quinta-feira, dezembro 20, 2007

Dez metros fatais

Era um fim de noitada naquela cidade do interior paraense. Caminhava pela rua de terra vermelha, ainda atordoado de tanta bebida e farra. A noite tinha sido boa, mas já era dia claro. Dirigia-me, sonolento, mas sóbrio, ao jipe que me aguardava, adiante, para retornar ao acampamento.
De repente, notei um homem, sentado na guia da calçada, com o rosto entre as mãos. A princípio, julguei tratar-se de mais um bêbado, mas, ao me aproximar, percebi que ele chorava convulsivamente, em soluços entrecortados.
Meio constrangido, passei por ele, mas um súbito sentimento de compaixão me tomou e eu voltei, devagar, até tocar levemente seus ombros, já que ele não levantava a cabeça.
- Desculpe amigo! Mas posso fazer alguma coisa? Por que chora tanto?
Um rosto de seus 40 anos olhou-me, com surpresa, examinando-me como se ouvisse e não me visse. Um olhar de pura dor. Barba espessa, meio grisalha, vincos de sofrimento visíveis nas feições precocemente envelhecidas, lábios comprimidos, no esforço de conter o pranto. Quase me agradecendo, falou com infinita amargura:
- Ninguém pode me ajudar, amigo É muito grande a aminha dor!
Havia tanta dignidade em sua recusa, que restou no ar apenas o eco de uma decisão definitiva, inquestionável. Ainda assim, insisti:
- Precisa de algum dinheiro? Sente dor? Gostaria de tomar um café?
Acho que não foram exatamente essas minhas palavras, mas foi certamente o que eu gostaria de ter perguntado.
Novamente ele me olhou, por breves segundos e sua expressão de dor pôs um ponto final em minha impertinência. Sem outro comentário, ele apenas gemeu:
- Ai! É muito grande a minha dor!
E retomou seu lamento compungido.
Absolutamente desconcertado, afastei-me, em respeito àquele choro digno, que não queria outra coisa, que não fluir, como água na cachoeira.
Vinte metros adiante, meu carro me aguardava, com dois companheiros dormindo a bordo. Eu era o último retardatário. Mas, enquanto caminhava, com as mãos nos bolsos, a imagem e o som da cena de há pouco me afligiam, como espinho no pé, incomodando, exigindo atitude. Minha compaixão desdobrou-se em motim de sentimentos. Não se pode deixar um homem assim, aos prantos, no meio da rua, à mercê de tamanha dor. Em segundos, me vieram à mente os temores daquela noite nas dependências do DOI-CODI... O quanto eu não teria gostado se recebesse a solidariedade de alguém!
Instintivamente me voltei. Havia uma resolução irremovível em mim. Porém, para meu espanto, embora eu tivesse andado meros dez metros, a calçada estava vazia. O homem não estava mais lá, nem em qualquer outro ponto à vista.
Confesso que aquilo me atordoou ainda mais. Onde diabos se metera? Procurei nas ruas vizinhas, nos botecos ainda abertos, mas... Nada. Simplesmente ele desaparecera.
Já no carro, contei o ocorrido aos companheiros, mas eles juraram não ter visto ninguém ali.
Foi tão chocante o impacto daquele encontro-fantasma, que nem consegui dormir, ao chegar ao acampamento. A dor daquele rosto barbudo não me saia da visão, nem seus soluços, nem sua descrença.
Mas, existira mesmo tal homem ou teria sido imaginação de minha mente ressacada? Poderia ter sido apenas uma ilusão, aquela cena inesquecível? Efeito inconsciente de uma noite de esbórnia?
Anos depois, em conversa com psicólogo amigo, fiquei sabendo que sim, que, em certas circunstâncias, a mente pode criar cenas que nos iludem, principalmente sob o efeito de drogas, o que não foi o caso, juro.
Por mim, não acredito nisso e lhes afirmo que o tal homem era de carne e osso e se o visse ainda hoje, o reconheceria.
O fato, contudo, é que, por mais que tenha indagado, nunca obtive uma única pista do tal chorão. Sei que a tela do tempo embaça a visão, mas não os sentidos da alma. A dor do rosto de um homem rude jamais se esquece.
Mas nada disso vem mais ao caso. Ter existido ou não, não importa mais. Importa é que aprendi uma lição. Quando tiver oportunidade de ser solidário, não leve dez metros para decidir. Dez metros podem ser fatais. Podem causar um vazio, uma incerteza que te acompanharão pelo resto da vida. Dez metros podem te deixar uma interrogação na alma, como a cicatriz de uma facada na barriga. Irremovível.
Como já disse, para mim tornou-se irrelevante a dúvida das pessoas, sobre a existência do meu amigo chorão. O que me mata hoje é não poder responder à seguinte pergunta:
- O que aconteceria se eu apenas tivesse me sentado a seu lado e permanecido ali até poder fazer algo? Estaria aqui contando esse causo?
O que me aflige são as minhas dúvidas e não as dos outros.

domingo, dezembro 09, 2007

Homem-anta

O acampamento ficava na beira de um córrego com densa mata ciliar, no coração da Bodoquena, Mato Grosso, ano da graça de 1975, se não me falham os neurônios. Quase 17h00, as equipes de campo já tinham regressado, menos uma, a do Gilsinho*.
De repente, o silêncio do entardecer bucólico do cerrado foi quebrado. O barulho indicava que um bicho de grande porte avançava pelo córrego, aproximando-se do acampamento. A um sinal do chefe do projeto, dois peões empunharam as espingardas calibre 38 e se postaram estrategicamente na embocadura da última curva do leito, onde o bicho se faria visível à mira. Pelo barulho descuidado e apressado, ninguém duvidava de que era uma anta, provavelmente em perseguição ao filhote desgarrado. De qualquer forma, era absolutamente estranha a situação. Os animais não costumam dar bandeira assim. Mas enfim...
Dez minutos depois, o barulho tornou-se tão intenso, que todos correram para assistir ao inevitável abate, já que, além da ameaça ao acampamento, uma anta proveria carne de excelente qualidade para muitos dias.
Quando a marola do bicho atingiu o barranco dos atiradores, estes apuraram as vistas e só o esperavam apontar a cabeça na curva para a execução. Seriam dois tiros convergentes e fatais. A anta não teria a menor chance.
Respiração suspensa... Dedos em riste nos gatilhos... Mira fixa na curva... É agora! E então... Gilsinho surge feito uma anta na curva do córrego, caindo sobre as pedras e quebrando galhos, provocando uma barulheira dos demônios. Por pouco, muito pouco mesmo, os atiradores não abriram fogo. Segundo eles, o que salvou mesmo o Gilsinho foi a camisa vermelha.
O Juca*, chefe do projeto, bocão como ele só, foi ao encontro do homem-anta:
- Gilsinho! Seu filho de uma anta! Tu não tem juízo não, porra? Quer levar um tiro, é? Que diabo aconteceu? Por que você veio por dentro do córrego? Cadê seu carro e o motorista?
Gilsinho, com a cara mais simplória do mundo, sem nenhuma ruga de preocupação, revelou que o Toyota em que ele e o motorista voltavam ao acampamento ficara enganchada num tôco, na passagem de uma cancela, a cerca de cinco quilômetros dali, pela estrada. Então, para ganhar tempo, viera pelo vale, cortando pelo menos dois quilômetros. Juca não entendeu direito:
- Peraí Gilsinho. Como é que é a história? O jipe enganchou num tôco? Como assim?!
- É Juca. Não tem aquele tôco que fica no chão, entre os mourões, para segurar a cancela? Então... Esse tôco era muito alto e pegou no diferencial do Toyota. O bicho travou de tal maneira que não vai nem pra frente, nem pra trás. Nem reduzindo a primeira o carro venceu o tôco! Tá lá entalado. Falei pro Miranda* (o motorista) não fazer nada e aguardar socorro.
Juca passava as mãos pelos cabelos, sem acreditar no que ouvira, pois, conhecendo o Gilsinho, já deduzira o ocorrido. Mesmo assim perguntou.
- Veja se eu entendi bem. O carro ficou entalado no tôco e não vai nem pra frente nem pra trás. É isso mesmo?
- Hã hã...
- Só mais uma coisinha, seu carro tem macaco?
- Hã hã...
- E vocês não tentaram usar o macaco não? Pra suspender o carro....
Aí, foi o Gilsinho que fez a maior cara de surpresa do mundo:
- Ué! Mas eu não sabia que podia usar o macaco pra isso... Pensava que macaco só servia pra trocar pneu! O motorista ainda sugeriu, mas eu não deixei...
Acredite se quiser.
Juca ia dar um esculacho, mas daí se lembrou que diante dele estava uma pessoa que teve de superar um grave acidente de carro, no passado, que lhe lesou parte do cérebro. Resolveu não discutir e despachou um motorista pra resgatar o Toyota do Gilsinho e seu motorista que, pelo visto, devia ter alguma lesão cerebral também. Disse simplesmente:
- Tá bom Gilsinho. Vai tomar seu banho, que nós vamos resolver essa bronca. E vê se passa mertiolate nesses arranhões!
Quando o Gilsinho se afastou, a turma caiu na risada e a vida voltou ao normal no acampamento, sob os últimos pios das siriemas e das juritis, antes da noite cair de vez, naquelas vastidões matogrossenses.

* Nomes fictícios

quinta-feira, novembro 22, 2007

Receita de Pai André

E então fui ao Preto Velho, Pai André,
Pra lhe falar da minha dor... Essa paixão
Que me adoece. Nem me mata e nem se cura,
Meu contra-senso: minha vida e meu caixão.
E ali, no breu do Pajeú, em pleno vale,
Á luz da lua e ao pio do caburé,
Sangrei o peito do veneno e da tortura,
Mas o velho me atalhou; - Nada me fale,
Tua dor é incurável... É uma mulher

- Tiro encosto, afasto mau-olhado,
Desavesso home afeminado,
Encontro coisa perdida,
Fecho a mais funda ferida,
Curo maleita, malária, caxumba,
Tifo, sezão... Desfaço macumba.
Rezo febre, catapora e sarampo.
Rastreio gado sumido no campo.
Tenho ervas pra dor de cabeça,
Mesinhas pra tudo que o corpo padeça.
Saro a picada da cobra mais mortal,
Seja cascavel, urutu, cobra coral...

