Era uma noite comum de agosto no sertão goiano. Sem lua, escura como um breu e o céu com tantas estrelas que chegava confundir a vista. Os relógios marcavam 22h30 e já fazia 15 minutos que o acampamento do projeto Palmeiras ardia em chamas. Melhor dizendo, parte do acampamento, incluindo o restaurante, onde o fogo começou, dois dormitórios dos cozinheiros e o escritório da administração.
Quando os botijões de gás do estoque da cozinha (oito, no total) explodiam, uma língua apavorantemente bela de chamas azuis e violetas rasgava a escuridão, chegando a dez metros de altura. Os japoneses que estavam no acampamento, em um projeto de cooperação, tudo registraram, de longe, com suas inseparáveis câmaras.
Mas não quero aqui contar a história do incêndio, propriamente. Esta, com todos os detalhes, do começo ao fim, será narrada em capítulo à parte, nessa coleção de causos-memória. Por ora, interessa apenas destacar o momento em que o fogo alcançou o escritório da administração e todos corremos para tentar salvar o que fosse possível. Lá dentro, além do cofre com dinheiro, ficavam os equipamentos de geofísica, para recarga das baterias, toda a documentação de controle de material e pessoal, os registros do fundo de alimentação, a estação de rádio, arquivos, formulários, material de expediente, enfim, a memória viva do acampamento.
O detalhe fatal, porém, é que a cobertura do barraco era de palha, embora as paredes fossem de compensado. De modo que, em minutos, naquela noite seca de agosto, o telhado começou a desabar. Palmas ardentes se desprendendo e caindo em agonia, devorando tudo. Cada um saía com o que podia: caixas, equipamentos, ferramentas, pastas de papéis, móveis, etc.
De minha parte, assim que entrei naquela câmara ardente, me fixei na estação de rádio. Uma pequena mesa com um aparelho Telefunken, com cinco canais de freqüência. Era nossa comunicação com o mundo. Além dos boletins diários para a sede, era nosso contato com a família, aos domingos. Sem o rádio, estaríamos isolados, no coração do Brasil. A única alternativa era o posto público da Telegoiás, na cidade vizinha, quando a telefonista conseguia completar a ligação.
Corri para o rádio, disposto a resgatá-lo, a qualquer custo. Enquanto isso, labaredas caíam por todos os lados. Como já disse, nossa estação operava em cinco canais. Mas o detalhe dramático é que cada canal ligava-se à antena, através de uma conexão de rosca fina, saindo de sua parte traseira. Para minimizar o ruído, as roscas tinham de ser o mais apertado possível. Sentiram o drama? Não era só puxar os fios, era preciso desenroscá-los, um por vez. E as chamas já tinham alcançado a parede atrás do rádio e lambiam os fios. Só dispunha de uns parcos minutos, antes do colapso do escritório.
Desenrosquei o canal um, até com certa facilidade. O diabo é que o calor já afetava o material e estava insuportável segurar na cabeça metálica da conexão. Mesmo assim desenrosquei o canal dois, chutando algumas palhas caídas quase nas minhas costas. O canal três deu a testa. Não cedeu. O pessoal começou a gritar, do lado de fora:
- Saia Doutor! Deixa essa porra pra lá!
Enquanto eu passava para o canal quatro, o Mato Grosso entrou desesperado para me puxar. Pedi para ele tentar desenroscar o três. Ele tentou, mas não conseguiu.
- Você tá maluco rapaz? Vamos sair logo que essa porra vai desabar num minuto! Deixa essa porra pra lá! Vamos!
- Calma, já tô terminando! O quatro já saiu, só faltam o cinco e o três.
A fumaça sufocava e eu mal conseguia manter os olhos abertos. Nesse exato instante, o esteio lateral da cumeeira começou a ceder e a estrutura foi se inclinando, em câmara lenta, só que para o lado da parede oposta de onde estava o rádio.
O cabo do canal cinco saiu sem problema. Zeca desistiu de me tirar, quando o fogo alcançou a porta, formando uma cortina de labareda e fumaça.
- Quer morrer, morra sozinho!
Não havia mais ninguém no interior do barraco. Do lado de fora, as pessoas gritavam desesperadas:
- Pelo amor de Deus, Doutor! Saia logo! Não faça uma loucura dessas!
Alguém teve a idéia de lançar baldes de água na porta. E nada do cabo do canal três desenroscar. Além do mais, estava muito quente e eu já não conseguia mais tocar em nenhuma parte do rádio sem queimar a mão. A tosse era quase incontrolável.
