quarta-feira, maio 30, 2007

Chanãzinha, quem diria, foi pro brejo

1993, projeto Carutapera. Baixada maranhense, um lugar maravilhoso de encantos naturais e caboclos amistosos, hospitaleiros. E havia o garimpo de ouro... E o garimpo, aonde chega, traz muitos forasteiros e desfigura a paisagem e inocula a desconfiança nas gentes locais. E assim foi com seu Antonio.
Ele tinha (não sei se ainda tem) uma propriedade entre as cidades de Godofredo Viana e Cândido Mendes, onde a CPRM tinha alvos de pesquisa nos quais eu desenvolvia atividades rotineiras de prospecção, com equipes de topografia, amostragem geoquímica e mapeamento de detalhe. E o nome era fazenda Marimbondo. Todos os dias parava o carro na “sede” da Marimbondo, um rancho de parede estucada e telhado de palha e tirava um dedo de prosa com seu Antonio e seus dois filhos adolescentes, Marquinho e Marcelo, acredito que não mais de 15 e 17 anos, respectivamente. Ele oferecia uma cuia de açaí ou café e perguntava assim como quem não quer nada:
- E os trabalhos? Será que tem ouro aí nessas baixadas, home de Deus?
Eu respondia com evasivas, dizendo que ainda era prematuro dizer alguma coisa, que os trabalhos estavam no início, ainda não tinha os resultados das análises... Essas coisas de desconversar.
Pois bem, o terreno de seu Antonio ficava nas margens de um igarapé com vasta área de inundação, formando uma planície embrejada de intocada vegetação nativa. Só havia pastagens nas partes mais altas, em ambas as margens do igarapé. Normalmente, o gado de cria não circulava pelo brejo, pois não havia trilhas, a não ser uma, artificialmente construída, sobre aterro tosco, que descia com as primeiras chuvas. Mas, como geólogo não se liga nas leis bovinas, nossas picadas cruzaram o brejo em vários pontos, oferecendo novas possibilidades de circular entre as pastagens. Determinados trechos desse brejo eram pantanosos, a perna afundava até a coxa e era um sacrifício atravessar.
Um belo dia paro eu, para o costumeiro café e noto seu Antonio meio aperreado, apesar da hospitalidade de sempre.
- Doutô! Sabe aquela picada de vocês, que passa lá na solta do açaizal?
- Sei, seu Antonio.
- Pois é home! Uma desgraceira! Vai lá pra tu ver! Uma das minhas melhores vacas tá lá atolada. A Chanã. Passemo a madrugada toda tentando tirar a pobre, mas não tem jeito... Vai morrer.
Fiquei sem saber o que dizer e ele prosseguiu:
- Quatro horas da manhã, a vaca não apareceu no curral, fomos atrás, levando o bezerro. Logo achemo ela lá, quietinha... Quase não mexia mais, de tão fraca. Deve ter passado a noite atolada. Não passa de hoje! Vamos ter de matar, para aproveitar pelo menos a carne!
Eu ouvia o relato sem interromper, mas já prevendo que meu dia não seria dos melhores. O pior é que estava sozinho. Tinha deixado as turmas nas picadas e voltava para Godofredo Viana.
Depois de um longo e tenebroso silêncio, só me ocorreu dizer o seguinte:
- Há algo que eu possa fazer seu Antonio? Posso trazer mais gente pra ajudar tirar a vaca, quem sabe?
- Não, seu Reginaldo! Chanãzinha tá perdida, home!. Aquela, nem Deus salva.
Muito calmamente, ele se levantou até o alforje de couro, pendurado num esteio de madeira do alpendre tosco e de lá retirou um pacote de papel de cigarro, desses que ainda se usa no interior, e um saquinho de pano, de cor indefinida, contendo fumo picado. Enquanto enrolava o pito, foi me dizendo com uma determinação que não ousei desconhecer:
- Seu Reginaldo, o negócio é o seguinte. Nós deixemo o senhor trabalhar na nossa terra e demo toda assistência, não foi?
- Claro, seu Antonio.
- Mas nós não pode ficar no prejuízo. O senhor mesmo vê que somos gente sofrida, de poucas posses. Uma vaca daquela, das melhores do rebanho, é muito pra nós home, o senhor compreende? Além do mais, tava enxertada, ia dar cria...
Fez uma pausa, sorveu a primeira tragada do pito e arrematou com firmeza:
- Se não fosse a picada que o senhor mandou abrir, a vaca não ia morrer, não é mesmo? Então é muito justo que o senhor me pague pra mode eu comprar outra, o senhor não acha certo, seu Reginaldo?
- Entendo perfeitamente que o senhor não pode ficar no prejuízo, seu Antonio. Mas gostaria que o senhor entendesse, também, que eu, aqui na região, represento uma empresa e, na verdade, é essa empresa e não eu, como pessoa física, que vai arcar com a indenização da sua vaca.
Seu Antonio me ouvia, com paciência, saboreando o pito. Completei:
- Vamos combinar um valor justo e eu prometo me empenhar, pessoalmente, para que o senhor seja indenizado o mais rápido possível.
Ouviu-se então, um pigarro, uma cusparada e a resposta, em tom que começou a ativar minha adrenalina:
- Olha seu Reginaldo, meu trato sempre foi com o senhor, não foi? Não conheço ninguém da sua empresa e nem autorizei ninguém a fazer desgraceira em minha terra, a não ser o senhor. A bem da verdade, o preço da vaca é mil e duzentos reais (esse é o valor aproximado da conversão que fiz da moeda da época) e eu quero saber quando vou receber. O senhor que se entenda lá com seus patrão.
O valor estipulado foi absurdamente acima do mercado. Uma vaca de 15 arrobas não vale mais de setecentos e cinqüenta reais. Quanto a estar prenha, nunca pude apurar a veracidade da afirmação. Mas vi que a partir daquele momento só me restava negociar a melhor saída para mim e não questionar as condições que ele impusesse. Meu instinto de sobrevivência me fez compreender que estava sob ameaça real e perigosa.
- Tudo bem, seu Antonio. Assumo pessoalmente com o senhor. Mas vou ter de solicitar para alguém me mandar o dinheiro para o Banco do Brasil de Bragança, no Pará. Eu não tenho esse valor comigo no momento. Preciso ir até Cândido Mendes (onde havia posto telefônico), para usar o telefone.
- Humm... Vamo fazer o seguinte. O senhor naturalmente tem algum, porque não ia tocar um serviço desses, aqui nessas lonjuras, só com trocados. Me adianta o que puder, ainda hoje. Depois o senhor vai lá na cidade e faz uma declaração no cartório de dona Amália, reconhecendo o débito. Ela é minha amiga e de confiança. Meus meninos vai acompanhar o senhor, só por segurança. Não leve a mal, mas aqui nós age desse jeito, não sabe? É tudo certim, pra não terminar em confusão sem necessidade.
A seu chamado, os “meninos” saíram de dentro do rancho, cada qual com uma cartucheira 38 a tiracolo, para me acompanharem. Compreendi que estava seqüestrado e que a partir dali tinha de agir muito comportada e calmamente, para a situação não ficar fora de controle.
Depois de confabularem, os três, bem baixinho, Marquinho, o mais velho, aboletou-se na carroceria da picape Toyota, enquanto Marcelo veio a meu lado. Ambos eram extremamente fechados. Decididamente, não gostavam da “invasão” daquele pessoal de fora, em suas terras. As armas ficaram à vista.
Voltei para Godofredo, onde tínhamos uma casa alugada. Ao entrar na rua esburacada, de terra, Marquinho berrou no meu ouvido:
- Faça a volta do carro e pare de frente da casa. Não converse com ninguém e se chegar visita não receba, tá doutô? Pegue logo o dinheiro que puder, que o pai quer nós de volta antes de meio dia.
Peguei mais ou menos o equivalente a duzentos reais, guardei na mochila e voltamos imediatamente para Cândido Mendes. Lá, fui guiado para o cartório da dona Amália, uma senhora obesa e asmática, que mal conseguia falar, de tanta falta de ar. Ao solicitar a declaração, ela me perguntou se eu mesmo não podia redigir. Fui pra máquina de datilografia e fiz uma declaração de que uma vaca do senhor Antonio, tinha sido sacrificada, em função de ter atolado em picada aberta pela CPRM, cujo valor de indenizatório fora estipulado pelo proprietário, em mil e duzentos reais, dos quais saldei de imediato, a quantia de duzentos reais, etc. Após todos os trâmites no cartório, fomos ao posto telefônico da TELMA, sempre o Marquinho na minha cola.
Pedi uma ligação para o Gerente de Recursos Minerais da Superintendência de Recife e fiz um relato bem pausado, medindo as palavras, do ocorrido. De modo que ele me achou estranho e perguntou, se estava tudo bem, até porque eu estava ligando no meio da manhã, coisa absolutamente anormal.
- Não! Respondi em tom aflito.
- O que está havendo?
Usando o alfabeto do jargão do rádio, informei, bem rapidamente:
- eco, sierra, tango, oscar, uniforme, espaço, november, uniforme, michel, alfa, espaço, fox, romeu, índia, alfa. Traduzindo: estou numa fria!
Daí, ele foi fazendo as perguntas e eu respondendo com monossílabos. Até que ficou claro que estava sob a mira do filho do interessado e que ele, pelo amor de Deus, me depositasse mil reais, urgente! Ele me garantiu que faria isso o mais rápido possível e perguntou se queria acionar a polícia federal, o que eu descartei.
Tranqüilizei os “meninos”, tomamos um refrigerante e voltamos pra fazenda de seu Antonio. Adiantei-lhe os duzentos reais, fazendo-o assinar um recibo e as coisas se distensionaram. Ao me despedir, já mais de meio dia, ele me fez uma sutil recomendação:
- Não desapareça não, viu seu Reginaldo? Nós gostemo muito do senhor.
Registrei o que as palavras não disseram e pedi proteção a meu anjo da guarda.
E toquei a vida normalmente, sempre passando lá, pra dar um alôzinho ao meu algoz. Nunca perguntei o destino final da vítima do brejo.
Uma semana depois, fui a Bragança, saquei o restante da indenização e completei meu resgate. Agora, era um homem livre.
Decorridos uns dois meses do acontecido, fiquei sabendo o final da história, pelos peões, sempre bem informados. Seu Antonio conseguira salvar a Chanãzinha, que ficou aleijada de uma perna, mas continuou dando leite e, com o dinheiro da indenização, comprou oito bezerros e ainda fez uma reforma no curral.
Certa tarde de feira, encontro seu Antonio, em Godofredo.
- Oi seu Reginaldo! Já tem o resultado das pesquisas? Tem ou não tem ouro no Marimbondo, home?
- Infelizmente, os resultados foram bem fraquinhos, seu Antonio. Vamos descartar a área.
Ele se lamentou e nos despedimos. Nunca mais o vi.
Um peão que estava ao meu lado comentou:
- Bem, ouro ele não vai ter, mas pelo menos umas pratinhas a CPRM deu pra ele, né?
Pensei comigo:
- É... Não deixa de ser verdade.

