O ano? Acho que era 1983. Sei que o Projeto Palmeirópolis estava a pleno vapor. Nunca havia menos de 60 pessoas no acampamento, entre geólogos, engenheiros, geofísicos, técnicos, sondadores, motoristas, cozinheiros, peões para todos os gostos, enfim, uma fauna completa. Ali, naqueles rincões goianos, tínhamos nossas próprias normas de convivência e sobrevivência. Uma delas dizia o seguinte:
"Todo peão novo, tem de receber um apelido logo no dia da chegada e esse apelido será seu nome oficial no Acampamento. Revoguem-se as disposições em contrário".
Ninguém sabe quem editou essa norma, nem quando ela começou a vigorar. Talvez por isso mesmo, por não ter dono, era cumprida rigorosamente. Só que eu me lembre vagamente, tínhamos Brucutu, Tourão, Cabelo, Cara Azeda (cozinheiros de mão cheia), Canela, Pezão, Xanfra, Gogó de Ouro, Tripa, Carranca, Marreco, Pé de Cabra, Lapão, Boguinha, Badega e assim por diante. Ninguém escapava. Chegou, era batizado e não adiantava achar ruim. Aliás, nesses casos é que o nome pegava mesmo.
Sábado, 17:30 hs. A peãozada estava toda reunida, já de banho tomado, nos bancos do pátio central do Acampamento, contando lorota e fazendo brincadeiras, uns com os outros, aguardando o carro que os levaria para a cidade, para a folga semanal. Era uma algazarra só.
Na verdade, o carro já tinha ido levar um grupo e estava chagando para conduzir a segunda e última leva desse dia. No regresso, Zé do Egito, motorista e administrador do Acampamento, trouxe um peão que acabara de contratar lá na cidade. No caminho, foi logo lhe avisando da norma do apelido, de modo a preparar-lhe o espírito. Mas o Zé notou o semblante de preocupação do novato ante aquela perspectiva. Inclusive ouviu bem, quando ele balbuciou baixinho, num resmungo:
- Eu não gosto desse negócio de apelido!
Muito sacana, o Zé parou a picape exatamente no meio da peãozada, observando a contrariedade crescente do noviço. Com o braço esquerdo acima da porta, apontava para o lado, dando dica aos peões da chegado do novo colega.
A turma logo encostou, todos curiosos para ver a figura. O ritual era esse: o novato descia do carro e a turma ficava olhando de cima abaixo, procurando alguma feição ou característica que sugerisse a alcunha. Até que alguém sapecava:
- Fifó!
- Fifó? Por que Fifó? Perguntavam todos ao mesmo tempo.
- Olha o cocuruto da cabeça dele! Não parece um pavio de fifó?
Pronto. Todos caiam na risada e a partir dali, ninguém se lembrava de um tal de Delzuíno Aristides Calixto. Era Fifó para todo o século e seculorum, Amém.
Mas voltemos ao nosso herói, recém-chegado da cidade. Como já disse, todos rodearam o carro para avaliar a nova aquisição. Nisso, o peão abre a porta do Toyota, muito sério e bruscamente, fazendo a turma recuar, espantada. Alguns tiveram vontade de rir, por causa da estatura da vítima, do tamanho de uma cachorra, como se diz para indicar que se trata de um baixotinho. Mas ninguém riu, devido ao ar grave com que o baixinho encarou a turma.
Bem lentamente, mas com autoridade, ele inverteu a situação. Ao invés de ser examinado, ele passou a examinar a turma, como um general passando a tropa em revista. Encarou um por um, andando de uma extremidade à outra do grupo perfilado, olhar altivo, cabeça erguida e tronco para frente, numa atitude que impôs imediato temor e respeito. Isso nunca acontecera antes. O apelido emergira daquela figura de imediato, quase como um selo na testa do novato, mas ninguém ousava sentenciar, dada a atitude desafiadora da vítima. Algo ia acontecer, mas ninguém se atinava com o que fosse. Decorreram-se cerca de dois longos minutos de puro suspense.
De repente, satisfeito com a revista, o baixote pára, bem de frente para a turba espantada e inicia o seguinte e inusitado discurso:
- Bom, no caminho o Seu Zé me avisou que aqui vocês têm a mania de botar apelido em todo peão que chega. Eu quero dizer logo que não admito apelido porque já tenho nome, gosto muito dele e não preciso de nome novo.
Suspense geral. Qual era a do novato baixinho?
- Portanto, para que não fique nenhuma dúvida, quero reafirmar que já tenho nome e quero ser chamado apenas por ele. Nada de apelido! Meu nome é, sempre foi e sempre será...
- Qual? Qual? Qual? Pensaram todos, mas ninguém perguntou. O protagonista saboreou a curiosidade nos olhos e nas bocas interrogativas, qual um mestre do suspense. Por fim, desfez o mistério.
- Peito de Pomba!
E mais não disse e mais não foi preciso. Ninguém teve coragem, de sugerir qualquer apelido para o Senhor Agenor Vitoriano do Espírito Santo. Que, aliás, só ficou no Acampamento por duas semanas. Sua saída, assim como a chegada, foi um acontecimento assaz curioso, que um dia relatarei. Mas aí já é uma outra história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário