domingo, agosto 19, 2007

Zé Galã não deu no couro

Quando veio trabalhar comigo, em um projeto no Maranhão, Zé Galã* já beirava aí os sessenta anos. Gorducho, embora forte, os cabelos já bem raros, barriga assaz proeminente, enfim, era o que sobrara do galã que dizem ter sido outrora. Mas o cabra não se entregava assim, sem mais nem menos. Embora o apetite já não fosse mais o mesmo, o velho garanhão gostava de apreciar um “prato saboroso”. Isso ele gostava!
Estávamos numa região de garimpo. Na cidade em que alugamos uma casa, havia um colégio público, com uma turma noturna de adultos. A bem da verdade, éramos vizinhos do colégio, que adotava o tradicional uniforme feminino de saia azul plissada acima do joelho e camisa branca. Zé Galã se deliciava vendo os brotinhos desfilarem, nos intervalos e no fim das aulas, sempre com aquele indefectível comentário:
- Ah meu tempo!
Mas, na verdade, as garotas mais bonitas eram, todas elas, casos dos garimpeiros. Quando soava a sirene da última aula, começavam a encostar as cabines duplas incrementadas, colhendo as estudantes e desaparecendo pelas estradas e matagais dos arredores, motéis naturais do lugar.
Numa noite de sexta-feira, causou-nos estranheza ver Zé Galã todo arrumado, impaciente, limpando seu Toyota por dentro, tirando a poeira dos bancos, perfumando com bom-ar e olhando no relógio a cada dez minutos. Vimos também quando ele jogou um lençol no banco traseiro. Por fim, de tanto perguntarmos, ele entregou o ouro:
- Colega! Hoje vou sair com uma colegial! Quinze aninhos, hehehe!
Ainda brinquei com ele:
- Cuidado Zé, sair com menor é crime inafiançável, dá cadeia, sabia?
Ele deu de ombros e disse que eu estava era com inveja, dando aquele risinho maroto.
Uns vinte minutos do fim das aulas, vi quando ele tomou uma branquinha e uma cerveja, em seu Pacheco e encostou o jipe num canto mais escuro da rua, certamente seguindo alguma combinação prévia. Ficamos todos atentos para ver quem era a “colegial” do Galã. Como quem não quer nada, nos encostamos no muro, a menos de dez metros do Toyota e não adiantou os sinais do Zé, para nos afastarmos.
Dali a pouco, eis que a colegial se aproxima rapidamente e entra no carro, depois de passar bem rente onde estávamos, para desespero do Dom Juan. Cá pra nós, o colega devia estar muito a perigo, porque a garota não era o tipo que fazia jus a sua fama. Primeiro, os quinze aninhos, deveriam ser de repetência no colégio, porque ela devia ter, com certeza, em torno de quarenta, embora, a saia muito curta pudesse indicar menos idade. Segundo, era muito feia a coitada, além de gorduchinha, como ele. Enfim, não era nenhuma brastemp, vocês entendem? Afinal, as pepitas de verdade já estavam todas nas bateias dos garimpeiros. Bom, mas o fato é que em segundos os pombinhos desapareceram, no rumo do igarapé do Búfalo, segundo deduzimos, ali nos arredores da cidade, no traçado da estrada velha do garimpo, onde costumávamos passar, em nossa faina diária. De fato, ali havia uma pequena praia, de areia bem branquinha, que deve ter atiçado o romantismo do apaixonado colega.
O Zé não imaginava, contudo, que não era ele o único a demandar o aconchegante recanto, naquela noite quentíssima dos trópicos maranhenses. Uma revoada imensa de famintas e vorazes carapanãs já tomava conta do local, quando ali chegou o assanhado casal. Carapanã, para quem não sabe, é como os nortistas chamam nossa conhecidíssima muriçoca.
Pois bem, assim o casal de amantes se aconchegou no lençol estendido sobre a alva areia, e os corpos, digamos, apetitosos, começaram a ser expostos, as carapanãs atacaram, como se fora um furioso exército de kamikazes, dispostos a matar e morrer. E os pombinhos, inicialmente concentrados nas carícias, cada vez mais ousadas, passaram a sentir as ferroadas agudas das atacantes e começou o festival de tapas... Segundo o próprio Zé Galã, quando as carapanãs cravavam o punhal nas costas ou no bumbum, não tinha como não interromper o interlúdio, para acochar um tapa, na tentativa de expulsar o covarde agressor. A concentração ia pras cucuias. Mas, persistente, o casal continuou. Quando sua amada soltou um gemido mais agudo, o Zé quis botar fogo no clima e sapecou no seu ouvido:
- Tá gostando, meu bem?
Zé brochou de vez com a inesperada resposta:
- Gostando uma porra! Levei uma picada no pescoço que chega tá saindo sangue. Você não vai reagir não, é? O coitado tava sem reação, entendem?
Nesse exato momento, ao tentar matar um inseto que lhe pousara no nariz, Zé Galã mandou os óculos pro chão e saiu engatinhando, desesperado para encontrar, já que, sem essa ferramenta, ele era um pouco mais que cego. Com a ajuda da fugaz amada, os óculos foram encontrados, 15 minutos depois, soterrados e com o aro empenado.