segunda-feira, maio 28, 2007

A terceira exigência

A Falconbrigde tinha uns alvos de pesquisa a sul do município de Porangatu, parte dos quais ficava numa das fazendas dos Ludovico. Essa família era famosíssima em todo o interior de Goiás naquela época, 1977, pelos métodos que usava para grilar terras e expulsar posseiros. O chefe do clã, conhecido como “o velho Ludovico” tinha mais de 90 anos, mas uma vitalidade e lucidez impressionantes. Além disso, tinha uma fala mansa, aquele olhar bondoso dos velhinhos e um inofensivo cajado sempre à mão. Enfim, aquele vô, ou bisavô, que todos nós gostaríamos de ter. Quem visse e ouvisse aquela figura cândida, não poderia imaginar, mas o que se dizia, a boca pequena, era que o velho era de uma crueldade e frieza inacreditáveis, tendo vários crimes nas costas.
Atualmente, seu herdeiro mais fiel era Ludinho, um de seus filhos que já contava aí com seus 45 anos. Segundo se comentava, superava o velho em todas as virtudes, especialmente nos métodos de convencimento. Raramente vinha a Porangatu, cuidando das demais propriedades da família, pra dentro do sertão goiano. Diziam as más línguas que de vez em quando vinha se esconder de algum crime cometido nos cafundós do cerrado. Dava um tempo e depois desaparecia novamente, meses a fio.
O fato é que, ao constatar que um dos nossos alvos ficava na fazenda do velho, fui lá pedir permissão e explicar nossas intenções. Os peões duvidavam que tivesse sucesso, temendo inclusive por minha vida, já que toda a fazenda era vigiada por capangas ocultos em pontos estratégicos, desde a cancela da entrada. Fizeram mil recomendações.
Mesmo assim arrisquei. Parei o carro na guarita e tentei explicar ao troglodita de plantão. Ele não entendeu bulhufas, mas diante de nossa argumentação, concordou que eu fosse sozinho falar com o velho.
- O restante dos cabras fica aqui, por garantia!
Por um rádio transmissor requisitou alguém para me acompanhar. Menos de cinco minutos depois, uma Picape C-10 nos apanhou, exigindo que deixasse o martelo, o cantil, o porta-caderneta e a mochila na guarita. Só me deixou levar as fotografias aéreas.
Estava meio cabreiro, porque meu tipo físico não era propriamente um modelo conservador, e por isso, às vezes assustava as velhas gerações. Um macacão cor laranja, desses de posto de gasolina, cabelo estilo Morais Moreira, amarrado atrás, barba de meses, chapéu espalhafatoso, óculos escuros, enfim... Mas também é verdade que tinha lá minha simpatia e magnetismo pessoal. Como nasci e me criei no interior, sei a linguagem dos sertanejos. O velho me recebeu mais com curiosidade do que com desconfiança. Olhava-me de cima abaixo esboçando um sorriso enigmático. Ofereceu café e depois de uns 15 minutos já estávamos quase íntimos. Expliquei que iríamos coletar umas amostras de terra, em tal e tal lugar e outras de areia nos córregos tais e tais. E deixei claro que se nossa pesquisa desse positiva, faríamos um acordo para executar outros trabalhos mais invasivos. Depois de algumas perguntas ele consentiu, com três condições:
1- Que todos os dias, ao final dos trabalhos, passasse na sede para tomar um café;
2- Que falasse com Ludinho, quando ele aparecesse, e;
3- Que viesse à fazenda numa noite de lua, fazer uma seresta, “daquelas de antigamente” (na conversa, tinha dito ao velho que gostava de fazer serestas).
Claro que concordei com as simpáticas exigências e dei início, imediatamente, aos trabalhos.
Aqui devo esclarecer que, para manter a regularidade das malhas de amostragem, usava cordas padronizadas de 50 m, tanto nas picadas, quanto ao longo das drenagens amostradas. E, logicamente, toda nossa movimentação era acompanhada, diariamente, pelos olheiros do velho. No cafezinho dos fins de tardes, ele sempre perguntava como iam os trabalhos e se ainda faltava muito. E eu ia informando com exatidão, atualizando-o sobre o estágio da campanha. E os dias transcorreram sem surpresa, até uma segunda-feira inesquecível. Quando encostei a Rural no terreiro da sede, para o cafezinho, fui recebido por um galego dos cabelos crespos, meio sarará, muito alto e espadaúdo, barba mal feita e bigode ruivo estilo português de padaria. Botas de rodeio, um cinturão vistoso, fivela cabeça-de-cavalo... Dava pra ver a saliência do revolver por baixo da camisa aberta no peito.
Veio caminhando bem devagar, de encontro ao carro. Adivinhei imediatamente quem era e meu sexto sentido me deixou alerta.
- Boa tarde!
Tinha os olhos miúdos, perscrutadores e a testa franzida, de quem observa. Fez um leve movimento de cabeça, sem se preocupar em responder o cumprimento.
- O senhor é o Dr. Reginaldo?
Dentro do carro ainda, respondi que sim. Achei impertinente perguntar quem era ele. Fiquei na minha.
- E como vai o andamento dos trabalhos?
- Quase no fim. Daqui até sexta-feira acho que concluímos.
- Hum... Mas desça ! Papai quer te ver. Deixe os meninos esperando aqui.
Os meninos, a que ele se referia, eram um técnico e três peões.
Na sala, só nós três, Ludinho foi direto ao assunto, deixando de lado qualquer intenção de simpatia:
- Papai tá muito decepcionado com o senhor, Dr. Reginaldo. Lhe deu permissão pra fazer uma coisa, na boa fé e o senhor tá fazendo outra. Olha aqui, vá logo dizendo quem são vocês, realmente, e o que pretendem em nossas terras.
Já tinha a resposta na ponta da língua:
- Me descuple, mas não tenho nada a acrescentar ao que expliquei em detalhes a seu Ludovico, dias atrás. O que lhe disse é a verdade. Não menti nem omiti nada. E só estou fazendo as amostragens consentidas. Nada mais.
O velho calado estava, calado ficou. Mas o sorriso bondoso sumiu-lhe do rosto. Fechou os olhos e passou a ser só ouvidos. A empregada deixou o café na mesa e um pesado silêncio se estabeleceu. Servi-me do café, primeiro, obedecendo a uma ordem gestual de Ludinho. Ao se servir, ele tirou o revolver de dentro da camisa e colocou, dentro do coldre, ao lado da bandeja. Em pé ainda, retomou a conversa:
- Olha Dr. Reginaldo, não somos bobos. O Senhor pediu permissão para tirar amostras de terras por aí, mas na verdade vocês estão medindo nossas terras. Nossos peões vêem vocês com uma corda medindo tudo por aí. É mentira?
- Não. Mas...
- Não tem mais nem menos, sô! Sabe o trabalho que nos deu legalizar essas terras todas? Aqui correu sangue! Se o senhor não sabia fique sabendo. Pra que diabos o senhor anda medindo as terras? É mapa para o INCRA?
Com muito esforço, repeti tudo o que fazíamos e o porquê das cordas e medições. Balancei a convicção dele, mas não lhe abrandei o coração. Consciência culpada, é fogo! Um pouco menos tenso, ele concluiu a conversa:
- Pois bem. A autorização de papai se encerrou ontem. Deixe no terreiro todas as amostras de hoje e não volte mais a nossas terras. Até hoje foram nossos visitantes. A partir de agora, se insistirem, serão considerados invasores. Falo pelo bem de vocês.
Levantou-se, indicando o fim da reunião. Garanti-lhe que não entraria mais na fazenda e ainda agradeci pela acolhida. Deixamos no terreiro todas as amostras de solo, sedimento e rocha recolhidas e batemo-nos em retirada. Os peões estavam apavorados e tementes pelo que poderia me acontecer, ante a ira do Ludinho. Felizmente, os resultados das amostras que coletamos não foram animadores, de modo que não tive mesmo nenhum motivo para voltar e me entender com os Ludovico.
Só lamento que o velho, que já deve estar no andar de cima, não pode ver cumprida a terceira exigência, a da seresta na fazenda, que eu estava preparando, com muito carinho, para comemorar o encerramento dos trabalhos. Exigência por exigência, venceu a do Ludinho, claro. Paciência. De lá para cá, tive trinta anos para fazer serestas e ainda estou aí, na estrada. Deus é mais!