- Mas, meu filho, vou lhe ser bem franco:
Te acalma, te assenta aqui nesse banco.
Pra esse mal que se aninha em seu peito,
Pra esse mal... O velho não dá jeito.
Até hoje procuro e não acho
Uma reza, uma erva, um despacho,
Uma porção, talismã ou lambedor,
Que extirpe e cicatrize esse tipo de dor,
Mas tu, meu filho, só tu podes te curar.
- Mas como, pai André!? Pode falar!

-Não há, em todo o recurso disponível,
Algo que cure o amor impossível,
Mas, há um jeito, se quiser ter paz,
Pra que não morras cedo, pois és tão rapaz,
Porém, é muito mais difícil que parece:
Esquece essa mulher, meu filho, esquece!
Fica a ferida, mas a dor estanca.
Arranca essa mulher do peito, filho, arranca!

- Como essas marcas perenes de caliça,
O amor é uma marca na alma, irremovível,
Ferida latente, que adormece apenas.
Mas quando um sonho, uma lembrança o atiça,
Acorda em fúria, quais loucas sirenas,
A estourar o peito, num sufoco horrível!
Te devorando... Abutre na carniça.

Então, seguindo velho instinto,
Me embrenhei na mata mais sombria,
Para espanto da cotia e da graúna,
O peito a explodir de dor, não minto.
Junto ao tronco da mais grossa baraúna,
Enfim, quando já o sol se abria,
Empunhei meu machado mais distinto

Em secreto transe, ali orei,
Implorando a Deus força e vontade
Para o fim descomunal que me propus:
Seja o tronco que escolhi e que beijei,
O objeto do meu mal, meus urubus,
Que me devoram vivo, sem piedade,
Mas que agora, decidido, enfrentarei.

E tome uma machadada!
E tome duas machadadas!
E tome dez, e tome cem e tome mil!
E tome minhas noites sem dormir!
E o que a vida me trouxe e que nem vi!
E tome minhas horas de agonia!
E tome o desespero desses dias!
E tome as respostas que não deste!
E tome meu sorriso, que murchaste!
E tome as cachaças que tomei!
E tome os prantos todos que chorei!
E tome esta saudade que me mata!
E a dor que me sufoca e arrebata!

E tome dez mil machadadas!
E tome os pesadelos mais terríveis!
Os monstros dos infernos mais horríveis!
Tome os versos loucos que te fiz!
Tome meus rabiscos, meus croquis!
E todas as bobagens que nem viste!
E tome os dias que passei, tão triste!
E tome meus suores, meus tremores,
Meus cuidados, meus silêncios, meu temores!
E tome as canções que nem cantei,
E os beijos – tantos - que nunca te dei!
Tome, enfim, meu verso, teu escravo
Em troca me liberto... Enfim, me salvo.

E quando a velha baraúna enfim, caiu,
Caí, também, prostrado de cansaço.
No céu, morria o dia em tépido mormaço...
Senti que algo do peito, em dor, também ruiu
E tive a nítida impressão que, do espaço,
Nívea estrela e me fitar, me dera o braço
E o firmamento todo, solidário, a mim sorriu.

Saí da mata leve, embora triste
Pois lá no fundo o teu olhar vivia e vive.
Não consegui matar o amor que em mim convive
E se eu existo, se eu respiro... Ele existe.
Mas decidi que a vida continua
E a dor não apaga o sol, a rima, a lua
E todo o Belo, que afinal, persiste

Era uma noite linda, de São João
Uma fogueira só, todo o Sertão
Cantores versejando no terreiro,
Meninos festejando o padroeiro,
Folguedos, brincadeiras e alegria
E então... Vi um sorriso... Uma magia.

O amor de um só, como já disse, é incurável.
E o teu há de morrer aqui comigo,
Cordão pra sempre atado ao meu umbigo.
Mas entendi que existe um amor a dois, estável,
Não aquele que é o maior do mundo,
O mais fatal, mais tudo e mais profundo,
Mas o que torna a dor mais suportável

Não sei se sou feliz... Não me pergunto.
Apenas vivo e os dias me são leves.
Não busco mais o que não posso ter,
Nem busco explicação de complicado assunto.
Que corra livre o rio! Não o vou deter.
Se não me queres, pena! Não me serves.
O amor é muito mais que viver junto.



Rio, nov/2007

quinta-feira, novembro 08, 2007

O quinto poste

Durante a semana, ele só tomava água. Mas, quando tirava o sábado para ir à cidade, todos já sabíamos que a cidade não seria a mesma. Porque ele aprontava todas que tinha direito e mais algumas. E além do mais, era brigão, e tínhamos de ficar de olho, pra evitar problemas mais graves. Enfim, por conta disso, passaremos a chamá-lo, nesse relato, de Dr. Bronca. Afianço-lhes que nome mais adequado não há.
Pois bem, num desses sábados, o encrenqueiro se excedeu. Éramos convidados de honra de uma grande festa social na cidade, na praça em frente ao único colégio local, com direito a discurso do prefeito, presidente da câmara, padre, diretor do colégio, representante dos alunos e etc.
Na qualidade de convidados especiais, eu e o chefe do projeto chegamos no horário exato do início da cerimônia, cumprindo assim nosso papel de relações institucionais avançados da Empresa, naqueles confins do Brasil.
Após uma hora de discursos, loas, homenagens e emocionados agradecimentos, era chegado o momento do encerramento solene, quando um grupo de garotas do colégio exibiria um jogral da Oração de São Francisco, regida por uma freira visitante. Fez-se um silêncio de alcova no recinto, quase se ouvindo o pulsar cardíaco dos orgulhosos pais, vendo suas pimpolhas se exibindo naquela noite de gala.
Mas de repente, não mais que de repente, quando já ia avançado o jogral, um jipe Toyota se aproxima, com um barulho infernal e estaciona bem na entrada principal do recinto, cercado a palha de coqueiros, fazendo desaparecer o som das jogralistas, para desespero dos pais – esqueci de dizer que não havia microfone na cerimônia. Não satisfeito em parar em local inconveniente, o tal motorista (advinha quem?) deu dezenas de acelerados no monstrengo, antes de desligar, inundando o ambiente de fumaça de óleo diesel – era um carro antigo que mais parecia um trator, provocando acesso de tosse em metade dos presentes. Corri ao local, mas cheguei tarde. Já dei de cara com o Dr. Bronca cheio da manguaça, adentrando o salão, depois de dar um carteiraço no pobre porteiro, perguntando por que a festa ainda não tinha começado, porra! Tão alto que as jogralistas encerraram a apresentação, antes do programado, sem graça, ante o riso geral que se instalou.
Finalmente, superado o inesperado incidente, instalaram o som e a festa começou. Dr. Bronca, que já chegou mamado, partiu logo pro crime e começou a azarar uma jovem balzaquiana que chamava a atenção geral, pelo ousado decote nas costas. E todos se admiravam por que, na verdade, a noite estava muito fria, para os padrões do sertão goiano. Era pleno mês de junho. Mas ela não estava nem aí. Rodopiava nos braços fortes do Dr. Bronca, com a leveza das borboletas, aos ventos outonais. E ele, com a graça exótica de um tatu-peba bípede. A harmonia do feliz casal só foi quebrada, quando o entusiasmado galã resolveu explorar por sob o decote traseiro, deixando suas delicadas mãos de lavrador escorregarem pelos glúteos, quase à mostra, da fogosa parceira.
O salão inteiro ouviu os lamentos decepcionados da dançarina, sua repreensão chorosa, arrematada pela indefectível pergunta:
- Quem você pensa que eu sou?
Sentindo a mancada, Dr. Bronca apertou-a gentilmente contra o peito e segredou-lhe, sob as ondas dos seus cabelos anelados:
- Penso que você é a coisa mais apetitosa dessa cidade e não tenho culpa de cair na tentação de sua beleza estonteante. Você me enfeitiça e me deixa descontrolado, como o beija-flor, ante um botão carmim recém-aberto, marchetado de orvalho, num jardim primaveril...
Nem precisou continuar. A senhorita costa-nua se desmilinguiu como manteiga na frigideira quente e respondeu ofegante, já sem defesas:
- Você é o homem da minha vida. Que sensibilidade! Olha, não podemos sair juntos daqui. Você sabe... Cidade pequena, cheia de gente fofoqueira. Preciso me preservar. Vou sair agora. Você marque 20 minutos e vá me apanhar no quinto poste, a partir da frente do colégio tá bom meu amor? Vê se não vai me decepcionar, hem!! Quinto poste!!
- Claro, minha Deusa! Apesar da eternidade desses 20 minutos, irei ao teu encontro, com a volúpia do inocente Romeu e o fogo do impetuoso Dirceu. Vá minha linda Marieta!
- Marieta?!!!!
- Sim! Mistura de Marília, de Dirceu, com Julieta, de Romeu.
Com as pernas trêmulas de paixão, a esvoaçante dançarina disfarçou um pouco e saiu, tal e qual combinado, deixando o Dr. Bronca em brasa viva. Só então ele foi à nossa mesa, quando tomou várias doses de uísque e me segredou os detalhes, que compartilho agora com vocês, sob a condição sine qua non, de que morra aqui, entre nós, por favor!.
Depois de olhar mil vezes no relógio, Dr. Bronca me implorou:
- Me quebra esse galho, por favor. Olha aqui, meu jipe tá uma desgraça, queimando óleo e dando entrada de ar toda hora. Vou sai com uma tetéia que merece um carro mais confortável... Pô! Troca de carro comigo! Só hoje!
Depois de alguma relutância, acabei concordando, até para me ver livre da figura, que já estava queimando o filme da nossa mesa. Fui com ele lá fora, mostrar onde estava meu jipe, que, na verdade, ficara um pouco distante, numa ruela transversal, cerca de 20 metros da entrada do improvisado salão de festas. Fizemos a troca de chaves e voltei, aliviado. E a festa rolou, porém, mais ou menos uma hora depois, me reaparece o Dr. Bronca, puto da vida, berrando aos quatro cantos. Inconsolável, nos narrou seu drama.
Na verdade, o local da festa era um praça, onde se cruzavam duas ruas, logo, havia quatro possibilidade de um quinto poste, a partir dali. Além disso, a rua onde deixara meu Toyota saía nos fundos do colégio e ele, atrapalhado pelo álcool, que desnorteia e pela paixão, que cega, andara um tempão na rua errada, contando e recontando os postes, sem nunca ter certeza se a contagem era confiável ou não. Inúmeras vezes, voltara para reiniciar a contagem.
Quando finalmente se apercebeu do erro de rua, voltou para a praça do colégio e aí teve de decidir qual dos quatro braços de rua tomar primeiro. Em cada braço, mesma história: contagem incerta, volta ao começo, desistência. Enfim, perdeu a dama da noite que conquistara com tanto esforço e poesia. E ainda passou por um perigo de vida. Num dos postes, avistou um vulto feminino e não teve dúvida. Encostou o Toyota e galanteou:
- Enfim, minha gazela do cerrado!
A garota então se apresentou, saindo do lado escuro. Maior mico, pois nesse instante uma porta se abre e sai o dono do material, querendo saber o que estava havendo. Dr. Bronca começou a contar sua história inverossímil, mas o desconfiado marido puxou uma peixeira de 15 polegadas e o mandou “virar no rastro” como se diz por lá.
Sem jeito a dar, apenas tomamos mais umas lapadas juntos e curtimos as últimas músicas, pois a festa já estava no fim. Mas nada consolou o Dr. Bronca.
A tal costa-nua era amiga de uma amiga de um amigo do Zé, que vem a ser meu amigo. Através dele, fiquei sabendo depois, que a coitada, após esperar por mais de uma hora sob um bruxuleante poste, expondo-se aos carros que passavam, ao vento e ao frio da madrugada garoenta, acabou pegando uma crise pulmonar e foi baixar no posto de saúde, no dia seguinte, sendo aconselhada a ir para a capital, para prevenir pneumonia.
Nessa noite, Dr. Bronca ficou tão puto, mas tão puto, que quando chegamos de volta ao acampamento, dia já claro, ele cismou que não ia descer do carro, que o deixássemos lá. Assim o fizemos, depois de tirar as chaves do carro, claro. Pois muito bem, assim nos deitamos e adormecemos, sob o rápido efeito etílico, ele resolveu vir se deitar também. Mas, não se sabe por que cargas d’água, ao invés de passar pela porta do barraco, como todo mundo, decidiu passar por uma pequena abertura na parede dos fundos, uma abertura rente ao chão, que mal dava pra passar um cachorro de porte médio. Aliás, essa abertura era justamente a porta usada por Dique, um cachorro que circulava livremente pelo acampamento, nosso mascote, botando a correr ratos e gatos noturnos.
Essa cena me foi narrada pelo cozinheiro que a ela presenciou, estupefato. O Dr. Bronca ficou de quatro e se meteu pela passagem do cachorro. Ficou enganchado. O buraco era de fato muito estreito e resistiu, claro. Ele forçou, forçou, forçou, até que rompeu a resistência, arrebentando umas palhas, e atravessou, jogando-se pra dentro. Quando nos acordamos, ao meio dia, para o almoço e o Dr. Bronca se dirigiu ao banheiro, sem camisa, somente aí, vimos o estado lastimável de suas costas e vimos também muito sangue em sua cama e roupas. E o pior: ele não se lembrava de nada. Se não fosse o cozinheiro, essa história ficaria envolta num mistério indecifrável.
Resultado: tivemos de levar nosso infortunado amante ao posto de saúde, para curativos e vacina anti-tétano. Adivinhem o que aconteceu então!!! Isso mesmo! Ali, na enfermaria principal do posto de saúde, os dois fogosos namorados se viram cara a cara, curtindo o efeito do desastroso desencontro. Olharam-se com a mesma interrogação, visível no ar, a meio metro entre ambos. Ela tentou falar algo, mas teve um acesso de tosse. Ele levantou o braço, mas uma fisgada nas costelas o conteve. Nesse breve segundo, um pequeno drama humano se desenrolou. Nada se falaram. Seus olhares envergonhados desviaram-se. Sem resposta, a interrogação permaneceu no ar por um tempão, até se desfazer, vencida. E cada um seguiu seu rumo, porque os dramas humanos nem sempre têm respostas.
Quando o jovem doutor medicou os incríveis cortes nas costas do Dr. Bronca, nem podia imaginar que acabara de selar o fim tragicômico de uma versão burlesca do mini-romance da Julieta sem tranças com o Romeu desnorteado. Os dois quase-amantes nunca mais se viram. Mas, mesmo assim, Dr. Bronca, quando comentava o episódio, entre um uísque e outro, deixava escapar um suspiro do fundo d’alma, contemplando o teto do boteco:
- Mas foi eterno enquanto durou...
É... E por que não haveria de ser?