Houve um estalo terrível, de madeira rachando e agora eu sabia que o barraco viria abaixo. Mas não sei o que me deu. Já sentia a pele engelhar, de tanto calor, pois estava só de cueca (estava dormindo quando o fogo começou e saí da cama, direto para ajudar no combate), mas havia decidido que salvaria o rádio. Nesse momento, vi uma caixa de ferramentas aberta, debaixo da mesa. Era a caixa de manutenção dos equipamentos de geofísica. Agachei-me, como deu e tive calma suficiente para procurar um alicate no meio daquele clima de terror. Não sei quantos segundos se passaram, mas achei o dando e finalmente consegui liberar o bendito canal três, após um esforço sobre-humano para vencer a ferrugem das roscas e o calor sufocante. Chegara ao fim meu pequeno drama kafkiano. Agora, era dar o fora daquele inferno.
Com a ajuda de uma flanela que estava sobre a caixa de ferramentas, abracei o rádio, como se fosse um filho e atravessei a barreira de chamas, no exato instante em que o teto veio abaixo, num estrondo ensurdecedor. Como uma cena de filme, o mocinho escapou no último segundo. A turma veio me encontrar, uns comemorando, outros me xingando. A primeira coisa que me deram foi um gole, pra relaxar, isso me lembro bem.
Desnecessário dizer das queimaduras que adquiri, por todo o corpo. No dia seguinte, fui medicado no posto de saúde da cidade, e tudo terminou bem. Mas o fato é que as pessoas que assistiram a esse episódio dizem-se impressionadas com minha calma e sangue frio e o transformaram num causo sempre narrado, com um exagero aqui, outro ali, nas rodas de biritas e lembranças da vida de campo.
Isso foi em 1987, se não me falham os neurônios. Mas, até hoje não sei dizer por que fiz aquilo. Sei que não foi deliberado. A decisão surgiu no instante em que entrei no barraco em chamas. Talvez, inconscientemente, por avaliar a importância de preservarmos nossa capacidade de falar com o mundo. Sei lá... Mas, de fato, no dia seguinte, utilizando cabos e antenas de reservas, foi por ele que falamos com Goiânia e as primeiras providências de assistência foram tomadas.
Hoje, com a visão ampliada que só o distanciamento dá, digo que não fui herói, nem maluco. Fui apenas determinado. E contei com a sorte. Só isso.
Quando os botijões de gás do estoque da cozinha (oito, no total) explodiam, uma língua apavorantemente bela de chamas azuis e violetas rasgava a escuridão, chegando a dez metros de altura. Os japoneses que estavam no acampamento, em um projeto de cooperação, tudo registraram, de longe, com suas inseparáveis câmaras.
Mas não quero aqui contar a história do incêndio, propriamente. Esta, com todos os detalhes, do começo ao fim, será narrada em capítulo à parte, nessa coleção de causos-memória. Por ora, interessa apenas destacar o momento em que o fogo alcançou o escritório da administração e todos corremos para tentar salvar o que fosse possível. Lá dentro, além do cofre com dinheiro, ficavam os equipamentos de geofísica, para recarga das baterias, toda a documentação de controle de material e pessoal, os registros do fundo de alimentação, a estação de rádio, arquivos, formulários, material de expediente, enfim, a memória viva do acampamento.
O detalhe fatal, porém, é que a cobertura do barraco era de palha, embora as paredes fossem de compensado. De modo que, em minutos, naquela noite seca de agosto, o telhado começou a desabar. Palmas ardentes se desprendendo e caindo em agonia, devorando tudo. Cada um saía com o que podia: caixas, equipamentos, ferramentas, pastas de papéis, móveis, etc.
De minha parte, assim que entrei naquela câmara ardente, me fixei na estação de rádio. Uma pequena mesa com um aparelho Telefunken, com cinco canais de freqüência. Era nossa comunicação com o mundo. Além dos boletins diários para a sede, era nosso contato com a família, aos domingos. Sem o rádio, estaríamos isolados, no coração do Brasil. A única alternativa era o posto público da Telegoiás, na cidade vizinha, quando a telefonista conseguia completar a ligação.