domingo, maio 20, 2007

Aliança acusadora

Renan, nome fictício, era um geólogo de pouco tempo de casamento, mas que não perdoava uma aventura amorosa, mesmo que passageira, em seus dias de campo, pelo interior de Goiás, década de 80. Era pintar a oportunidade, ele embarcava, sem sentimento de culpa. Esse seu ponto fraco acabará destruindo seu casamento, mas na época do causo aqui narrado, 1983, ele levava tudo numa boa. Ensinava que o segredo para manter o casamento era negar tudo, sempre. Sob a evidência mais escandalosa, o negócio era fazer cara de vítima e negar... Negar até morrer, ele dizia. E ia levando a vida.
Estava numa cidadezinha garimpeira, num fim de tarde de domingo, fazendo happy hour, com outro colega geólogo, num barzinho de má fama, freqüentado também pelas “moças” que vinham de Goiânia, atraídas pela grana dos garimpeiros.
De repente, entram duas morenas lindíssimas, acompanhadas por alguns rapazes da cidade e ocupam a mesa ao lado. Uma das beldades ficou bem de frente para o Renan, que não perdeu tempo. Uma frenética troca de olhares e sinais furtivos teve início. Assim que a morena começou a corresponder aos olhares, com aquele sorrisinho maroto, Renam, instintivamente, tira a aliança e coloca no bolso da camisa.
Decorridos cerca de 40 minutos, o grupo da mesa das morenas se levanta para ir embora, porém ao passar rente à mesa do Renan, uma delas fez um discreto sinal de “espere” com as mãos, sinalizando que voltaria. Renan agradeceu aos céus e resolveu pagar pra ver. De fato, menos de 15 minutos após, as garotas retornaram e se aboletaram na mesa dos dois geólogos, ávidas para tomarem umas cervejinhas e "otras cositas". Daí pra frente foi do jeito que o diabo gosta...
Segunda-feira, seis da manhã. Renan acorda, com o sol no quarto, uma puta dor de cabeça, sede de retirante e aquele gosto de sola de sapato na boca. A popular ressaca.
Lentamente, vai recuperando as lembranças e reconstitui a farra da noite passada.
- Fazer o quê? Pensava. Nada que um dia de trabalho no campo não cure.
Renan era acostumado a esses embalos e tirava de letra, sempre argumentando que uma boa causa valia qualquer sacrifício. Era jovem e tinha uma saúde de ferro. Tomou um banho frio, um velho e bom engov, mandou uma prato de carne de sol com mandioca e ovo frito, um suco de laranja e estava no ponto, pronto pra outra.
Ao procurar a aliança no bolso da camisa, porém, não encontrou. Revirou o bolso, mas lá só havia sua carteira de identidade e uns trocados. Nos bolsos da calça também não havia nada. Sem perda de tempo, pagou o mico de acordar o garçom do bar para procurar no salão, onde se lembra de ter dançado umas lambadas com a morena. Mas, nada. A aliança foi, definitivamente, perdida.
Sem jeito a dar, Renan se conformou, mas ficou chateado, porque seria bastante desagradável ter de inventar histórias para a esposa. Algo dentro dele lhe advertiu que dessa vez o bicho ia pegar. Os dias se passaram e finalmente ele retornou para o “lar”, após quase trinta dias de ausência. No caminho, vinha decorando cada detalhe da justificativa que daria para a mulher. E assim foi.
Renan foi direto ao assunto.
- Querida, tenho uma notícia desagradável! Perdi minha aliança.
Entre surpresa e desconfiada, a esposa perguntou:
- Como assim?
- Pois é... Tive de fazer uns perfis eletromagnéticos terrestres, usando um equipamento supersensível... Daí, no primeiro dia, vi que a aliança estava alterando as leituras e tirei. Botei no bolso da calça, esqueci depois e mandei lavar... Quando me lembrei e fui atrás da lavadeira, já era tarde... Deve ter caído no córrego onde ela lavou.
Ingênua, a esposa acreditou que havia de fato, tal aparelho, pois sempre ouvia os comentários do marido sobre levantamentos cintilométricos, gravimétricos, etc. Papo de geólogos. Certamente, o coitado agira de boa fé. De modo que, passada a surpresa, tudo voltou ao normal e Renan suspirou aliviado. No dia seguinte, comprou um par de alianças novo e o ambiente em casa seguiu tranqüilo e sereno.
Uma semana depois, quando veio em casa almoçar, Renan encontra a esposa tão brava que nem beijinho de cumprimento teve. Foi logo perguntando:
- Como foi mesmo que você perdeu a aliança, heim?
Naquele exato momento, Renan sentiu que seu casamento já era. Com grande esforço para manter a coerência, tenta repetir a história do aparelho supersensível, mas ao terminar, a esposa lhe exibe a dita cuja, na palma da mão, fazendo grande deboche. Isso mesmo, a aliança perdida estava ali, na sua frente, na mão da esposa. Mas como???
- Seu mentiroso sem-vergonha! E eu, feito uma tonta, ainda acreditei! Tá aqui sua aliança... Tava dentro do plástico da identidade. Certamente tu botou no bolso, pra enganar suas nêgas e depois achou que caiu... Mas na verdade ela ficou escondida na abertura do plástico da identidade. Sabe o que é isso? Castigo de Deus.
À medida que falava, a esposa se inflamava e Renan via a vaca ir pro brejo, ou melhor, o casamento ir pro brejo.
- Agora tá aqui ó... A tua aliança velha e a nova também... Faça bom proveito. Eu não vou usar mais porque tu não merece.
Respirando fundo, Renan tentou ser firme.
- Eu disse e sustento que só tirei para não prejudicar o levantamento técnico. Daí, se ela ficou presa na identidade ou se caiu do bolso da calça, não interessa. Para mim estava perdida. E você acredite se quiser.
Voltou pro trabalho sem almoçar. Dois anos depois, estavam oficialmente desquitados. Naquela época, primeiro se desquitava, pra depois vir o divórcio. Mas ele sempre lembra que aquele episódio foi definitivo pra a separação, porque a partir dali perdeu e confiança da mulher. Ela, que já era desconfiada, passou a ver chifre em cabeça de cavalo e o ambiente tornou-se cada vez mais insustentável. E ele continuou aprontando tantas, que nem discutiu quando ela disse que queria se separar.
Do episódio, ele forjou uma máxima, que ainda hoje usa, para aconselhar geólogos recém-casados: “Cuidado! A aliança que une é a mesma que separa.”
Taí uma advertência de quem sabe das coisas.

