quarta-feira, junho 20, 2007

A traição do martelo

Certa vez, quando trabalhava no Nordeste de Goiás, em 1978, descia a encosta verticalizada de um vale, para atingir o leito do córrego lá embaixo, em busca de afloramento. Eu e um motorista, o Dete. A descida ia tranquila, como pode ser uma descida sob mata ciliar intrincada, cipós, raízes aéreas, insetos, espinhos, solo escorregadio coberto de folhagem úmida, caminho aberto a facão.
Um pequeno parêntesis para explicar que o geólogo, por conta de suas necessidades básicas, carrega no cinto pelo menos o inseparável martelo, a bússola e a caderneta de campo, cada um em seu porta-objeto apropriado. Além disso, nas mãos vão mapas dobrados e fotografias aéreas. Por fim, a mochila, com os apetrechos pessoais, equipamentos menores, material de consulta, etc. Isso, para mostrar o quão difícil se torna o avanço em situações como a aqui relatada, com os apetrechos do cinto se embaraçando na vegetação.
Fechemos o parêntesis para voltar ao causo da descida íngreme para o córrego do primeiro parágrafo. Como dizia, tudo era céu de brigadeiro, quando, já chegando ao fim da jornada, de mais ou menos 50 metros, fomos atacados, sorrateira e covardemente, por furiosa colméia de abelhas Europa.
Quando vi o recuo e depois a correria desabalada do Dete, que passou por mim feito um boi desgarrado, dando tapas na própria cabeça, compreendi imediatamente a encrenca em que nos metêramos. Mas o Dete, que só levava o facão e uma mochila, em fração de segundos sumiu da minha vista, encosta acima, jogando fora a mochila e escafedendo-se. Eu tinha me fingido de morto e ficado imóvel em meu canto e talvez por isso fui poupado no primeiro round do ataque. Mas, à medida que comecei a subir de volta, lentamente, despertei a atenção do inimigo que desviou em minha direção todo o poder de fogo de seu exército zumbidor. Foi um ataque fulminante. Num piscar de olhos, vi-me flagelado por milhares de abelhas grudadas em minhas roupas, na cabeça, rosto e braços, ferroando com ira desesperada e fazendo um barulho infernal.
Consegui ainda me desvencilhar da mochila, nem sei como e arranquei no encalço do Dete. Só que , no ímpeto do arranque e na pressa do movimento, dei um nó no corpo e o martelo, pendurado do lado esquerdo da cintura, ficou enganchado num cipoal, de uma maneira tal que me imobilizou. Tentei abandoná-lo, não consegui. Era um nó de porco. Justo meu martelo que era pau pra toda obra, me trair numa hora dessas! Tentei tirar o cinto, mas os apetrechos todos emperraram, nas alças da calça jeans. Estava, literalmente, numa armadilha. Não havia como me libertar do enrosco, a não ser com muita calma e sangue frio, sem desespero.
Num átimo, avaliei a gravidade da situação e, mesmo sob as ferroadas, estudei o nó dos cipós, fui destrançando e, poucos segundos depois, estava livre para retomar a fuga, o que fiz sem mais delongas. Só deixei pra trás a mochila. Mantive os demais apetrechos e fiz do boné minha arma de defesa. Além de correr, como podia, agredia o bando com jabs de boné, em todas as direções, tirando de combate algumas dezenas de soldados por golpe. De modo que quando cheguei ao topo, em campo aberto, as abelhas perderam a proteção da mata intrincada e, considerando o invasor repelido, pouco me perseguiram, não mais de dez metros.
Devo dizer que apenas as primeiras ferroadas doeram. A partir de determinado ponto, a dor não aumenta mais, estabiliza. Com a adrenalina a mil, e anestesiado, enfrentei o bando alado até que caí exausto no capinzal da campina. Somente aí o Dete apareceu para me resgatar. Levou-me para o posto de saúde de Dianópolis, onde fui medicado, já com febre e as costas em estado lastimável. Depois ele voltou com alguns peões para recuperar as mochilas.
Mas esse episódio impressionou muito o motorista. Passou a referir-se a mim como a pessoa mais calma que ele conhecera. Em sua avaliação, ninguém enfrentaria um enxame de abelhas com a calma que eu enfrentei.
Pois bem, muitas voltas do relógio dos anos depois, o Dete contava esse causo, em uma roda de empregados, entre goles de cerveja, como se fosse um exemplo máximo, insuperável, de sangue frio. Terminado o relato, o Zé Garcia, que tudo ouvira em silêncio, deixou todos espantados quando revelou:
- Isso não é nada! Aliás, isso é pinto, perto do que vi o Doutor fazer no dia do incêndio no acampamento do projeto Palmeiras. Ali sim, é que ele demonstrou frieza, ante o perigo. Uma frieza que quase nos matou de aflição e suspense.
Ante a curiosidade geral, ele narrou o estranho causo que será relatado a seguir, sob o título de “Suspense do canal três”. Avalie, você mesmo.

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