quarta-feira, outubro 31, 2007

Filosofando em Goianésia

Todos têm suas manias. Eu também.
Quem trabalhou comigo, nos meus tempos de martelo, sabe que na primeira página de minhas cadernetas de campo, sempre escrevia uma frase estimulante ou filosófica, ou um verso inteligente, ou um ditado popular. Não me perguntem por quê. Como já disse, mania. Para mim, amenizava a leitura de umas tantas descrições insossas de afloramentos. Outras vezes, lá no meio das páginas, inseria a letra de uma música de que vinha tentando me lembrar, há tempos e que, justamente quando descrevia um maciço granítico, me aflorava que era uma beleza. Então, tinha de registrar, e assim o fazia. É engraçado, por exemplo, ler, lá pelas tantas, a seguinte página:

Afloramento RL-115: Margem esquerda do córrego Pindorama. Matacões graníticos com avançada esfoliação esferoidal, cinza-claro, grã média... “Serenata (Capiba): Levo a vida em serenata, somente a cantar. Quem não me conhece tem a impressão de que eu sou tão feliz, mas não é isso não. Se eu canto em serenata é para não chorar...” Textura porfirítica, medianamente alterados, de aspecto homogêneo...

Conseguiu entender?
Mas tergiversei. Quero falar dos textos de abertura das minhas, amareladas e sujas de terra, cadernetas de campo. Meus colegas achavam interessante essa minha mania e às vezes pediam pra ver a “atual”. Certa vez, por não me lembrar de nada que valesse a citação e por falta de material para consulta, sapequei o seguinte verso, numa manhã de segunda-feira de ressaca:

“Páginas limpas,
Imaculado banco:
Sois o inverso
De um cabelo branco (RL)”

Não sei por que cargas d’água, o Adão* se encantou com essa brincadeira poética e depois de copiar para a sua caderneta, atentou para o RL e se admirou:
- Não vai me dizer que o verso é seu!!!
- Claro que não! Quem me dera ter tão elevada inspiração!
Como eu sabia que o Adão era tão ignorante em matéria de filosofia quanto eu, soltei esse verdadeiro crime de lesa-cultura mundial:
- Esse verso é do grande filósofo e poeta pré-revolucionário francês, Regis de Lion. Já ouviu falar?
- Claro... Isso é dele? Esse verso eu não me lembro de ter visto... Mas é de uma beleza lírica tocante.
Ah! Frágil natureza humana!
Nunca desfiz a mentira e nunca mais voltamos ao assunto, de modo que, para todos os efeitos, Regis de Lion povoou, por algum tempo, o universo romântico do meu amigo. Isso é real, não é nenhuma mentira.
Outra vez, estava na cidade de Goianésia, em happy hour com os anfitriões da mineradora Unigeo, na varanda elevada de uma dessas casas típicas de interior, com jardim na frente. Enquanto deliciávamos uísque, cerveja, cachaça de Minas, tira-gostos e canapés, resolvendo os problemas do mundo, uma algazarra na rua chamou-nos a atenção. Um bando de meninos provocava um desses doidinhos que tem em todo o interior, com palavras de ordem que faziam o ofendido brandir impropérios e avançar sobre a turba, que, por sua vez, se deliciava e redobrava as ofensas.
O doidinho era uma figura de idade indefinida, barbuda, esquelética, cabelos negros desgrenhados, torso nu, calça amarrada na cintura por uma corda. Depois que escorraçou a garotada com um pedaço de pau e com a intervenção de um dos pais, ficou imóvel, sob imensa mangueira da alameda, cofiando a barba e olhando para o céu, como se tentasse distinguir algo especial, de difícil visibilidade. Após um bom tempo nessa contemplação, baixou as vistas e passou a contemplar o chão a seus pés. Nessa posição se demorou mais outros tantos minutos e, por fim, saiu caminhando calma e lentamente, atravessando a rua em nossa direção. Era tão magro que dava pra contar suas costelas.
Em frente à casa onde nos achávamos, havia um tambor de lixo, sob um fícus de copa larga e sombrosa. Ali, bem na nossa frente, que o olhávamos do alto da varanda, o doidinho fez nova parada contemplativa, fixando o lixo. Depois do exame externo do conteúdo, com a vara que espantara as crianças, remexeu-o profunda e longamente, como se procurasse algo específico. Revirou tudo, com meticulosa atenção. Em determinado momento, debruçou-se sobre o tambor e aspirou o cheiro exalado. Repetiu o gesto várias vezes e, por fim, virou-se em nossa direção. Anunciaria o veredicto do exame.
Mirou-nos sem pressa, sem deixar de cofiar a barba. Avaliou cada um de nós, com um olhar superior e perscrutante. Quando julgou-nos convenientemente avaliados, posicionou-se como um orador no púlpito, brandiu a vara na mão direita e falou, alto e bom som, como moderno Conselheiro:

“Estão jogando gente no lixo. Precisamos organizar essa limpeza.”

