terça-feira, maio 08, 2007

Toque de craque

Logo no início de sua carreira profissional na CPRM, Gilsinho* sofreu um grave acidente de Toyota, ficou alguns dias em coma. Mas, como geólogo não se entrega assim, sem mais nem menos, sobreviveu, embora com pequena seqüela. O pobre ficou meio deslembrado, digamos assim, meio aéreo. Tipo não se lembrar onde estacionou o carro, por exemplo. Nos sinais de trânsito, ele às vezes demorava pra processar as cores e arrancava no vermelho tendo sofrido vários abalroamentos por isso. Mas desempenhava seu trabalho, com grande esforço pessoal e com a colaboração solidária dos colegas.
Foi designado para um projeto, no Mato Grosso, década de 70. Um projeto imenso, com vários geólogos e uma multidão de técnicos, motoristas e peões. No acampamento, um time de futebol foi logo formado e pouco tempo depois, como meio de entrosar com os locais, Zeca Mato Grosso, chefe do projeto e natural da região, desafiou o time da cidade para um jogo. Importante destacar que durante os treinos diários, Gilsinho nunca se interessou pelas peladas. Ficava só na geral, olhando pro céu, como se o jogo fosse lá nas nuvens. Aliás, diga-se de passagem, ele nunca tinha entrado num campo de futebol, em toda a sua vida.
Pois bem, chegado o grande dia, uma tremenda expectativa tomou conta do acampamento. Zeca comprara um jogo de uniforme completo, bola nova, e o clima era de pura competição. Desde cedo, torcida e olheiros começaram a circular pelo acampamento. Os rapazes para avaliar a qualidade do adversário e as moças para avaliar os atletas, individualmente. Gilsinho, vendo aquela movimentação toda, não é que se empolgou? Para espanto geral, procurou o Zeca e disse do alto de sua autoridade:
- Zeca, me dê uma camisa, que eu vou jogar também.
- O que?! Mas como Gilsinho, se você não treinou nenhum dia, não conhece o esquema tático, não está com condicionamento físico? Como?!
- Mas eu observei atentamente os treinos. Estou preparadíssimo.
E assim dizendo, dirigiu-se ao armário e perguntou:
- Qual camisa eu pego?
Zeca estava pasmo. Não podia acreditar no que via e ouvia. E agora? O time já não era essas coisas... Com o Gilsinho, então, era mesmo que jogar com um a menos. Mas como negar-lhe esse inocente prazer, ele geralmente tão arredio e ensimesmado... Não seria a oportunidade de ele se socializar? Quem sabe poderia até ser bom para sua porção do cérebro lesionada! Tudo isso passou na cabeça do Zeca, antes que ele determinasse, condoído:
- Pegue a 11. Jogue na ponta esquerda.
Ponta esquerda, todos sabem, é aquela posição onde se escalam os cabeças-de-bagres, os donos da bola e os filhos das autoridades, enfim.
O jogo seria às 15h00, mas às 11 da manhã, Gilsinho já estava todo vestido e enchuteirado, dando piques de 100 m rasos no acampamento, para surpresa geral.
Enfim, chega a hora, o prefeito dá o pontapé inicial, a torcida aplaude e a contenda começa pra valer. Com cinco minutos de jogo, a torcida já batizou Gilsinho de Galo Tonto. Ele corria desesperado, onde quer que a bola fosse, como se estivesse perseguindo um ladrão. Saía trombando com todo mundo, companheiro, adversário, juiz, a torcida, o escambau. Ele fixava a bola e... Sai da frente! Deu uma peitada tão grande no goleiro, que lhe custou uma advertência e a substituição do titular pelo reserva, ao time adversário. Aos 43 minutos do primeiro tempo, Galo Tonto cambaleava pelo campo, como se estivesse bêbado, com a língua de fora, de tanto rodar e, detalhe importante, sem pegar na bola uma única vez até aquela altura da partida.
De repente, parece que sua ficha finalmente caiu. Morto de cansado, chegou pro Zeca, com a dignidade dos craques feridos:
- Quero substituição!
- Puta que pariu, Gilsinho, agüenta mais um pouco porra! O primeiro tempo já vai terminar.
- Negativo, tô saindo.
- Peraí, peraí. Vamos fazer o seguinte, vá para o gol, que o Naiuran vem pra ponta esquerda.
Meio a contragosto, lá vai o Gilsinho para as barras. Tentando se aproveitar, o centroavante do time adversário dá um chute do meio do campo. 44 minutos, a bola vai para fora. A reposição é demorada, o tempo passa, alguém entrega a bola pro novo goal keeper. Gilsinho pega a bola, bota debaixo do braço e fica parado debaixo da trave, olhando pras nuvens, como era seu costume. 45 minutos, Correa, nosso zagueiro, corre desesperado ao encontro de Gilsinho gritando:
- Vamos porra, dá o toque aqui!
E apontava para o chão, indicando onde o goleiro deveria rolar a bola. Gilsinho, olhando para aquele desespero do Correa, com olhar interrogador, vem se aproximando, a bola sempre debaixo do braço. Juiz já consultando o cronômetro. Os outros 21 jogadores aguardando.
- Aqui, porra! Dá logo o toque aqui, berrava ele apontando pra baixo, mostrando seu próprio pé.
Gilsinho finalmente tinha chegado a cinqüenta centímetros do Correa, que continuava se esgoelando:
- Pelo amor de Deus, Gilsinho, dá o toque aqui!
Toque?? Gilsinho não conhecia a linguagem do futebol. Apenas olhava curioso, o Correa indicando o próprio pé...
Deu o estalo! Finalmente Gilsinho entendera o “toque aqui” que o Correa tanto pedia.
Calmamente, a bola presa debaixo dos braços e com a destreza que Deus lhe deu, ergue o pé direito e com o bico da chuteira dá três toques certeiros na canela do Correa:
- Toc, toc, toc! Tá bom assim, ou quer mais?
Priiiiiii! Fim do primeiro tempo. Correa ficou com a canela sangrando e não voltou pro jogo. Gilsinho aposentou a chuteira. Nunca mais quis jogar e nem nunca comentou o assunto. E o jogo, a quem interessar possa, terminou zero a zero.
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* Nome fictício, personagem real.

Um comentário:

Unknown disse...

pow num acredito que axei mais alguem com esse nome!

colker coisa bryanevans9@hotmail.com