Tenho um colega de profissão que diz que todo geólogo é poeta. É... Pode ser... Mas adicionaria que, além de vate, todo geólogo é meio maluco. Não no sentido de louco varrido, que rasga dinheiro, mas no bom sentido, isto é, de sonhador, visionário, incompreendido e por isso, às vezes, um pouco fora da normalidade, se é que me entendem.
Vejam, por exemplo, o Trajano Vivier*, geólogo que se gabava de ser profundo conhecedor do vernáculo e da gramática, insuperável nas conjugações e imbatível nas armadilhas da sintaxe e da concordância verbal, nominal e o escambau de asa. Nos períodos de elaboração de relatórios ele trabalhava em casa, segundo dizia, para não ser perturbado pelo ambiente dispersivo do escritório, com aquele barulhinho irritante das máquinas de datilografia, os triim dos telefones e os colegas contando piadas. Aliás, ele afirmava que não escrevia e sim compunha relatório. Notaram a modéstia?
Pois bem, certa vez deu um texto composto em casa com todo esmero, para a dona Mara* datilografar. Esta, por sua vez, também se julgava exímia conhecedora da língua pátria e suas regras capciosas. Frequentemente ousava fazer pequenas alterações em nossos textos, em nome da correção e da elegância, segundo suas próprias palavras. De minha parte, quando não alterava o conteúdo, achava até bom. Na verdade todos confiavam muito nela, de forma que ela se sentia à vontade para essas “contribuições”. Todos, vírgula, menos Vivier. Dona Mara sabia disso, mas dessa vez, ela achou que, finalmente, pegara o sabichão numa escorregadela.
No texto aqui comentado, Vivier, descrevendo uma determinada região, anotou que ela apresentava “extensão areal” de 10 Km2. Estranhando a expressão, a ciosa secretária foi ao Aurélio e viu que a palavra areal refere-se a areia e não a área. Está lá no Aurélio, quem duvidar pode consultar. Assim, com a melhor das intenções substituiu o termo por “extensão em área” de 10 Km2. Quando entregou ao Vivier, para as correções, não comentou sobre a sutil alteração, claro.
Dia seguinte, por volta de 9h00, Trajano Vivier entra na sala das secretárias bufando, ofegante, com os olhinhos míopes trespassando o corpo de dona Mara, quais espadas afiadas:
- Dona Mara, com que autorização a senhora fez essa alteração absurda no meu texto? E apontou o trecho de que falamos acima.
Sem pestanejar, dona Mara pegou um Aurélio que mantinha sempre à mão, e abrindo na página adredemente marcada, exibiu-o ao Vivier, enquanto argumentava, com firmeza:
- Veja aqui doutor. Areal significa uma extensão de areia. Não tem nada a ver com área, superfície. Não sou eu quem está dizendo. Veja aqui!
Vivier tomou-lhe o volume das mãos, com solene desdém, colocou-o sobre uma cadeira, sobre a qual subiu, fazendo do conjunto um improvisado palco e pediu a todas as secretárias que se levantassem, porque ele iria fazer uma importante declaração. E assim, diante daquela espantada platéia, fez o seguinte discurso, que ficou para sempre impregnado nas paredes da sala das secretárias:
- Minhas senhoras, eu quero lhes dizer que todas as palavras existentes na língua portuguesa foram criadas, algum dia, em algum lugar, por alguém. As senhoras sabiam disso? Ou acham que as palavras nascem por si mesmas?
As coitadas se entreolhavam, sem entender bulhufas.
- E sabem quem foi um dos maiores criadores de palavras da nossa língua? Camões, o grande Camões, poeta maior da raça. Pois saibam que o famoso vate, quando lhe faltavam palavras, devido à pobreza do português da época, ele simplesmente as criava. Ali, na hora, na medida da necessidade de seus poemas.
Diante do espanto geral, prosseguiu:
- E foi assim que surgiu grande quantidade de palavras que nós usamos até hoje. Sabiam disso? Pelo gênio criador de Camões. Claro que não sabiam... Mas já pensou se dona Mara tivesse vivido naquela época? Coitada da nossa língua! Os Lusíadas, provavelmente não teriam sido concluídos, porque ela retiraria do texto tudo que os dicionários de então não registrassem.
Dirigindo-se diretamente a dona Mara, que ria constrangida, perguntou:
- Qual os nome de seus pais?
- Pedro e Marília...
- Pois é... O mundo não tem idéia do quanto deve a seu Pedro e dona Marília, por não terem encarnado na mesma época de Camões. Graças a Deus!
Nesse ponto, fez uma pausa teatral e, mirando dona Mara, com os olhinhos míopes por cima dos olhos, finalizou o discurso:
- Dona Mara , dona Mara ... Jamais, ouviu bem, jamais (o negrito é dele), substitua palavras nos textos de Trajano Vivier. Não me interessa que existam, ou não, no Aurélio. Camões criou palavras. Vivier também cria palavras. A partir desse momento, decreto a criação da palavra areal (o itálico é dele), no sentido de área. Revoguem-se as disposições em contrário...
Dona Laura, uma secretária simplória, que ouvia tudo, achando a maior graça, interrompeu para perguntar, do alto de sua inocência:
- Doutor! Camões também era geólogo?
Vivier fuzilou-a com um olhar de desprezo e retomou o discurso, para encerrá-lo com a devida solenidade:
- Como dizia, revoguem-se as disposições em contrário. E assim, dona Mara, com base nesse decreto, restaure-se o texto original de Trajano Vivier. A bem do vernáculo. E tenho dito!