Aí o valente garanhão tomou uma corajosa decisão, já que era imperativo manter a honra de pé, sem trocadilho. Seu lema era: desistir, jamais!
- Vamos lá em casa, que eu vou dar uma lição nessas carapanãs.
A essa altura, a colegial já estava se vestindo, vencida pela ferocidade do bando alado.
Já estávamos todos em nossas redes, quando o Galã entra, sorrateiramente no quarto e, de lanterna em punho, fuça as prateleiras, derrubando material e fazendo um barulhão danado. Quando lhe perguntei o que queria, ele me responde com outra pergunta:
- Regi, você sabe onde está aquele autanzinho que trouxemos de Recife?
- Autan, uma horas dessas!! Tá ficando louco Zé?
Autan era um repelente que usávamos durante o dia, pra nos proteger dos mosquitos da malária.
Meio sem jeito ele me falou por alto o que acontecera, mas se mostrou disposto a seguir em frente. Dei-lhe um frasco que trazia na minha mochila e ele saiu rapidamente, retornando ao mesmo local: a prainha do igarapé do Búfalo. Em lá chegando, e sem perda de tempo, lambuzou-se e à sua colegial, de repelente, proclamando:
- Agora quero ver essas danadinhas nos importunarem!
E passaram ao interlúdio interrompido. Ao ar livre, sob as bênçãos da mãe-natureza e sem as ferroadas desestimulantes. Zé Galã recobrara o vigor e quando já ia consumar seu desejo, naquela volúpia de mão na mão, mão naquilo e aquilo na mão, a colegial deu um grito agudo e levantou-se desesperada, com as duas mãos entre as pernas e correu a se lavar nas águas límpidas do igarapé. É que o repelente ácido, ao atingir suas partes mais íntimas, provocou dolorosa reação, deixando atônito o pobre Galã, sem saber o que fazer. Depois de uns 15 minutos lavando, a dor diminuiu, mas deixou um tremendo inchaço e uma irritação local insuportável. E, pra piorar a situação, a colegial começou a espirrar... Alergia, na certa.
Mas, a essa altura, Zé Galã estava em brasa e não ia desistir, depois de tanto sacrifício, mesmo sob os protestos da alérgica amada. A fim de contagiar a parceira, deu de fazer carícias ali mesmo, na água, em pé, corpos nus resplandecendo na água. Quando, finalmente, parecia que as coisas se encaminhavam para o gran finale, a colegial deu um espirro na cara do amante impetuoso, jogando-lhe uma bola de catarro no olho, que foi escorregando por toda a face, lambuzando-lhe o rosto daquela nojeira gosmenta e mal-cheirosa.
Num ímpeto, Zé Galã se atirou na água, para se lavar daquela imundície e ao fazê-lo, esqueceu-se que o leito era rasinho, pouco mais de dois palmos. Pagou caro pelo descuido, enfiando a cara nos pedregulhos do fundo do leito, ficando com várias escoriações no rosto e o nariz sangrando. A garota correu pro carro e pediu pelo amor de Deus para lhe levar ao posto de saúde.
Sem alternativas, Zé Galã levou sua colegial para receber atendimento médico e a deixou em casa, já quase ao amanhecer.
Quando vimos seu estado no dia seguinte, ficamos estarrecidos:
- Mas afinal Zé, você teve uma noite de amor, ou participou de uma luta livre? Essa colegial acabou contigo cara! Que fera!
Ele me olhou uns segundos, um olhar triste, distante, coçou a ferida do nariz e me respondeu, quase pensando alto:
- É Regi... Na verdade, foi uma verdadeira luta.
Desconversou e pediu para mudarmos de assunto. Ficamos todos intrigados e preocupados. Quis levar-lhe ao médico, mas ele se recusou. Só muito tempo depois é que me contou, sob juramento de sigilo, o que acabo de compartilhar com vocês, com a condição de que guardem esse segredo apenas entre nós.
O interessante é que na segunda-feira de manhã, ao distribuirmos as equipes e os materiais para o dia de trabalho no campo, ao lhe perguntar se queria Autan, o Zé assustou-nos com uma resposta inesperada:
- Regi, me prometa uma coisa. Enquanto estivermos trabalhando juntos, nem que seja por dez anos, nunca mais, mas nunca mais mesmo, me fale essa palavra, nem ninguém use esse veneno perto de mim. Prefiro mil vezes, pegar malária, leischmaniose, o diabo, menos usar essa droga.
Durante a semana seguinte não vimos a colegial do Zé na escola. Não sei o que houve. Sei que ele não tocou mais no assunto e quando brincávamos sobre pegar uma colegial, ele sai-se com essa:
- Esse negócio de idade é besteira Regi. Tem balzaca por aí muito mais interessante.
É... Nesse ponto, Zé Galã tem toda razão.
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* Nome fictício

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