sexta-feira, maio 18, 2007

Morcego-Arraia

Acampamento do projeto Palmeirópolis, 1985. No barraco dos NM (nível médio), mais de dez técnicos. Juntos, essa cambada parecia um bando de crianças. Toda noite tinha azaração pra cima de alguém. Nunes era um dos “cristos” preferidos, por ele ser muito paciente e inocente. Essa foi bolada pelo Barbalho, que naquele dia tinha matado uma vaca, para abastecer o acampamento.
Ao descarnar o pobre animal, o Barbalho notou que a abatida tinha uma vagina avantajada, imensa mesmo, parecendo uma arraia, segundo suas próprias palavras. Imediatamente uma idéia sarcástica lhe veio à mente e, sem perda de tempo, passou a executá-la, convocando os préstimos e a conivência dos demais colegas de barraco, claro. Antes, bezuntou a "arraia" com o material retirado dos intestinos da finada, para tornar o plano ainda mais escatológico.
Conservou a peça rara na geladeira, devidamente preparada e quando foi no final da tarde, antes que a turma das picadas retornasse, já havia um esquema de roldana, discretamente montado sobre a cama do Nunes. Adivinhem o que havia na ponta da corda que circulava pela roldana? Isso mesmo... A dita cuja, retirada da vaca. A outra ponta ficava ao lado da cama do Barbalho, de modo que bastava soltá-la um pouco, para que ela descesse na vertical, exatamente sobre o travesseiro da cama do pobre do Nunes.
Na hora do jantar, visando a criar um clima, os técnicos coniventes comentam que um bando de morcegos entrara no barraco no final da tarde. Barbalho e Zé do Egito confirmam tudo, acrescentando que eles não se preocupassem porque foi feita uma “desmorcegação”, com creolina, logo em seguida, de modo que estava tudo “limpo”.
Enquanto o Nunes jantava, um emissário colocou quatro pilhas sob os pés da cama do coitado, dentro do plano previamente traçado. Por volta das 20h00, após o jogo de truco, a turma retornou ao barraco, para o merecido repouso. Menos de cinco minutos depois, ouviu-se o estrondo da cama do Nunes arriando e ele se lamentando, com aquela paciência que Deus lhe deu:
- Isso é coisa do Barbalho!
- Que é isso Nunes? Se tem alguém aqui que lhe protege sou eu. Agora que tu tá com um azar da porra hoje, isso tá. Com tanta cama aqui, neguinho escolheu logo a sua!
Todos concordaram que era um puta azar ser o escolhido.
Seguindo o costume do acampamento, às 21h00 o gerador a diesel foi desligado e as luzes se apagaram. Alguém comentou displicentemente:
- Será que os morcegos foram mesmo embora?
Expectativa geral.
Barbalho, com muita calma e maestria desliza a corda, bem devagarzinho, calculando, mentalmente, a altura. De repente, o Nunes dá um grito e um salto da cama, todo alvoroçado:
- Acende a vela! Acende a vela! Tem um morcego aqui! Passou bem rente do meu travesseiro. Puta que pariu! O bicho é imenso... E fede que só!
Todo mundo sacou as lanternas e uma vela foi acesa, no meio do riso geral, porém nada foi visto. É claro que ninguém iluminou o telhado sobre a cama da vítima. Por fim, concluíram que tinha sido impressão dele e se recolheram novamente, se deliciando com a brincadeira. Nunes não se conformava:
- Impressão o que, porra? Eu dei um tapa nele! O bicho é enorme, não tô falando?
Cinco minutos e novo estardalhaço:
- Tá aqui, gente, tá aqui de novo! O porra esbarrou no meu rosto... É gelado e fedorento... Que nojo! Dei outro tapa nele...
A turma ria a não se aguentar e o Nunes começou a desconfiar. E nada de localizarem o morcego! Depois da quarta ou quinta vez, ele ficou com a lanterna na mão e acendeu de repente, flagrando o vulto descendo sobre sua cama. Levou um susto maior ainda, pensando ser uma caranguejeira. Na confusão, Barbalho soltou o mecanismo de vez, para se livrar da prova do crime e aquela “arraia” gelada e fedorenta plantou bem no peito do apavorado Nunes. Ele fez um movimento tão violento sobre a cama, que o lastro de ripas finas se partiu e foi aquela zorra no quarto. Nego ria de doer a barriga!
Enfurecido, Nunes partiu pra cima do Barbalho, que se estrebuchava de rir, deitado. Resultado: mais uma cama se partiu... Daí a confusão se generalizou e foi preciso o Zeca Mato Grosso, chefe do projeto, ir lá exigir silêncio. No outro dia tinha quatro camas imprestáveis. Zeca estabeleceu que eles mesmos arcassem com as despesas dos reparos.
Nessa noite, o pobre do Nunes não dormiu, lavando o rosto com álcool, para tirar a inhaca da “arraia” que se impregnara em sua pele.
A partir daí, todos os dias em que se matava uma vaca, nêgo não dormia antes de esquadrinhar o teto do barraco, para ver se tinha “morcego-arraia” escondido.

terça-feira, maio 15, 2007

A execução

Circunstância fatal me trouxe aqui.
Fiz tudo pra evitar... Luta perdida.
A Deus entrego agora, meu destino.
Resignado e mudo, em apatia,
Percorro corredores, com emoção,
Frágil, conduzido em mãos alheias,
E adentro, por fim, a sala fria...