E mais não disse e nem foi preciso. Com seus passos calmos subiu a rua e desapareceu. Foi filosofar em outra freguesia. Mas suas palavras ficaram ali, ecoando em nossos ouvidos. E não sei dizer por que, as gravei indelevelmente e as transcrevi para a abertura de uma das minhas cadernetas, colocando entre parênteses as inicias DG. Para mim, significavam Doidinho de Goianésia. Mas, quando o Adão viu e se maravilhou e perguntou quem era DG, não resisti:
- Essa frase é do grande filósofo grego pré-socrático, Diógenes de Gorgias. Claro que você conhece, né?
- Claro, claro. Mas, sinceramente, é uma das reflexões mais profundas que já vi sobre a natureza humana.
Adão passou para o andar de cima, sem que eu tivesse a oportunidade de desfazer mais essa pegadinha lítero-filosófica. Quando nos reencontrarmos, tenho certeza de que ele me perdoará.
Por minha vez, confesso que inúmeras vezes me debrucei sobre essa máxima, sem conseguir extrair, por inteiro, seu real significado. Porém, algo lá no fundo me diz que há nela uma sentença filosófica muito acima da minha capacidade de entendimento. Sinto-me aliviado hoje, quando revelo o esquelético frasista de Goianésia, compartilhando a lição que ele tentou nos passar, naquele inesquecível fim de tarde. E ainda longe de alcançar sua mensagem, pergunto-me, do alto da minha pequenez: afinal, nessa sociedade de valores voláteis e volúveis, quem é doido e quem é normal?
..........................................................................
* Nome fictício

terça-feira, outubro 16, 2007

O Sonho de dona Alquinã

De todos os tipos de jornada de campo, nada há que se compare, em desgaste e aventura, ao trabalho que exija avançar e acampar todos os dias. Isso acontece pela injunção de dois fatores: inviabilidade da área e escala de trabalho. Todos os dias levantando acampamento de manhã e baixando no final da tarde. Primeiro, há que se ter uma logística complexa, com uma equipe só para coordenar o deslocamento. Segundo, o geólogo tem de prever o local do possível acampamento, sem nunca ter estado na área, passar a localização para a equipe de rancho e programar seu perfil, de modo que tudo bata no final da tarde, sem atropelos. Uma bobeira, e a confusão estará instalada, o desencontro consumado. E tudo isso a pé, levando a tralha nas costas. Evidentemente, nem tudo sai como planejado. Surpresas acontecem com freqüência.
Foi assim, numa campanha desse tipo, que um dia chegamos a um rancho de palha, tipo oca indígena, bem no sopé da serra do Cabeças, na tríplice divisa Bahia, Goiás (hoje Tocantins) e Piauí, às margens de soberbo riacho de águas cristalinas e geladas. Além da minha equipe, de geologia e recursos minerais, havia a turma da geoquímica, comandada pelo Adão*, que Deus o tenha! Marcou-me muito esse dia, porque era véspera do meu aniversário. Como já estávamos no limite da área, resolvemos fazer base ali pelos dois dias seguintes, pois não havia a menor condição de levar o acampamento para o alto da serra, tanto pela dificuldade logística, quanto pela improdutividade de tal sacrifício, já que seu topo mais se assemelhava ao deserto do Saara. De sorte que, depois de vários dias, iríamos dormir duas noites seguidas no mesmo local e isso precisava ser comemorado. E o pretexto foi meu aniversário.
Antes de prosseguir, apresento-lhes o casal seu Jove e dona Alquinã. Pelo menos, foi isso que entendi e é o que tenho registrado em meus apontamentos. Dois caboclos de idade indefinida, certamente descendentes de índios, pelas feições e costumes. Precocemente envelhecidos, mas ambos ainda muito saudáveis. Ele, de uma cordialidade quase servil, torso nu, sorriso sempre presente no rosto vincado pelo sol. Ela, tímida, mas gentil, chitas mínimas sobre um corpo magérrimo, uma longa trança no cabelo, cachimbo na boca, uns olhos de ciganos e a pele de bronze, cobreada pelo sol do Centro-Oeste. Dos filhos, pouco posso dizer. Nem sei quantos eram. Sei que eram muitos, a maioria do sexo masculino e certamente menores de dez anos. Quando ouviram o barulho de nossa aproximação, correram para os matos, nos contou seu Jove. Usavam algo indecifrável entre um calção frouxo e uma tanga. Ambas as mãos cobrindo os rostos, levaram todo o tempo de nossa presença ali, a sorrir, nos apontando.
Moravam numa espécie de praça, uma clareira no cerrado denso, bem no pé da serra. Criavam porcos domésticos, caititus, capivaras e aves de todo tipo, inclusive patos e guinés. Alimentavam-se de sua cultura de subsistência: mandioca, milho, feijão e derivados. Sazonalmente, colhiam pequi, cajuí, mangaba, puçá, catolé, ouricuri, manga e cagaita. Não dependiam da cidade pra nada.
Já havia um procedimento padrão para a montagem desses acampamentos relâmpagos. Em questão de minutos, os peões cortavam forquilhas e varas e com a ajuda de lonas e palmas, improvisavam um imenso galpão, onde toda a equipe, de uma dezena de pessoas, estendia suas redes. Outro barraco menor era montado, para a guarda do material e a cozinha.
Na primeira noite, ficamos surpresos quando seu Jove trouxe uma rede e se aboletou conosco, contando casos e dando risadas até tarde. Éramos a primeira visita que ele recebia, em meses, e não deixaria passar a ocasião, sem tirar dela o máximo proveito. Na conversa dessa noite, ele disse que dona Alquinã cozinharia para nós e que não nos preocupássemos porque ela conhecia todos os segredos da boa culinária. Claro que não falou nessa linguagem.
No outro dia cedo, deixamos os insumos culinários com dona Alquinã (arroz, charque, óleo e sal) e nos mandamos para enfrentar a serra do Cabeças. Levei os cozinheiros também, já que eles estavam de folga da cozinha. Querendo me surpreender, Adão entregou à nossa cozinheira uma lingüiça especial, do interior de Minas, que ele trouxera especialmente para esse dia. Era pra ela preparar à tarde, na nossa chegada. E assim se deu.
Cinco horas da tarde, logo que chegamos, Adão reuniu todos no centro do barraco, ofertou um garrafão de cachaça, do qual nunca se separava, cantou Parabéns e mandou vir os quitutes, antes do jantar.
Primeira surpresa: o que de manhã era uma apetitosa lingüiça vermelha era agora uns gravetos escuros, irreconhecíveis. Olhamos “praquilo”, olhamos uns para os outros e a cachaça começou a rodar. Como Adão era prevenido, não perdeu tempo. Deixou que a família anfitriã devorasse os “gravetos” e abriu umas tantas latas de sardinha, de sua reserva especial, temperando com farinha e pimenta. Verdadeiro manjar dos deuses naquelas circunstâncias. Estava salva a festa.
Mas, tudo que é bom dura pouco. Fim de festa, hora do jantar. Segunda surpresa: o arroz estava com um aspecto esverdeado, pastoso, bem diferente do que estávamos acostumados. Pra falar a verdade, o gosto não era ruim, mas era muito exótico, um tanto amargo. Enfim, o tempero era algo completamente novo para nós. Com diplomacia fomos esclarecendo as coisas.
O fato é que dona Alquinã usava seus próprios temperos. Óleo era banha de porco ou caititu e no mais, jogava umas folhas na panela que tinham a função de salgar e dar o sabor exótico. Não usou o sal. Ela não deixava o arroz secar completamente, segundo disse, para “guardar” mais o tempero. Até os ovos que nos preparou de manhã, foram fritos em óleo artesanal de pequi, daí termos estranhado o sabor, mas, verdadeiramente delicioso.
Pois é. Aquela família vivia ali isolada do mundo. Tinham vizinhos sim, outros grupos familiares espalhados pelo pé da serra do Cabeças. Estavam perfeitamente situados no calendário. Costumavam fazer encontros festivos e algumas vezes iam à "cidade" – Almas, um povoado remanescente de quilombo a 20 km dali – vender excedentes de mandioca e farinha e comprar roupas, basicamente.
Conforme planejado, dois dias depois era hora de levantar o acampamento. A turma da logística saiu, mal o dia clareou. As equipes técnicas deram um tempo e quando finalmente chegou nossa hora, chamei dona Alquinã e seu Jove, para lhes pagar duas diárias de cozinheira e guia local. Para minha surpresa, eles se sentiram ofendidos e não quiseram receber de jeito nenhum. Tinha sido um prazer nos receber em seu rancho e só lamentavam por não ficarmos mais tempo. Mas, diante da minha insistência, dona Alquinã me fez uma proposta, surpreendendo seu Jove e me comovendo bastante.
- Seu Reginaldo, dinheiro eu não aceito porque isso aqui pra nós não tem valor nenhum. Mas se o quiser me dar um presente eu aceito.
- Claro. Dona Alquinã, pode pedir.
Falei aquilo quase maquinalmente, sem atinar com o que ela pudesse querer. Num átimo, pensei no meu relógio, no rádio portátil, ou algum equipamento de cozinha. Vi que todos estavam surpresos e curiosos, principalmente seu Jove, que lançou um olhar de reprovação pra esposa. Naturalmente, ele não tinha a menor idéia do que se passava na cabeça da mulher. Esta, com uma timidez tocante, as vistas baixas e as mãos juntas, nervosamente na frente, declarou, finalmente seu desejo:
- Bom, desde que casei, eu sempre quis ter uma toalha de banho bonita, como uma que comadre Marta tem... Vi a toalha que o senhor estendeu na cerca, achei linda e se quiser me dar, será a realização de um sonho, mas se não puder não tem nenhum problema.
Antes de responder que claro, que lhe daria a toalha, refleti sobre a relatividade dos valores. E agradeci a Deus, por poder realizar um sonho.
Dei minha toalha a dona Alquinã e nunca vou esquecer o brilho dos seus olhos, quando me agradeceu e o modo como saiu com o presente sobre o peito, cheirando e acariciando seu sonho. Adão, na seqüência ofereceu a dele a seu Jove, que não teve o mesmo entusiasmo, mas ficou agradecido também.
E partimos para as agonias do novo dia, deixando pra trás aquela gente esquecida das estatísticas.
Dizem que a felicidade são momentos. Pois naquele 04 de outubro de 1979, seis e trinta da manhã, eu vivi essa experiência fugaz. Na última volta da trilha, olhei pra trás e vi dona Alquinã, no terreiro do rancho, com a toalha estendida sobre o corpo, sorrindo e passando a mão no tecido felpudo, como uma garotinha curtindo sua primeira boneca. Parecia em êxtase e talvez até estivesse mesmo. Vi um momento feliz, minha amiga e meu amigo. Tenho as sambaíbas, os pequizeiros e as escarpas da serra do Cabeças por testemunhas. E mais não precisa.
Existirão ainda a toalha, dona Alquinã e seu Jove? Não sei. Nunca mais voltei àquele fim de mundo. Mas sei que aquele fim de mundo nunca saiu de minhas gratas lembranças. E agradeço a Deus o privilégio de ter sido geólogo de campo e de conhecer um pedacinho de Brasil que o Brasil nem desconfia que existe!

