhidas e batemo-nos em retirada. Os peões estavam apavorados e tementes pelo que poderia me acontecer, ante a ira do Ludinho. Felizmente, os resultados das amostras que coletamos não foram animadores, de modo que não tive mesmo nenhum motivo para voltar e me entender com os Ludovico.
Só lamento que o velho, que já deve estar no andar de cima, não pode ver cumprida a terceira exigência, a da seresta na fazenda, que eu estava preparando, com muito carinho, para comemorar o encerramento dos trabalhos. Exigência por exigência, venceu a do Ludinho, claro. Paciência. De lá para cá, tive trinta anos para fazer serestas e ainda estou aí, na estrada. Deus é mais!
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