Num instante, dá o impulso de fugir
E cometer uma loucura, um desatino,
Mas contenho o pensamento em confusão
E me reprimo: - “És um homem! Que receias?”
No entanto, olhar em volta me convence:
- “Minha vida não depende mais de mim...”
A vida é um mistério... Uma ilusão.

Estranhos mascarados me contemplam,
Indiferentes e operosos e gentis,
Cada qual em seu labor, enfim.
-“Esquece a morte, homem! Ore! Pense!”
Finjo, procuro demonstrar coragem,
Mas sinto mil facadas, qual faquir.
-"Meu Deus! Será que morrer é assim?"
Os mascarados riem, quais guris.

A calma serena que aparento ter
Reprime o medo vergonhoso de morrer
E o esforço sobre-humano pra não ter vertigem.
Recebo ordens e obedeço, altivo,
Lembrando as orações que sei, da Virgem.
Mas quando o objeto penetrante
Lanceou, sem dó, a fresta da coluna,
Desabei... Senti chegada, enfim, a hora.
E me prostrei, tremendo e ofegante,
Na nuca, o peso de cruel borduna.

Amparado, me puseram em posição.
-“Tudo vai se consumar agora...”
A equipe executora aproximou...
Tomou-me um calafrio... O ar fugia...
Lembrei-me dos meus filhos, que sofriam.
Lembrei-me dos meus pais, em agonia
E vi o rosto, em oração, do meu amor.
Letargia foi, aos poucos, me tomando...
Até que a lâmina rasgou-me fundo a carne
E a cirurgia, finalmente começou.

Brasília, abril/2007

terça-feira, maio 08, 2007

Toque de craque

Logo no início de sua carreira profissional na CPRM, Gilsinho* sofreu um grave acidente de Toyota, ficou alguns dias em coma. Mas, como geólogo não se entrega assim, sem mais nem menos, sobreviveu, embora com pequena seqüela. O pobre ficou meio deslembrado, digamos assim, meio aéreo. Tipo não se lembrar onde estacionou o carro, por exemplo. Nos sinais de trânsito, ele às vezes demorava pra processar as cores e arrancava no vermelho tendo sofrido vários abalroamentos por isso. Mas desempenhava seu trabalho, com grande esforço pessoal e com a colaboração solidária dos colegas.
Foi designado para um projeto, no Mato Grosso, década de 70. Um projeto imenso, com vários geólogos e uma multidão de técnicos, motoristas e peões. No acampamento, um time de futebol foi logo formado e pouco tempo depois, como meio de entrosar com os locais, Zeca Mato Grosso, chefe do projeto e natural da região, desafiou o time da cidade para um jogo. Importante destacar que durante os treinos diários, Gilsinho nunca se interessou pelas peladas. Ficava só na geral, olhando pro céu, como se o jogo fosse lá nas nuvens. Aliás, diga-se de passagem, ele nunca tinha entrado num campo de futebol, em toda a sua vida.
Pois bem, chegado o grande dia, uma tremenda expectativa tomou conta do acampamento. Zeca comprara um jogo de uniforme completo, bola nova, e o clima era de pura competição. Desde cedo, torcida e olheiros começaram a circular pelo acampamento. Os rapazes para avaliar a qualidade do adversário e as moças para avaliar os atletas, individualmente. Gilsinho, vendo aquela movimentação toda, não é que se empolgou? Para espanto geral, procurou o Zeca e disse do alto de sua autoridade:
- Zeca, me dê uma camisa, que eu vou jogar também.
- O que?! Mas como Gilsinho, se você não treinou nenhum dia, não conhece o esquema tático, não está com condicionamento físico? Como?!
- Mas eu observei atentamente os treinos. Estou preparadíssimo.
E assim dizendo, dirigiu-se ao armário e perguntou:
- Qual camisa eu pego?
Zeca estava pasmo. Não podia acreditar no que via e ouvia. E agora? O time já não era essas coisas... Com o Gilsinho, então, era mesmo que jogar com um a menos. Mas como negar-lhe esse inocente prazer, ele geralmente tão arredio e ensimesmado... Não seria a oportunidade de ele se socializar? Quem sabe poderia até ser bom para sua porção do cérebro lesionada! Tudo isso passou na cabeça do Zeca, antes que ele determinasse, condoído:
- Pegue a 11. Jogue na ponta esquerda.
Ponta esquerda, todos sabem, é aquela posição onde se escalam os cabeças-de-bagres, os donos da bola e os filhos das autoridades, enfim.
O jogo seria às 15h00, mas às 11 da manhã, Gilsinho já estava todo vestido e enchuteirado, dando piques de 100 m rasos no acampamento, para surpresa geral.
Enfim, chega a hora, o prefeito dá o pontapé inicial, a torcida aplaude e a contenda começa pra valer. Com cinco minutos de jogo, a torcida já batizou Gilsinho de Galo Tonto. Ele corria desesperado, onde quer que a bola fosse, como se estivesse perseguindo um ladrão. Saía trombando com todo mundo, companheiro, adversário, juiz, a torcida, o escambau. Ele fixava a bola e... Sai da frente! Deu uma peitada tão grande no goleiro, que lhe custou uma advertência e a substituição do titular pelo reserva, ao time adversário. Aos 43 minutos do primeiro tempo, Galo Tonto cambaleava pelo campo, como se estivesse bêbado, com a língua de fora, de tanto rodar e, detalhe importante, sem pegar na bola uma única vez até aquela altura da partida.
De repente, parece que sua ficha finalmente caiu. Morto de cansado, chegou pro Zeca, com a dignidade dos craques feridos:
- Quero substituição!
- Puta que pariu, Gilsinho, agüenta mais um pouco porra! O primeiro tempo já vai terminar.
- Negativo, tô saindo.
- Peraí, peraí. Vamos fazer o seguinte, vá para o gol, que o Naiuran vem pra ponta esquerda.
Meio a contragosto, lá vai o Gilsinho para as barras. Tentando se aproveitar, o centroavante do time adversário dá um chute do meio do campo. 44 minutos, a bola vai para fora. A reposição é demorada, o tempo passa, alguém entrega a bola pro novo goal keeper. Gilsinho pega a bola, bota debaixo do braço e fica parado debaixo da trave, olhando pras nuvens, como era seu costume. 45 minutos, Correa, nosso zagueiro, corre desesperado ao encontro de Gilsinho gritando:
- Vamos porra, dá o toque aqui!
E apontava para o chão, indicando onde o goleiro deveria rolar a bola. Gilsinho, olhando para aquele desespero do Correa, com olhar interrogador, vem se aproximando, a bola sempre debaixo do braço. Juiz já consultando o cronômetro. Os outros 21 jogadores aguardando.
- Aqui, porra! Dá logo o toque aqui, berrava ele apontando pra baixo, mostrando seu próprio pé.
Gilsinho finalmente tinha chegado a cinqüenta centímetros do Correa, que continuava se esgoelando:
- Pelo amor de Deus, Gilsinho, dá o toque aqui!
Toque?? Gilsinho não conhecia a linguagem do futebol. Apenas olhava curioso, o Correa indicando o próprio pé...
Deu o estalo! Finalmente Gilsinho entendera o “toque aqui” que o Correa tanto pedia.
Calmamente, a bola presa debaixo dos braços e com a destreza que Deus lhe deu, ergue o pé direito e com o bico da chuteira dá três toques certeiros na canela do Correa:
- Toc, toc, toc! Tá bom assim, ou quer mais?
Priiiiiii! Fim do primeiro tempo. Correa ficou com a canela sangrando e não voltou pro jogo. Gilsinho aposentou a chuteira. Nunca mais quis jogar e nem nunca comentou o assunto. E o jogo, a quem interessar possa, terminou zero a zero.
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* Nome fictício, personagem real.