quarta-feira, outubro 03, 2007

Estúpido espelho

Ontem fiz aniversário.
Sabe quantos?
Muitos! Muitos anos...
Tantos, que já não os conto mais nos dedos.
Mas, enfim, hoje acordei mais velho.
Se mais não fosse, o espelho não mente.
Bigode chinês, pés-de-galinha, rugas na testa,
E os teimosos fios grisalhos...
O inatingível Tempo a nos lembrar
A finitude e a urgência da Vida.
Na verdade, tenho um ano menos de vida.
E o que isso significa?
Não sei... Quem saberá?
Eis a pergunta que rola,
Desde o tempo das cavernas
Afinal, qual é o grande Mistério?
Qual é o fio que liga passado, presente e futuro?
O espelho me cobra.
Não sei se vivi bem, se mal vivi... Não sei.
Se me permitem,
Tenho sido um desastre.
Não que tenha feito planos mirabolantes,
Mas sempre vivi papéis chinfrins,
Em histórias alheias.
Nunca fui protagonista...
Fingindo aqui, ajeitando ali,
Tocando em frente... É isso.
Ao sabor dos ventos,
Mascarando as frustrações nos vapores das noites insones,
No calor do trabalho insano,
Na frieza de amores mundanos.
Mas tergiversei e a pergunta não quer calar:
“E a vida, o que é, diga lá meu irmão?!”
Não sei se o poeta obteve a resposta.
Cá pra mim, sou cheio de dúvidas,
Mas vejo a natureza tão bela e tão simples,
Os animais sem complicação, seguindo seus instintos.
Vejo a beleza do pôr-do-sol e do amanhecer,
E pressinto que o grande Mistério está aí, à nossa vista,
Bem à nossa frente.
Mas não para ser desvendado,
Esse é o Segredo.
O Mistério da vida é para ser sentido, respeitado.
Entendê-lo, decifrá-lo, não é da nossa competência,
Que não somos deuses.
A inteligência devassa os reinos da ciência;
O instinto ratifica as leis atávicas da evolução,
Mas só a intuição explora o campo dos sentimentos superiores,
Carentes de lógica, para a inteligência,
Inalcançáveis para o primarismo dos instintos.
Então retorno ao começo:
Hoje estou mais velho,
Isso é bom ou ruim?
Não sei.
Venci um câncer,
Mas a que custo?
Tudo tem um preço... Não me iludo.
E daí? A pergunta persiste.
Meus instintos só retornam indiferença.
Minha inteligência pede insumos que não tenho,
Logo, ela não processa.
Mas minha intuição se apresenta.
Ela diz que as rugas e os fios grisalhos
São ponteiros do relógio,
Não do tempo que se foi,
Mas do que falta.
São alarmes a me inquietar:
O que és?
O que queres?
Que fizeste?
És feliz?
Que te falta?
Vai à luta, que o dia de hoje pode ser o último!
Queixas-te da tua vida e o que fizeste para mudá-la?
Escreve tua história, cara!
Reage! Ainda é tempo!
....................................
Mas, como dizia, ontem fiz aniversário.
E cortei um bolo,
E soprei muitas velas,
E bebi muitas cervejas,
E me embriaguei de brigadeiros,
E me empapei de empadas,
E me atochei de coxinhas,
E quando todos se foram,
Dormi como um tronco,
E ronquei como um bronco,
E acordei morto,
De certeza, todo torto,
E corri ao banheiro,
E me vi no espelho
E perguntei:
- Amigo, amigo meu, como estou?
E ele, cruel e gozador:
- Um barrigão imenso,
- Uma ressaca infeliz,
- Mas essa afta na ponta da língua está um charme!
.........................................
Quantos anos fiz?
Muitos! Muitos anos...
Tantos, que já não os conto mais nos dedos.
O passado ficou debaixo dos meus segredos.
O futuro se esvai nos cachos dos meus cabelos.
E o presente é o escracho desse estúpido espelho.

Brasília, 03/10/2007

domingo, setembro 30, 2007

Senso de bússola, faro de dobermann

O cara era fera no violão. Do sertanejo mais brega, ao rock mais pop da época, década de 70, ele “transava todas sem sair do tom”, como diz um famoso conterrâneo. Mas, como todo artista, era cheio de esquisitices e por isso tinha dificuldades de relacionamento. Por exemplo, a condição sine qua non pra ele se dignar a tocar, era o silêncio total e absoluto. Um pio que fosse, uma cadeira arrastada, um espirro, ele parava solenemente de tocar e saía puto da vida, resmungando e chamando todo mundo pra briga. Só porá vocês terem uma idéia do quanto ele levava a sério suas exibições, certa vez, em uma festinha de crianças, em sua casa, quebrou um violão na cabeça de ninguém menos do que sua esposa, mãe do aniversariante. É mole, ou quer mais?
O cara era o Elvis, nome fictício, claro, em homenagem a um de seus ídolos confessos. Éramos sete geólogos no projeto, naquela pequenina cidade do interior goiano. Imaginem a revolução que causamos na pacata comunidade! Por esquisito demais, o Elvis não ficou com a gente no hotel. Alugou um quartinho na periferia e às vezes ficávamos dias sem vê-lo. Não tinha motorista e sim um auxiliar de campo. Ele mesmo dirigia o Toyota, ao mesmo tempo em que navegava na fotografia aérea. Era o cara!
Certa noite, já por volta da 21h00, o senhorio do quartinho mandou nos avisar que o Dr. Elvis ainda não tinha chegado do campo. Acendemos a luz amarela, mas conhecendo nosso amigo, resolvemos dar mais um tempo. Finalmente, às 23h00 decidimos que tínhamos de fazer alguma coisa e, no caso, o mais imediato seria enviar uma equipe para a área, com suprimentos, primeiros socorros e fogos, pra facilitar a localização no escuro da noite. Como a minha folha era contígua à dele, o chefe do projeto determinou que iríamos ele, eu e meu motorista, que era da cidade e conhecia bem a região. Os demais deviam permanecer e ficarem alertas para o dia seguinte. Caso não estivéssemos de volta ao amanhecer, ficassem na cidade aguardando notícias. De modo que antes da meia noite partimos para nossa aventura noturna, pedindo a Deus que apenas o veículo tivesse dado problemas. Mas, as possibilidades trágicas eram muitas e tínhamos consciência disso. Picada de cobra e outros bichos venenosos, ataque de feras, emboscada de grileiros ou posseiros, assalto, acidente grave, seqüestro... Enfim, o que era certo é que algo acontecera a um dos dois, aos dois, ou ao veículo.
Com a ajuda do meu motorista, fomos indagando nas fazendas - pedidno desculpas, pelo adiantado da hora - e assim refazendo o trajeto da equipe naquele dia. De tempos em tempos, soltávamos rojões coloridos, que estremeciam a solidão do sertão silencioso, parecendo um tiro de canhão. Só tínhamos de volta os pios das corujas, o vento nas folhagens e os ecos soturnos dos sons nas serranias, que mais aumentavam nossa angústia.
Finalmente, pouco mais de 4h00, quando já perdíamos as esperanças, surge na estrada um vulto correndo em nossa direção, os braços levantados em euforia. Era o Elvis. Abraçamos-nos, todos chorando de emoção e alívio. O pobre estava bastante arranhado, com as roupas rasgadas e implorava por água.
Recomposta a serenidade, narrou-nos, de uma maneira bem simplória, como era seu feitio, que não houvera nada grave. Apenas o carro tinha caído num buraco e no baque, o pneu dianteiro esquerdo tinha estourado. Por mais que tentassem, ele e o ajudante não conseguiram apoiar o macaco para substituir o pneu danificado. Anoiteceu e ele tinha resolvido aguardar o dia amanhecer, até que viram os sinalizadores que emitíramos e ele veio então ao nosso encontro, pedindo ao auxiliar para permanecer no local. Mas o veículo estava bem longe dali. Pelos seus cálculos, tinha caminhado mais de uma hora, após ver os fogos, no meio do cerrado, para cortar caminho.
Por sua própria sugestão, resolvemos regressar à cidade, para tranqüilizar a equipe e voltar, mais tarde, com o suporte necessário para o resgate do veículo. Assim foi feito.
Antes das 7h00 estávamos de volta à cidade, onde, após o necessário descanso, mobilizamos o melhor mecânico do lugar, munido de seus equipamentos portáteis mais avançados, além de correntes e macacos para todo tipo de resgate possível. De modo que, às 13h00 lá fomos de novo, em dois veículos, eu, o Dete, meu motorista, o chefe do projeto e o Elvis, no meu jipe. No outro, ia um motorista da CPRM, o mecânico da cidade e seu ajudante, além de toda a parafernália de ferramentas.
Elvis era o guia e aí começou nosso pequeno drama, porque ele não localizava o local exato em que saíra da estrada principal. Todos pensávamos que ele tinha tomado algum trilho ou estrada carroçável, pelo menos. E, nesses casos, a prudência determina assinalar referências precisas nas fotos, para garantir a localização. Não foi o que se deu, no entanto. O Elvis não tinha nenhuma referência e seu achismo não funcionou de jeito nenhum. Até que, já umas 16h00 ele confessou que, na verdade, não tinha pego estrada nem caminho nenhum. Tinha mesmo era enfiado o jipe no cerrado, por uma campina que se apresentava plana, coberta de vegetação rasteira, muito comum na região, em busca de um córrego, guiando-se pela bússola e calculando a distância pelo odômetro do veículo. O único dado preciso, era que tinha rodado 02 km após sair da estrada.
Fizemos uma conferência, sob imenso pé de ipê roxo e delimitamos a área possível e provável de localização do veículo e do pobre auxiliar do Elvis que, a essa altura, pouco contribuía, completamente desorientado. Estabelecemos que os dois veículos deveriam entrar no cerrado por pontos diferentes, segundo uma trajetória convergente, pré-determidada. Nesse trajeto, pelos nossos cálculos, obrigatoriamente, um dos veículos cruzaria com o rastro do jipe quebrado. Daí, era só seguir a pista, cerrado a dentro. Combinamos as formas de comunicação e iniciamos a operação resgate, quando já começava a escurecer. Nossa água estava quase no fim, pois não prevíramos virar o dia.
A estratégia, como não poderia deixar de ser, funcionou e mais ou menos 19h30, ouvimos o sinal combinado, significando que o outro jipe localizara a pista ou o próprio veículo quebrado. A essa altura, dentro do cerrado e no escuro, nosso deslocamento era a passo de tartaruga, em primeira marcha, com a bússola em punho e revendo a localização a cada cem metros, com os faróis do jipe e um estereoscópio de bolso.
A água tinha acabado e a sede nos atacou, como se tivéssemos há dias sem beber. Mas eu sabia que era só psicológico. Calculamos que o sinal enviado distava cerca de 300 metros, no máximo e todos, menos eu, decidiram acabar de chegar a pé, o que seria mais rápido que utilizando o Toyota, naquelas circunstâncias. Além do mais, nesse trajeto, certamente haveria um córrego com água para matar a sede.
Macaco velho, decidi ficar no jipe. Não me aventuraria pela escuridão do cerrado, sabendo que, de qualquer jeito iria passar a noite no mato. Levaram as caixas de fogos e se mandaram. De tempos em tempos se comunicavam com a outra equipe, através dos fogos. Resignado, baixei as cortinas do jipe (capota de lona) e procurei dormir, apesar do medo que a solidão da mata noturna infunde. Naturalmente, foi um sono descontínuo, sobressaltado, mas o fato é que, finalmente, senti a luz do arrebol no horizonte e tomei ânimo novo. Assim a claridade se impôs, peguei um facão e fui no rastro dos colegas, a pé.
Ironia, do destino: menos de 100 metros adiante, deparei com a pista do jipe do Elvis. Daí, menos de meia hora de caminhada depois, dei com o outro jipe sem ninguém. Pelos galhos dos arbustos quebrados ou cortados, fui seguindo a trilha dos andarilhos, até encontrá-los, na beira de um córrego, onde tinham passado a noite, tamanha era a sede que os acossara. Todos, principalmente o Elvis, mal-humorados, muito arranhados e picados de mosquitos. O Toyota quebrado estava bem perto, quase no barranco do córrego, a roda dianteira esquerda desaparecida numa vala, com a traseira oposta semi-suspensa.
Mal se agachou, para a primeira avaliação, o mecânico diagnosticou:
- Ih!!!!! Esse, só rebocado... Não sai daqui rodando nem a pau!
- Mas como? Não foi só o pneu que estourou?
O mecânico deu mais uma avaliada, por dentro do capô e por baixo do veículo e sentenciou, irônico:
- Que nada doutor! O pneu é o menor problema que temos aqui. O que houve, na verdade, foi um acidente violento. Não sei como o doutor não se machucou. O tranco foi muito violento e, pelo visto, não estava só a 10 km/h. A pancada foi tão forte que, além de estourar o pneu, estilhaçou a roda, quebrou a bandeja e a barra de direção, arrebentou o sistema de freios, furou o radiador e empenou a suspensão. Isso, assim, numa primeira avaliação... Não tem a menor condição de fazermos nada aqui, a não ser providenciar o reboque.
Todos os olhares se voltaram para o Elvis. Com um sorriso amarelo nos lábios, ele negava que estivesse em velocidade incompatível, apesar de que, depois, vimos uma imensa mancha roxa em sua coxa direita, provocada pela alavanca de câmbio.
Sem jeito a dar, marcamos as referências na fotografia e voltamos à cidade, No dia seguinte uma equipe profissional retornou ao campo e foram necessários mais dois dias para o reboque seguro do carro.
Naquela noite, enquanto tomávamos umas cervejas, comentando o ocorrido, não consegui calar uma pergunta:
- Elvis! Tire-me uma dúvida. Quando começou a escurecer, por que você não voltou para a estrada, caramba?
- Por que, àquela altura, já estava andando em círculos e comecei a cruzar meus rastros em todas as direções... Fiquei desnorteado.
- Pombas! Mas você não estava com a bússola? Por que foi seguir rastros se tinha a bússola, cacete?!
Aí, ouvimos a resposta mais estapafúrdia que poderíamos ter ouvido, principalmente partindo de um geólogo já com mais de 10 anos de formado.
- Pois é! Até coloquei a bússola, mas eu estava tão certo do rumo da estrada, que quando ela apontou noutra direção, supus que fosse influência das forças magnéticas noturnas, atração lunar, sei lá... Pensei cá comigo: à noite, a bússola deve ficar porralouca. Daí, segui meu faro de dobermann, mas a noite embotou o senso do velho cão, hehe!
Todos nos entreolhamos sem acreditar no que ouvíramos. O silêncio foi tão constrangedor, que se ouvia o barulhinho do precioso líquido escorrendo por nossas gargantas secas.
Adão* – que Deus o tenha! - que até então se mantivera calado, filosofou, cofiando a barbicha, como se pensasse alto:
- Forças magnéticas noturnas... Bússola porralouca... Faro de dobermann...
Finalmente, virando-se para o “dobermann” atrapalhado:
- Ô Elvis, eu vou te dizer uma coisa. Tu, como geólogo, é um grande tocador de violão, sabia? O esqueleto do Derby** deve ter se revirado na tumba, de vergonha, quando tu guardou a bússola.
Depois das risadas, como que querendo melhorar sua imagem, o Elvis propôs:
- Por falar em violão, vamos cantar umas músicas? A noite está deliciosa!
Daí 20 minutos o bar de seu Quincas virou uma casa de shows, com o Elvis em cima de uma mesa, sacudindo freneticamente a cabeleira, mandando ver:

“Yesterday, all my troubles seemed so far away, now it looks as though they´re here to stay, oh I believe in yesterday...”

O bar se encheu de garotas e Adão, num canto afastado da algazarra, não deixou por menos:
- É... O dobermann pode não ter faro pra se localizar no meio do cerrado, mas pra farejar as lebres da cidade, não tem melhor!
..........................................................................

* Nome fictício
** Naturalista inglês, falecido em 1915, considerado pai da geologia no Brasil

segunda-feira, setembro 24, 2007

Dia dos namorados

Dia dos namorados.
O ano, se os neurônios não me traem, era 1983.
Fim de expediente, como todos os dias, dos namorados ou não, tinha reunião no Bar do Sujeirinha. Este que vos fala, Duque, Ivair, Adão, Brandão e Geovanni, todos nomes fictícios, claro. Talvez, pela relevância da data, levaram falta nessa noite, o Airton e o Waldir, o alfa e o ômega, como chamávamos os inseparáveis amigos. Em compensação, lá encontramos seu Zé Alves, que nos brindou com uma rodada por sua conta – uma branca e uma loira – para divulgar seu livro de poemas, cuja obra de abertura fez questão de recitar, subindo na cadeira.

Desgosto:
Uma ruga,
A procura de um rosto
.

Declamou com tal sentimento, que todos viram as duas gotinhas que quase caem de seus olhos claros, não fosse nossa intervenção providencial, dando hurras e fazendo um brinde especial. Comprei logo um exemplar, que, confesso, nunca cheguei a ler. Nem me lembro se o levei para casa naquela noite. Mas nunca esqueci a poesia maravilhosa.
Como ia dizendo, era dia dos namorados. Naquela noite, evidentemente, nosso happy hour não poderia se estender como em noite comum. Afinal, nossas mulheres nos esperavam para o jantar especial que a data requeria. Conforme inconfidências mútuas, todos tinham programas agendados. Adão, inclusive, estava com um lindo arranjo de flores, com que pretendia surpreender sua querida Arlete. Para não desfigurar o arranjo, a esposa do Sujeirinha o acomodou sobre a Torre de Pisa, a geladeira inclinada, que gelava nossas cervas, tradição e patrimônio inalienável daquele boteco especial. Então, de comum acordo, estabelecemos que 19h00 seria nosso limite. Teríamos, assim, duas horas para nossa confraternização habitual, sem descurar da obrigação. Ok? Ok. Todos concordaram e as rodadas começaram a se suceder.
Exatamente no horário combinado, mandamos fechar a conta, seguida de uma saideira, claro. O bar já estava bem vazio e todos nos preparávamos para sair, quando o destino conspirou no sentido contrário. Já tínhamos tomado a saideira, quando chegou a família do poeta Zé Alves: dois filhos com as esposas e netos, uma filha solteira e um irmão, trazendo um violão a tiracolo. A emoção nos contagiou. Ele era viúvo e os filhos lhe prepararam essa surpresa. Além do mais, a filha solteira era um pedaço de mau caminho.
Bem, começou tudo de novo, em função do inusitado da circunstância e decidimos adiar nossa saída para as 20h00. As rodadas de brancas e loiras se intensificaram com renovado ânimo. Depois de algumas músicas sertanejas tocadas por um dos genros do poeta, Adão me pediu para tocar um samba-canção, só um, antes de ele ir embora. Um grande sucesso de Altemar Dutra: Que queres tu de mim. Cantei e emendei com outro: “reclamas que te faltam meus carinhos, e dizes que não sou como antes fui...” O irmão do poeta se encantou:
- Puta que pariu! Esse cara é demais! Mais uma rodada aí Sujeirinha!
Adão pediu pra tocar Brigas. Emendei com Queixas, Negues, Risque e as rodadas não paravam. Nem lembro que horas o Duque e o Geovanni se foram. Sei que por volta da 21h00, o Adão continuava a falar:
- Essa é a última! Arlete já deve estar puta comigo! Canta Apito, de Noel Rosa e fim de papo!
Os pedidos foram se sucedendo e os ânimos se exaltando. Alguém roubou o buquê que o Adão ia levar pra sua Arlete. Ninguém sabe, ninguém viu. Simplesmente desapareceu. De raiva, ele pediu uma branca dupla e garantiu ficar até no máximo 22h00. Onde já se viu?
Os demais fregueses já se tinham ido e só restávamos nós no bar, naquela noite romântica. Depois de mandar fechar a conta pela milésima vez, Zé Alves me pediu:
- Vou pedir uma música. Se você souber, pago mais uma rodada. Sabe cantar Poema?
Mandei sem pestanejar:

“Poema é a noite escura de amargura, poema é a luz que brilha lá no céu, poema é ter saudade de alguém...”