Vejam, por exemplo, o Trajano Vivier*, geólogo que se gabava de ser profundo conhecedor do vernáculo e da gramática, insuperável nas conjugações e imbatível nas armadilhas da sintaxe e da concordância verbal, nominal e o escambau de asa. Nos períodos de elaboração de relatórios ele trabalhava em casa, segundo dizia, para não ser perturbado pelo ambiente dispersivo do escritório, com aquele barulhinho irritante das máquinas de datilografia, os triim dos telefones e os colegas contando piadas. Aliás, ele afirmava que não escrevia e sim compunha relatório. Notaram a modéstia?
Pois bem, certa vez deu um texto composto em casa com todo esmero, para a dona Mara* datilografar. Esta, por sua vez, também se julgava exímia conhecedora da língua pátria e suas regras capciosas. Frequentemente ousava fazer pequenas alterações em nossos textos, em nome da correção e da elegância, segundo suas próprias palavras. De minha parte, quando não alterava o conteúdo, achava até bom. Na verdade todos confiavam muito nela, de forma que ela se sentia à vontade para essas “contribuições”. Todos, vírgula, menos Vivier. Dona Mara sabia disso, mas dessa vez, ela achou que, finalmente, pegara o sabichão numa escorregadela.
No texto aqui comentado, Vivier, descrevendo uma determinada região, anotou que ela apresentava “extensão areal” de 10 Km2. Estranhando a expressão, a ciosa secretária foi ao Aurélio e viu que a palavra areal refere-se a areia e não a área. Está lá no Aurélio, quem duvidar pode consultar. Assim, com a melhor das intenções substituiu o termo por “extensão em área” de 10 Km2. Quando entregou ao Vivier, para as correções, não comentou sobre a sutil alteração, claro.
Dia seguinte, por volta de 9h00, Trajano Vivier entra na sala das secretárias bufando, ofegante, com os olhinhos míopes trespassando o corpo de dona Mara, quais espadas afiadas:
- Dona Mara, com que autorização a senhora fez essa alteração absurda no meu texto? E apontou o trecho de que falamos acima.
Sem pestanejar, dona Mara pegou um Aurélio que mantinha sempre à mão, e abrindo na página adredemente marcada, exibiu-o ao Vivier, enquanto argumentava, com firmeza:
- Veja aqui doutor. Areal significa uma extensão de areia. Não tem nada a ver com área, superfície. Não sou eu quem está dizendo. Veja aqui!
Vivier tomou-lhe o volume das mãos, com solene desdém, colocou-o sobre uma cadeira, sobre a qual subiu, fazendo do conjunto um improvisado palco e pediu a todas as secretárias que se levantassem, porque ele iria fazer uma importante declaração. E assim, diante daquela espantada platéia, fez o seguinte discurso, que ficou para sempre impregnado nas paredes da sala das secretárias:
- Minhas senhoras, eu quero lhes dizer que todas as palavras existentes na língua portuguesa foram criadas, algum dia, em algum lugar, por alguém. As senhoras sabiam disso? Ou acham que as palavras nascem por si mesmas?
As coitadas se entreolhavam, sem entender bulhufas.
- E sabem quem foi um dos maiores criadores de palavras da nossa língua? Camões, o grande Camões, poeta maior da raça. Pois saibam que o famoso vate, quando lhe faltavam palavras, devido à pobreza do português da época, ele simplesmente as criava. Ali, na hora, na medida da necessidade de seus poemas.
Diante do espanto geral, prosseguiu:
- E foi assim que surgiu grande quantidade de palavras que nós usamos até hoje. Sabiam disso? Pelo gênio criador de Camões. Claro que não sabiam... Mas já pensou se dona Mara tivesse vivido naquela época? Coitada da nossa língua! Os Lusíadas, provavelmente não teriam sido concluídos, porque ela retiraria do texto tudo que os dicionários de então não registrassem.
Dirigindo-se diretamente a dona Mara, que ria constrangida, perguntou:
- Qual os nome de seus pais?
- Pedro e Marília...
- Pois é... O mundo não tem idéia do quanto deve a seu Pedro e dona Marília, por não terem encarnado na mesma época de Camões. Graças a Deus!
Nesse ponto, fez uma pausa teatral e, mirando dona Mara, com os olhinhos míopes por cima dos olhos, finalizou o discurso:
- Dona Mara , dona Mara ... Jamais, ouviu bem, jamais (o negrito é dele), substitua palavras nos textos de Trajano Vivier. Não me interessa que existam, ou não, no Aurélio. Camões criou palavras. Vivier também cria palavras. A partir desse momento, decreto a criação da palavra areal (o itálico é dele), no sentido de área. Revoguem-se as disposições em contrário...
Dona Laura, uma secretária simplória, que ouvia tudo, achando a maior graça, interrompeu para perguntar, do alto de sua inocência:
- Doutor! Camões também era geólogo?
Vivier fuzilou-a com um olhar de desprezo e retomou o discurso, para encerrá-lo com a devida solenidade:
- Como dizia, revoguem-se as disposições em contrário. E assim, dona Mara, com base nesse decreto, restaure-se o texto original de Trajano Vivier. A bem do vernáculo. E tenho dito!
Tenho um colega de profissão que diz que todo geólogo é poeta. É... Pode ser.
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