segunda-feira, maio 07, 2007

Golpe da toalha

Sempre circularam muitas brincadeiras sobre a volta dos geólogos e técnicos para casa, após aquelas campanhas de 20, até 30 dias no campo. Voltam tão secos, que quando os filhos vêm dar bênção, a resposta é:
- Deus te abençoe meu filho. Cadê sua mãe?
O Góia, por exemplo, era um topógrafo, com mais de 60 anos. Quando o Toyota ultrapassava a curva conhecida como “olá Goiânia”, ele batia na braguilha e dizia pra todos ouvirem:
- Acorda traste imprestável! Hora de trabalhar, sua preguiçosa! Não vá me fazer passar vexame, hem!
Outra vez, tínhamos chegado por volta das sete da noite, de Palmeirópolis. Quando foi lá pelas dez, o Tonico, outro topógrafo, me liga:
- Dr. Reginaldo, só o senhor pra me livrar da fria em que me colocaram. Desculpa eu tá ligando nessa hora, mas a coisa aqui em casa tá preta. A mulher quer me expulsar do apartamento de todo jeito.
Sem entender direito, pedi a ele pra se acalmar e contar o que houve. A história foi que seus colegas de barraco, no acampamento do projeto Palmeirópolis, simplesmente colocaram uma calcinha dentro da mala do pobre, na hora da viagem. Enquanto um distraía a vítima, outros faziam o serviço sujo. Quando a mulher do Tonico foi arrumar as roupas... Deu no que deu.
Pedi pra falar com ela ao telefone, mas ela se recusou.
- Tonico, não posso fazer nada.
Mas ele insistiu tanto, que lá fui eu tentar o impossível. E notem que eu também tinha chegado naquele dia e vinha do msmo jejum, se é que me entendem. Mas, um amigo é pra acudir outro... Lá fui eu, deixando a minha mulher, também, com a pulga atrás da orelha.
Rosa estava a verdadeira fera ferida. Arisca, não deixava ninguém falar. Dizia que o Tonico era um sem-vergonha, que não tinha respeito, essas coisas que diz toda mulher enciumada.
Já estava quase desistindo de argumentar, quando resolvi tentar a última cartada, já que ela não aceitava que tinha sido uma brincadeira de mau gosto. Pedi ao Tonico:
- Vá lá dentro e traga a calcinha!
Ele se espantou e eu insisti.
- Vamos! Vá buscar a calcinha!
- Rosa jogou fora.
Agora me dirigi à fera:
- Rosa, sei que você não jogou fora. Guardou por aí. Confie em mim e traga a calcinha aqui, agora.
Ela disse ao Tonico onde tinha escondido e o pobre foi lá e trouxe a arma do crime: uma calcinha, tamanho P, de malha barata, com borboletinhas vermelhas e a etiqueta de preço, do lado de dentro, preservada.
- Rosa, por favor, não me leve a mal, mas cheire essa calcinha.
- Que sem-vergonhice é essa? Ta pensando que eu sou o quê?
- Calma Rosa, confie em mim, veja uma coisa.
Aproximei-me dela, mostrei-lhe a etiqueta de preço e, com jeito, fi-la sentir o cheiro de calcinha nova, sem uso. Qualquer um distingue o cheiro de uma calcinha nova!
Ela ainda relutou um pouco, mas depois se acalmou, abriu umas cervejas e ainda fizemos uma farra. Tonico ficou me devendo essa.
Mas meu amigo Vergílio, que já repousa no andar de cima, foi quem me ensinou a melhor estratégia para a volta do campo: o golpe da toalha, que vou ensinar agora, de graça. Consiste no seguinte: ao entrar para o banheiro, para o banho da chegada, esqueça, de propósito, de levar a toalha. Lave os cabelos com xampu, barbeie-se, escove os dentes, corte as unhas, perfume-se, abra uma brechinha na porta:
- Benzinho, esqueci a toalha! Pode me trazer, por favor!
Quando o benzinho estender o braço, pra entregar, abra a porta e a puxe para dentro. Aí... O resto é por sua conta.
Último alerta. Mesmo se ela insistir que deixou toalha no banheiro pra você, diga que caiu debaixo do chuveiro e ficou molhada.
Até onde sei, esse golpe só foi aplicado por geólogos, mas nada impede que as geólogas o usem também. Nada de machismo!
Êh Vergilião! Que falta você faz!

domingo, maio 06, 2007

Quanto mais mexe, mais fede - (II)