Às 23h00, depois de imenso esforço, a família de seu Zé Alves conseguiu levá-lo, deixando a conta paga e mais umas rodadas incluídas e o violão, sob meus cuidados. Dez minutos depois, uma Brasília estaciona e dela desce seu Zé Alves, para um último pedido, amparado pelo irmão condescendente:
- Baiano, eu não vou embora sem antes ouvir Deusa do Asfalto! Sujeirinha! Mais uma aí!
Atendi, e sem imaginar as conseqüências, emendei com “O Ébrio”:


“Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer aquela ingrata que eu amava e que me abandonou...”

Seu Zé desatou um pranto sem fim, me pegou de abraços, mandou descer todas e só foi retirado mais de meia noite, carregado, sem sentidos. Brandão aproveitou a deixa e saiu. Ficamos eu, Ivair e Adão. Pedimos uma saideiríssima e avaliamos a situação. Estávamos todos fedidos. E agora? Ivair estava conformado:
- Bom, vou entrar em casa bem devagarzinho e já fico na sala mesmo. Nem subo pro quarto! Amanhã será outro dia!
Eu segui na mesma linha:
- É... Também durmo no sofá da sala e amanhã ataco os pontos fracos dela e resgato meu crime. Também tenho minhas manhas!
Mas a situação do Adão era diferente. Ele não tinha chave de casa e, pelo que conhecia da sua Arlete, hoje a cobra ia fumar. E tinha o buquê... Ele não se conformava de alguém ter roubado. Bom, como Arlete gostava muito de serenatas, resolvemos ir todos para a janela do prédio, em solidariedade, derreter seu coração com alguns sambas-canções, escolhidos a dedo pelo maridão apaixonado. Tomamos mais umas, para dar coragem e inspiração e ensaiamos as músicas que ele achava que iriam transformar o coração de sua amada em geléia. Por volta de 01h00, finalmente, deixamos o bar do Sujeirinha, em direção ao Bairro Popular, para a operação “Salva Adão”.
Os carros não podiam entrar no Condomínio. Andamos uns bons 50 metros até chegar ao pé da janela da bem amuada, isto é, bem amada. Ela morava no segundo andar, de um prédio tipo caixão, sem elevador. Tudo escuro. A pedido do marido, a primeira deveria ser “Camisola do Dia”, para relembrar a inesquecível lua-de-mel do casal, cinco anos atrás, em Porto Seguro. Depois de mamar um gole na garrafa que o Ivair providenciara, afinei a garganta e sapequei:

“Amor, eu me lembro ainda, que era linda, muito linda, a camisola do dia...”

Infelizmente, vocês têm que acreditar só em mim, porque Ivair e Adão hoje fazem serenatas nas noites do céu, aguardando a hora de nos reunirmos novamente. Abandonaram-me antes do previsto, ambos. Mas retornemos ao fatídico dia dos namorados. Quando ia em meio a Camisola do Dia, a janela do quarto se abriu e eu me enchi de pavonice:
- É... Não tem coração endurecido que uma boa música não derreta!
Apesar da escuridão da noite, vi perfeitamente, quando um travesseiro voou da janela entreaberta e caiu bem próximo de onde estávamos. A princípio, não atinei com o que estava ocorrendo, e continuei cantando:

“...tinha rendas de Sevilha, a pequena maravilha que o teu corpinho abrigava...”

A ficha só caiu quando a panela de pressão se espatifou no chão, com um barulho ensurdecedor. Logo em seguida veio um prato de louça, um jarro de flores e duas taças de vinho e aí tivemos que nos abrigar, porque o apartamento inteiro do Adão veio abaixo. Depois dos últimos talheres, ela deu o ar da graça na janela:
- E pode ir pra casa da mamãezinha, porque aqui você não põe os pés nunca mais! Seu cachorro! Nem essa laia que está contigo!
Toda a vizinhança, a essa altura, assistia ao dramalhão, das janelas encortinadas.
É... A situação do Adão tava complicada. Ivair, muito pragmático, depois de oferecer uma mamada ao coitado, propôs:
- Vamos tomar uma na Avenida Goiás, pra avaliarmos a situação. É preciso manter a calma, que tudo se resolve.
Apesar da consternação, Adão concordou. Catou algumas coisas atiradas lá de cima, inclusive a cueca que ele ia estrear naquela noite, e lá fomos nós, boêmios incompreendidos.
Depois de tomarmos umas geladas, Adão se lembrou que minha mulher era muito amiga da Arlete e propôs uma intermediação de emergência.
- Por que você não pede a sua mulher pra ela ligar pra Arlete e quebrar meu galho, pelo menos essa noite?
- Olha Adão, a essa hora, quase três horas da matina, depois do cano que dei no nosso jantar dos namorados, não tenho cara de fazer um pedido estapafúrdio desses. Se quiser, liga você. Tem um telefone público bem em frente ao bar (naquela época não havia celular).
Ivair mais uma vez, foi pragmático:
- Essas coisas não se resolvem por telefone. Só pessoalmente.
Assim, tomamos mais todas e, por volta de quatro horas, os galos já cantando, entramos no meu apartamento (eu tinha a chave, claro), para a missão impossível. Como não tinha cerveja na geladeira, abri uma garrafa de uísque antes de ir ao quarto despertar a fera. Mas, na verdade não precisou. Ela estava acordada e, percebendo a movimentação, saiu do quarto, enrolada num roupão. Passou por mim como se passasse por um cachorro e deu com os dois bebuns na sala. Ao vê-la, Adão fez o maior drama. Inventou uma estória complicadíssima, cheia de contradições e finalmente, implorou pra ela ligar pra Arlete e pedir pra abrir a porta.
Para minha surpresa, ela foi pro quarto e ligou de lá. Depois de uns 10 minutos voltou, arrogante:
- Pode ir. A porta vai estar aberta.
Adão ajoelhou a seus pés, agradecendo. Ela ria, um riso amarelo e na primeira deixa voltou pro quarto.
Quando a garrafa de uísque secou, mais ou menos cinco choras, os dois foram embora. Com o resto de lucidez que me restava, corri ao banheiro para um merecido banho. Debaixo do chuveiro, ouvi quando o telefone tocou e, pela conversa, a Arlete dava conta do estado do pobre do Adão. Ela só sossegou quando quebrou uma colher de pau na cabeça do coitado. Mas só fez um galo.
Claro que dormi no sofá. Nem tentei entrar no quarto.
Uma semana depois, já as pazes feitas, recebemos a visita do casal Adão – Arlete, para um jantar. Lá pelas tantas, puxando-me para um canto, ele me confessa o verdadeiro motivo da visita.
- Você pode ser meu fiador na Caixa Econômica? Preciso fazer um empréstimo de dois mil reais. A maluca quebrou tudo o que tínhamos em casa.
- Porra Adão! Só por aquela besteirinha daquela noite?
- Pois é... Essas mulheres de hoje!
Adão foi pro andar de cima. Antes, separaram-se. Não sei da Arlete e os anos voaram. Mas nunca mais vou esquecer a indignação do Adão, questionando o radicalismo da ensandecida esposa:
- O que é que eu fiz Baiano? Diz pra mim, o que é que eu fiz?
Não sei Adão. Nunca pude lhe responder essa pergunta que tanto o angustiou em vida. Acho que não fez nada demais. Espero que onde se encontre hoje, junto ao Ivair, ao Brandão e ao Geovanni, esteja mais conformado. Me aguarde, que, a seu tempo, haveremos de cantar todas as músicas que aqui não nos foi permitido. Sei que aí tem bons seresteiros e também me disseram que as colheres de pau celestes são feitas de material macio. Nem doem.

terça-feira, setembro 18, 2007

Lírico divã

Mas tem dia que a tristeza me domina,
Uma tristeza que me vem não sei de onde...
Que vem chegando e já se instala, nem se esconde...
Que desconcentra, desconcerta e desanima.
Fica em meu peito cutucando, dor e estresse,
Um não sei quê, que não se lembra e nem se esquece,
Que murcha o riso, esmorece e desatina.

Então rebusco lá no fundo da memória,
A ver se encontro uma desculpa, uma razão,
Mas só acho desencontros, confusão,
Imagem fosca, luz mortiça e luta inglória,
Uma saudade que não sei dizer de quê,
Mas que tortura, atormenta e faz sofrer,
Lança e vinagre cravados na minha história

Mas não desisto, continuo a rebuscar,
Desatando os nós curtidos da lembrança
E me transporto aos dias longes de criança,
Pelas trilhas, pelos campos a brincar.
E lembro as missas de domingo, o terno branco,
A casa antiga, a velha praça, o velho banco...
A escuridão e as cantigas de ninar.

E lembro os dias do Ginásio, a adolescência,
As primeiras serenatas ao luar.
Sinto o frio das madrugadas me gelar,
Curtindo a dor do amor primeiro, a quintessência
Do perfume que ficou da namorada,
Do beijo urgente no batente da calçada.
E lembro as juras calorosas da inocência...

Depois, revejo o dia triste da partida.
Era Natal, era uma tarde de dezembro,
O pai calado, a mãe chorando... Inda me lembro
O olhar de espanto dos irmãos na despedida,
A mala pobre, o medo, a dor... Dinheiro pouco...
E na cabeça, a fervilhar, um sonho louco
De tecer meu destino na teia da vida.

No Sul, a dor da solidão e o preconceito,
A luta ingente pelo pão de cada dia,
O terror da repressão, a covardia,
Os porões da ditadura, a dor no peito,
Mortas ilusões, sofrida juventude
De privações, mas de coragem e atitude.
No Sul, a dor inglória, mas... Um homem feito.

E então a estrada e a liberdade e o meu país...
E enfim, a grande decisão, o grande passo:
Fios sem liga, teia frágil, meu fracasso.
Daí a fuga, a volta... A fuga... Anos febris...
Depois loucura, amores breves, vãos momentos,
Que foram novos fracassados casamentos.
Sempre presa das mulheres, seus ardis.