Corri para o rádio, disposto a resgatá-lo, a qualquer custo. Enquanto isso, labaredas caíam por todos os lados. Como já disse, nossa estação operava em cinco canais. Mas o detalhe dramático é que cada canal ligava-se à antena, através de uma conexão de rosca fina, saindo de sua parte traseira. Para minimizar o ruído, as roscas tinham de ser o mais apertado possível. Sentiram o drama? Não era só puxar os fios, era preciso desenroscá-los, um por vez. E as chamas já tinham alcançado a parede atrás do rádio e lambiam os fios. Só dispunha de uns parcos minutos, antes do colapso do escritório.
Desenrosquei o canal um, até com certa facilidade. O diabo é que o calor já afetava o material e estava insuportável segurar na cabeça metálica da conexão. Mesmo assim desenrosquei o canal dois, chutando algumas palhas caídas quase nas minhas costas. O canal três deu a testa. Não cedeu. O pessoal começou a gritar, do lado de fora:
- Saia Doutor! Deixa essa porra pra lá!
Enquanto eu passava para o canal quatro, o Mato Grosso entrou desesperado para me puxar. Pedi para ele tentar desenroscar o três. Ele tentou, mas não conseguiu.
- Você tá maluco rapaz? Vamos sair logo que essa porra vai desabar num minuto! Deixa essa porra pra lá! Vamos!
- Calma, já tô terminando! O quatro já saiu, só faltam o cinco e o três.
A fumaça sufocava e eu mal conseguia manter os olhos abertos. Nesse exato instante, o esteio lateral da cumeeira começou a ceder e a estrutura foi se inclinando, em câmara lenta, só que para o lado da parede oposta de onde estava o rádio.
O cabo do canal cinco saiu sem problema. Zeca desistiu de me tirar, quando o fogo alcançou a porta, formando uma cortina de labareda e fumaça.
- Quer morrer, morra sozinho!
Não havia mais ninguém no interior do barraco. Do lado de fora, as pessoas gritavam desesperadas:
- Pelo amor de Deus, Doutor! Saia logo! Não faça uma loucura dessas!
Alguém teve a idéia de lançar baldes de água na porta. E nada do cabo do canal três desenroscar. Além do mais, estava muito quente e eu já não conseguia mais tocar em nenhuma parte do rádio sem queimar a mão. A tosse era quase incontrolável.
Houve um estalo terrível, de madeira rachando e agora eu sabia que o barraco viria abaixo. Mas não sei o que me deu. Já sentia a pele engelhar, de tanto calor, pois estava só de cueca (estava dormindo quando o fogo começou e saí da cama, direto para ajudar no combate), mas havia decidido que salvaria o rádio. Nesse momento, vi uma caixa de ferramentas aberta, debaixo da mesa. Era a caixa de manutenção dos equipamentos de geofísica. Agachei-me, como deu e tive calma suficiente para procurar um alicate no meio daquele clima de terror. Não sei quantos segundos se passaram, mas achei o dando e finalmente consegui liberar o bendito canal três, após um esforço sobre-humano para vencer a ferrugem das roscas e o calor sufocante. Chegara ao fim meu pequeno drama kafkiano. Agora, era dar o fora daquele inferno.
Com a ajuda de uma flanela que estava sobre a caixa de ferramentas, abracei o rádio, como se fosse um filho e atravessei a barreira de chamas, no exato instante em que o teto veio abaixo, num estrondo ensurdecedor. Como uma cena de filme, o mocinho escapou no último segundo. A turma veio me encontrar, uns comemorando, outros me xingando. A primeira coisa que me deram foi um gole, pra relaxar, isso me lembro bem.
Desnecessário dizer das queimaduras que adquiri, por todo o corpo. No dia seguinte, fui medicado no posto de saúde da cidade, e tudo terminou bem. Mas o fato é que as pessoas que assistiram a esse episódio dizem-se impressionadas com minha calma e sangue frio e o transformaram num causo sempre narrado, com um exagero aqui, outro ali, nas rodas de biritas e lembranças da vida de campo.
Isso foi em 1987, se não me falham os neurônios. Mas, até hoje não sei dizer por que fiz aquilo. Sei que não foi deliberado. A decisão surgiu no instante em que entrei no barraco em chamas. Talvez, inconscientemente, por avaliar a importância de preservarmos nossa capacidade de falar com o mundo. Sei lá... Mas, de fato, no dia seguinte, utilizando cabos e antenas de reservas, foi por ele que falamos com Goiânia e as primeiras providências de assistência foram tomadas.
Hoje, com a visão ampliada que só o distanciamento dá, digo que não fui herói, nem maluco. Fui apenas determinado. E contei com a sorte. Só isso.
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