Cacau, nome fictício, era um técnico de mineração muito responsável e compenetrado de seu trabalho. Raramente ia à cidade aos sábados, como todos os demais colegas, usufruir a folga semanal. Mas quando ia, fatalmente aprontava alguma, porque costumava exagerar na cervejinha.
Numa dessas noitadas memoráveis, lá pelas tantas, entram duas garotas no ambiente, daquelas de parar o trânsito. Pelo menos o trânsito de Palmeirópolis, pequena cidade goiana, de cerca de três mil habitantes, na década de oitenta. Uma das gatas, de passagem, lança um olhar 43 para o Cacau que, incontinenti, retribui e começa uma frenética troca de olhares e sinais, até que a garota levanta-se e se dirige, insinuante, para mesa do seu admirador.
Pego de surpresa, Cacau tira, rapidamente a aliança de casado do dedo e, sem tempo para guardá-la no bolso, sem ser notado, joga-a no copo de cerveja. Tudo tão rápido que só o Zé do Egito, ao seu lado, percebeu a manobra arriscada. A garota senta-se, o flerte progride e menos de dez minutos após, o casal de pombinhos rodopiava leve, solto e apaixonado, pelo salão. Daí pra frente, só os dois podem dizer o que houve, porque logo desapareceram, sem deixar rastros ou testemunhas.
O nosso latin lover só reapareceu, satisfeito da vida, por volta das três da manhã, para juntar-se à caravana de retorno ao acampamento.
Mas, no dia seguinte... É... No dia seguinte é que são elas. Ou, como se diz na minha terra, “os pecados de domingo, quem paga é segunda-feira”. Cacau acordou onze horas, chumbo na cabeça, jiló na boca... Uma ressaca daquelas homéricas. Mandou um epocler no fígado e foi tomar um banho. Somente aí, dá pela falta da aliança. Um choque elétrico paralisou-lhe o corpo.
- Puta que pariu! A aliança de casamento... Tô f... Minha mulher vai me matar!
Nesse momento, o instinto de sobrevivência humano entra em ação e ele se recorda, muito vagamente, do instante em que soltava a jóia preciosa no maldito copo de cerveja. Daí em diante, suas lembranças são confusas. Parece que o inconsciente procurava poupá-lo, livrando-o das lembranças pecaminosas.
Como último recurso, a cabeça já estourando, procura o Zé do Egito. Este, com ar sério, faz ar de quem é alvo de uma brincadeira:
- Ah Cacau! Vai me dizer que você não lembra... Pensa que eu sou bobo, rapaz?
- É verdade Zé. Não me lembro de nada. O que aconteceu depois que joguei a aliança no copo de cerveja?
O Zé, muito sacana:
- Eu sei que você está me gozando, mas pelo sim, pelo não, vou lhe refrescar a memória. Enquanto trocava carícias com sua namorada, você engoliu a aliança, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. Ainda tentei segurar o copo, mas não deu tempo. Mas é claro que você se lembra. Ainda comentou o assunto comigo depois!
- Mesmo, Zé? Puta merda! Não me lembro de nada, cara. E agora?
Era exatamente essa a pergunta que o Zé esperava:
- Olha, você sabe que o ouro é insolúvel... Ele passa direto do esôfago para o estômago, daí pelo intestino e é expelido nas fezes, normalmente.
- É mesmo? E será quanto tempo leva pra isso acontecer?
- Acho que uns quatro dias, mais ou menos. Cada organismo é diferente, você sabe. Mas, se quer meu conselho, acho que a partir de hoje, você já pode começar a verificar suas fezes. Quem sabe?
Cacau limpou uma área bem plana, nas proximidades do acampamento e toda tarde ia lá defecar e examinar, com toda a perícia, os excrementos, para não passar batido, porque tinha muitos porcos soltos por ali e se desse bobeira...
A cena era assim: ele terminava o serviço, colocava um lenço no nariz e com o outro braço, usando uma varinha, remexia o produto, centímetro a centímetro. Às vezes se agachava para ver algo mais de perto, mas logo se levantava, frustrado. A turma ficava na cerca do acampamento, dando força. Na verdade todas já sabiam que fora uma armação do Zé do Egito. Mas ninguém entregava.
- Tem nada não Cacau. Amanhã será outro dia.
- Um amigo meu, levou foi mais de dez dias. Às vezes a danada se engancha em alguma saliência do intestino grosso. Tem que fazer muita força!
- O maior perigo é se ela escapar pela alça da vesícula biliar e ficar presa lá dentro. Aí só cirurgia. Mas é uma coisa simples, nem se preocupe.
No terceiro dia, Cacau entrou numa depressão tão grande, que todos ficaram com pena. Já estava influenciando seu rendimento no trabalho.
Nesse dia, à noite, durante o jantar, o Zé chegou com aliança e jogou dentro do prato de comida do Cacau. Quando reconheceu a jóia querida, e se deu conta do acontecido, quis partir pra briga com o Zé:
- Eu te pego, fdp! Um dia você me paga!
O duro foi agüentar as brincadeiras depois. Mas ele aprendeu a lição. Desse dia em diante, nunca mais correu o risco de cometer, de novo a mesma besteira. Antes de ir pra cidade, tirava logo a aliança, por precaução. Afinal, seguro morreu de velho.

sexta-feira, maio 04, 2007

Quanto mais mexe, mais fede (I)

Jair Arão, nome fictício, foi um grande amigo que tive em Goiânia, quando ali trabalhei. Apesar de ele ser bem mais velho, criamos forte laço de amizade. Por coincidência, nos separamos das nossas primeiras esposas, na mesma época e esse fato nos uniu ainda mais, porque trocávamos muitas idéias, um ajudando o outro. Já foi pro andar de cima, nos deixando aqui nesse vale de lágrimas. Senti muito sua partida. Fiz parte do seu rol de amigos e isso muito me honra.
Adorava o mês de dezembro porque, segundo ele, nesse mês, pode-se beber todos os dias, sem precisar de pretexto. Ser dezembro, já era um bom motivo para beber, mesmo que numa segunda-feira de meu Deus. Essa era uma de suas máximas.
Tinha um olho de vidro, mas, pelo menos enquanto não bebia, enxergava melhor que qualquer cristão. Certa vez, foi vistoriar as obras do projeto Natividade, pesquisa de ouro que chefiei por alguns anos, no nordeste de Goiás. Se não me falha a memória, esse fato se deu em 1988. A sede do projeto era um acampamento que montamos a 15 km da cidade, bem no centro das áreas de pesquisa. Dois barracos-dormitórios, uma cozinha, escritório e um cubículo com vaso sanitário adaptado, sobre fossa manual, para as necessidades fecais.
Jair chegou num sábado à tarde. À noite, como de costume, fomos para a cidade, levar os peões para a folga semanal e tomar umas cervejas, que ninguém é de ferro. Eu voltei bem cedo, porque tinha trabalho de campo no domingo e o Jair, com um outro geólogo do projeto, por lá ficaram, dando uma esticada.
Por volta das quatro da matina, ainda noite fechada, desperto com o barulho da turma chegando. Jair, após exagerar nos tira-gostos, voltou com uma tremenda disenteria. Ficou uns cinco minutos procurando papel, mas não achou. Nesse ínterim, sua lanterna acabou as pilhas e ele ficou resmungando baixinho, no escuro. Realmente sua situação era de certa, digamos, urgência. Assim que o motorista e os técnicos se recolheram, ele veio tateando até meu catre e me perguntou por uma lanterna, pois precisava ir ao vaso sanitário. Eu dei-lhe uma vela e fósforos e, sem me levantar, expliquei que a casa do vaso era no fim do acampamento, a última construção. Como a noite era muito escura, arrematei:
- Não tem erro. Aonde você vir algo branco se destacando no escuro, é o vaso.
Além de não conhecer ainda a geografia do acampamento, ele tinha tomado umas e, nesses casos, a visão, já reduzida, se deteriorava ainda mais.
O coitado saiu com a velinha na mão, mas sua pressa no andar, provocou vento que logo a apagou, mas ele resolvera procurar assim mesmo, lembrando-se do “vulto branco” e sem tempo a perder com fósforos.
Dali a pouco, só escuto a correria no dormitório dos técnicos, as risadas e os reclamos:
- Puta que pariu! Quase foi em cima de mim!
- Quem foi o corno que fez uma merda dessa?
- Joga esse lençol fora!
- E agora, onde vamos dormir?
A algazarra foi tanta que me levantei.
Jair já tinha voltado e deitado, de roupa e tudo, em seu catre, onde roncava, placidamente.
Com a lanterna, pude ver o que acontecera. De fato, uma merda com M maiúsculo! A primeira coisa "branca" que ele divisou foi o lençol do catre de um dos técnicos, que, por sorte, estava em Goiânia. Chapado como estava, e já nas últimas, ele supôs que aquela coisa branca fosse o vaso. Entrou no barraco, arriou as calças, botou as mãos sobre o joelho e mandou ver sobre a cama alvinha do Dimas. Depois, já aliviado, se limpou, com um monte de estopa de carro e se recolheu. O barulho da “descarga” e o odor que se seguiu acordaram até quem tinha chegado meio mamado.
Imediatamente pegamos lençol e colchão, levamos para bem longe do acampamento e queimamos. Depois, desinfetamos o barraco com criolina e desarmamos o catre de madeira. Nisso, já era dia feito. Como o “cheiro” não passara de todo, resolvi começar minha jornada mais cedo. A turma que não tinha campo se mandou para cidade. Fazer o quê?
Ao acordar, por volta do meio-dia, Jair não se lembrou de nada. Nunca comentamos o assunto em sua presença e ele partiu pro andar de cima sem saber que um dia pisara na M com os dois pés. Afinal, quem já não fez isso algum dia, em algum lugar?

quarta-feira, maio 02, 2007

Milagre do talo de bananeira

Essa aconteceu comigo e foi também no acampamento do projeto Palmeirópolis, sobre o qual já comentei em outros causos. O ano era 1985, se não me falha minha falha memória. Era mês de novembro e havia visitas ilustres na casa, entre os quais um geólogo baiano, que levou um vidrinho de pimenta, vinda não sei de onde. Só sei que essa pimenta me será inesquecível, como se verá adiante.
Até essa data, eu já com 32 anos, sempre tinha convivido amistosamente com minhas hemorróidas. Aquela coisa inevitável, mas que se mantinha num absoluto controle, eu e elas respeitando nossos limites. Pimenta era um desses. Nunca fui de exagerar na dose, embora confesse minha queda irresistível por esse delicioso condimento, trazido para o Brasil, desde priscas eras, por portugueses e negros. Como saborear uma feijoada, uma rabada, uma moqueca, um mocotó, sem a danada? É uma heresia! Mas também não precisa exagerar! É apenas um tempero e não o prato principal.
Pois bem. Na data de que falo, creio que passei do limite ao experimentar a novidade trazida, com foros de especial, pelo meu amigo. Durante o jantar, um arroz tropeiro com carne de sol e caldo de feijão de entrada feito por Tião Cabelo, o cozinheiro do acampamento, devo ter derramado umas duas colheres de chá da dita cuja, curtida num molho de não sei o quê, mas que, com certeza, continha pólvora líquida, pó de urtiga e extrato de água-viva na fórmula. Vai arder assim na juta que partiu!
O fato é que no dia seguinte, amanheci com o que eu poderia traduzir como um “leve ardor anal”, se é que me entendem, ao qual não dei maior importância. Às sete horas já partíamos do acampamento. Como guia dos visitantes, passei oito horas dirigindo um jipe Toyota, por toda a área do projeto, naquele novembro ensolarado do Centro-Oeste brasileiro, a 36 graus de temperatura, elevados a 40 graus dentro do carro. À noite, durante o jantar, o leve ardor da manhã, já era um desconforto acentuado e dolorido. Foi difícil me acomodar nos bancos de tábua do refeitório. Discretamente, refuguei a pimenta, já pressentindo que tinha entrado numa roubada.
No outro dia de manhã, a bomba estourou. As hemorróidas, rompendo nossa convivência amistosa, transbordaram dos seus limites físicos e assumiram o estado que os médicos chamam de “couve-flor”. Um horror! Não tive a mínima condição de acompanhar a segunda jornada dos visitantes. Levaram-me ao médico do posto de saúde da cidade de Palmeirópolis. Sem maiores recursos, para um tratamento efetivo, o Doutor me deu um antiinflamatório, mas a receita de fato foi: IR URGENTE PARA GOIÂNIA.
Minhas opções para esse deslocamento de 500 km eram, ou ir de ônibus, naquele mesmo dia, à noite, ou num Toyota da CPRM, o mais rápido possível. Optei pela segunda hipótese e programei a viagem para o dia seguinte, de madrugada, na ilusão de que, nesse ínterim, o antiinflamatório fizesse efeito e eu nem precisasse ir. Ledo engano. A “couve-flor” se robustecia cada vez mais, com o passar das horas e eu passei o resto dia recolhido, num desconforto indescritível. Nem de pé, nem sentado, nem deitado, de todo jeito doía muito. Somando-se o calor provocado, mais os 36 graus reais do dia de sol a pino, imagino que o inferno não deva ser muito diferente.
Aqui vou abrir um parêntesis, para enfatizar o que significa o ardor provocado pelas hemorróidas inflamadas. Tenho um irmão médico, que me narrou a seguinte descrição de um paciente, certa vez, sobre essa sensação. O paciente teria assim se expressado:
- Olha Doutor, pra resumir a história, o que sinto é como se estivesse sentado em cima de um braseiro e tivesse um filho da puta, com um fole, assoprando por baixo.
Deu pra sentir o drama?
Fechado o parêntesis, retomemos o fio da história.
Naquela época, a sondagem era uma das principais atividades do projeto e como tínhamos inúmeras anomalias para serem checadas, operávamos em turnos ininterruptos de 24 horas. Por isso, havia muitos sondadores no acampamento, para o revezamento nas frentes de perfuração. A turma da noite acordava na hora do almoço e passava a tarde descansando no acampamento. Nesse dia, um sondador de Poços de Caldas, quando soube do meu caso, foi ter comigo no meu barraco.
Muito humilde e educado, pediu desculpas por incomodar meu repouso, mas disse que não poderia se furtar a me recomendar um tratamento para hemorróidas, infalível, que se usa muito na sua terra e que, inclusive, já teria curado muitas pessoas suas conhecidas. O remédio seria simplesmente tiro e queda. Eu, esperançoso, me animei para ouvir logo aquela receita mágica e ele assim resumiu:
- Doutor, sabe aquelas bananeiras que têm ali na beira do “córgo” da casa do Cunha? Pois é... Eu passo a mão num facão bem amolado e nós vamos lá. Pego o tronco mais grosso que tiver, e toro ele de uma facãozada só, bem no talo, lá em baixo. Fica assim uma superfície bem lisinha, feito um banquinho de tora de “árve”. O Senhor tá me entendendo?
Eu tava entendendo sim e começando a imaginar que essa história não ia terminar bem. Mas, deixemos que ele prossiga.
- Então Doutor. Ali naquela superfície onde o facão torou, vai brotar um sumuzinho escuro, uma aguinha meio viscosa danada de medicinal, o Senhor sabia?
Não. Não sabia. Nunca ouvi falar dessa aguinha. Seria pra beber!?
- Aí Doutor, quando acumular bastante líquido e formar aquela pasta escura na superfície do talo cortado, o senhor senta em cima dele e esfrega as partes inflamadas no líquido e deixa encharcar bem. Pronto. É mesmo que tirar com a mão! Adeus hemorróidas!
Fiquei pasmo. Depois de uma receita dessas, o que é que eu poderia dizer? Confesso que levei uns três minutos refletindo e finamente respondi:
-Olha, Seu Fulano (não me lembro mais o nome do meu conselheiro), em primeiro lugar quero agradecer seu interesse pela minha saúde e dizer que não duvido, de jeito nenhum, da eficácia do seu tratamento. Acredito nos casos de cura que o Senhor me relatou e que o sumo do talo de bananeira deve, de fato, operar prodígios sobre as hemorróidas inflamadas. Prometo que vou pensar no assunto.
Ele me olhava, meio desconfiado, esfregando um boné surrado entre as mãos, como se estivesse nervoso.
- Entretanto, prossegui, o Senhor não me leve a mal, mas e se alguém me vir sentado sobre um talo de bananeira, com as calças arriadas, me esfregando nele, em posição suspeita, com o Senhor em pé, do meu lado, segurando um facão? Esse alguém vai acreditar que eu estava apenas “encharcando a couve-flor”? Como é que as pessoas vão entender que se trata de um simples tratamento para hemorróidas? Hem? E minha reputação, como é que fica?
Conversamos mais um pouco, sobre assuntos banais e ele saiu, todo cerimonioso, mas um pouco desapontado, eu percebi. Já na porta, virou-se, como que tentando um derradeiro apelo:
- Ah Doutor! Ia me esquecendo. O sumo da bananeira é muito bom também pra calvície. Se esfregar um pouco na careca, com um mês, nasce cabelo que é uma beleza! Lá em Poços de Caldas tem vários casos comprovados, inclusive com muitos amigos meus.
Quase que o mandei tomar no meio das duas carecas, mas me contive e ele finalmente saiu. E eu fiquei pensando, curioso. Se o método de passar o sumo for o mesmo que ele me receitou, o careca teria de plantar bananeira no talo da bananeira? Confesso que trago essa dúvida comigo até hoje porque não me animei a tirá-la com o dono da receita.
Na madrugada seguinte viajei para Goiânia, num jipe Toyota, deitado de bruços sobre um “colchão” de amostras de solo, por 500 km Quatro dias depois, sofri a primeira, das três cirurgias que tive de fazer, por conta do mesmo problema. Mas aí já é uma outra história.