E vão-se os anos a voar, como num clique.
De repente, lá no espelho, um fio grisalho,
E no olhar, um brilho fosco de borralho,
E no ouvido o brado de um cruel repique,
A ecoar: “Bufão! Que fizeste da vida?”
“Levaste a te enganar de partida em partida,”
“Diga-me agora se foi bom o piquenique!”

Não! Respondo. Não! Não vivi a mocidade.
Não tive aquele amor de se querer morrer...
Que fiz de mim? Usei mulheres sem viver...
De bar em bar, boêmio louco da cidade,
E hoje colho esse cansaço, esse vazio.
Por isso, falta a chama do pavio,
E não sabia de onde vinha essa saudade.

Mas agora, finalmente abro a ferida:
Fui um covarde a me afogar no desamor,
Não respeitando nem a dor... A própria dor.
Fiz um rosário só de adeus e despedida.
E então percebo porque tanto andei chorando,
Anos e anos perguntando, questionando
A explicação dessa saudade tão doída.
O que me mata, na verdade, agora sei,
É a saudade das saudades que evitei;
É o gosto amargo de não ter vivido a vida.

Bsb, julho de 2007

quinta-feira, setembro 13, 2007

Boate subterrânea

Depois, ambos foram “convidados” a pedir demissão, mas até então eram dois geólogos de renome na empresa. Um, exímio e versátil violonista, que tocava desde as chorosas músicas sertanejas, que os goianos adoram, até os rocks mais pesados, com solos excepcionais. Verdadeiro artista, que poderia muito bem, ter seguido a carreira de músico. O outro, boêmio, amante da boa música e farrista de primeira hora. Ambos mulherengos e apreciadores dos bons destilados e fermentados.
O destino os uniu, fazendo-os dupla responsável por uma área de mapeamento, em importante projeto da empresa, na década de 70.
Naquela época, os mapeamentos tinham a fase denominada de “cheque final”. Era quando o chefe do projeto passava uma semana com cada dupla, “conferindo” os trabalhos, in loco. Esse trabalho consistia na seleção de alguns pontos, aleatoriamente ou não, para visita conjunta. No causo em tela, foi aí que a porca torceu o rabo. Na verdade, o chefe do projeto, geólogo de larga experiência e conhecimento, já tinha estranhado certas relações de campo e resolvera ir direto ao problema.
As coisas começaram então a não bater. Explico. No ponto descrito como a rocha A, ocorria, na verdade a rocha B. Mais adiante, a rocha C foi descrita com D. E assim por diante, uma confusão dos diabos. Apertada, a dupla começou a entrar em contradição, um a jogar a culpa no outro. Enfim, a coisa estava cheirando mal. E isso se deu na maioria dos pontos visitados, fazendo com que todo o mapeamento ficasse sob suspeita. Mas afinal, o que acontecera? Era a pergunta, tão simples, que a dupla se enrolava toda, mas não respondia. O chefe do projeto estava desesperado. Todo o trabalho estava comprometido.
Na terceira noite, após calorosas discussões na mesa do restaurante do hotel da pequenina cidade do interior, a dupla se retirou ofendida, dizendo-se vitima de perseguição, deixando o pobre chefe do projeto, com a cabeça entre as mãos, quase chorando. Tão absorto estava em sua decepção, que nem percebeu quando o gerente do hotel se aproximou, com muito respeito e lhe bateu no ombro:
- Doutor! Me desculpe. Não é da minha conta, eu não tenho nada a ver com isso, mas ouvindo a discussão que o senhor teve com fulano e cicrano, me senti na obrigação de lhe contar algumas coisas. O senhor, se quiser me ouvir, vai tirar as conclusões, se ajuda ou não a esclarecer o que houve.
O chefe do projeto então, olhou-o vivamente interessado e se prontificou a ouvir, sem atinar, no entanto, o que uma coisa tinha a ver com a outra.
- Mas, por favor, doutor, aqui não. Fulano e cicrano são meus hóspedes antigos e não quero que eles fiquem com raiva de mim. Me encontre daqui a 20 minutos no Bar Flor do Pequi, lá no fim da rua principal, ao lado da Boate Cossaco Fora.
No local combinado, o gerente do hotel relatou ao chefe do projeto, por mais de uma hora, fatos relacionados ao comportamento da dupla. Fatos de conhecimento de muita gente na cidade e que depunham negativamente, contra a imagem da Empresa, embora ele sempre arrematasse não ter nada com isso. Mas que era estranho, lá isso era!
Saindo dali, passaram em mais duas casas, onde novos personagens, sob a condição de absoluto sigilo, acrescentaram ingredientes que reforçaram as conclusões do chefe do projeto, sobre o ocorrido, de modo que nem precisou mais de novas testemunhas. Tudo estava esclarecido.
No outro dia cedo, durante o café da manhã, ele comunicou à dupla que tinha havido mudanças de planos. Os dois deveriam voltar de ônibus, para a Sede, enquanto ele seguiria, com o carro, para outra área, considerando suficiente o cheque já feito.
Desconfiados, mas obedientes e até aliviados, os dois amigos foram deixados na Rodoviária. Dali mesmo, o chefe do projeto se dirigiu aos Correios, onde postou extensa carta, redigida na noite anterior, dirigida ao Gerente da dupla, resumindo o ocorrido e recomendando a demissão imediata de ambos. E completou o cheque da área sozinho.
Passemos, então, a relatar o que se deu e porque se deu.
O projeto teve seis meses de campo. No primeiro mês, até que a dupla trabalhou direito, cumprindo suas tarefas diárias, como todas as outras, das demais áreas. Porém, à medida que foram se ambientando na cidade e, principalmente, na Boate Cossaco Fora, onde viraram clientes especiais, os amigos começaram a, digamos, relaxar com o rigor que a geologia exige. Acordavam tarde, voltavam cedo do campo e fizeram do Flor do Pequi seu escritório. A coisa foi assim até que, do terceiro mês em diante, a dupla adotou a seguinte agenda de trabalhos: segunda, terça e quarta ia normalmente para o campo. Nos demais dias, o expediente era dado no “escritório”. Explico.
Comecemos pela quinta. Nesse dia, os amigos, cansados dos três dias anteriores, tinham que descansar, que ninguém é de ferro. Saiam normalmente do hotel, às sete horas e iam direto pra Boate, onde tinham várias “amigas”. Por volta das 10 hs, acampavam no “escritório”. O músico sacava o violão, do qual nunca se apartou, e começava a orgia. As “amigas” desciam da “Cossaco” e dali a pouco o pagode estava armado, animado a cachaça e cerveja.
De vez em quando, o grilo falante de um lembrava:
- Colega, tá na hora de descrever um afloramento. De quem é a vez?
- Agora é você colega. Eu estou muito cansado, pois já descrevi dois hoje!
Aí, o colega sacava a fotografia aérea, localizava o caminho que deveriam estar trilhando e marcava um ponto, tendo o cuidado de fazer parecer um perfil diário normal, com a quantidade de pontos consistente com a logística, claro. Isto feito, pegava a caderneta e descrevia o afloramento, entre um gole e outro de cerveja.
De vez em quando, pintava uma dúvida cruel:
- Colega! Você acha que essa rocha é um xisto ou um gnaisse? Perguntava, exibindo a fotografia ao violonista que, então, em nome da ciência, interrompia a sessão Elvis Presley:
- Colega, nem um nem outro. Isso é um baita calcário negro. Veja, tem até estromatólitos... E caiam na risada, retomando o pagode.

“It’s now or never, come hold me tight, kiss me my darling, be mine tonight...”

E assim, passavam os dias em pândega e esbórnia, até domingo. Na segunda, pra descansar do batidão desde quinta, se mandavam pro campo, escolhiam uma margem de córrego bem tranqüila, e ali se recuperavam do desgaste, tendo o cuidado de descrever, da mesma forma, os pontos do dia. Na terça e na quarta, faziam um perfil normal e na quinta começava tudo de novo. Daí, deu no que deu.
Ante a força dos fatos, não restou saída aos dois boêmios, senão pedir demissão. Não me consta que tenham seguido juntos, outros destinos. Até onde sei, cada um tomou seu rumo.
Um detalhe final interessante desse causo é que uma das “amigas” da dupla, em conversa reveladora com o chefe do projeto, saiu-se com essa:
- Uma vez, perguntei a Fulano pra que ele ficava rodando por aí, no meio do mato, com aquelas fotografias, ele me respondeu que estava pra estourar a 3ª Guerra Mundial e que aquela região do Planalto Central tinha sido escolhida para a construção de abrigo subterrâneo para o Presidente da República.
Ante a cara de incredulidade do chefe do projeto, acrescentou:
- Tem mais doutor. Disse que estavam em missão super secreta, disfarçados de geólogos, e que a equipe do Presidente iria precisar de um time de garotas para quebrar o tédio da vida subterrânea, o senhor entende? E disse que uma das missões deles era justamente já ir cadastrando as garotas, para evitar tumulto de última hora...
Não se preocupem os amantes das verdades geológicas. Um mutirão foi providenciado e rapidamente a geologia da área foi refeita, sem grandes prejuízos aos trabalhos.
Três anos após, um colega me disse que estava abastecendo o carro em um posto, nas proximidades da cidade aqui tratada, quando uma jovem, reconhecendo a logomarca na porta do jipe, interpelou-o com a seguinte indagação:
- O Senhor pode me informar se ainda estão cadastrando garotas para a boate subterrânea que o governo vai abrir aqui na região?
O colega fitou a garota, profundamente, em seus olhos castanhos borrados de sombra barata e sacou todo seu repertório de latim, enquanto meditava na pequenez da alma humana:
- Data venia, minha querida, quo vadis? Dura lex sed lex! Verbi gratia.
- O que? Dar de graça?! Nem morta!
O colega, agora, em espanhol, divertindo-se:
- Sangre de la madre de Diós!!!
A garota o mirou, espantada e saiu resmungando:
- Vixi Maria! Será que a guerra já começou?!
Na minha terra há um antigo ditado que diz “dá-se o causo e depois acontece”. Pois é. Dito e feito.

domingo, setembro 09, 2007

Lição do capacete

O futebol no final da tarde era sagrado. Fosse o dia de trabalho pesado como fosse, nada impedia a turma de chegar das picadas ou da sonda, trocar de roupa e bater um “baba” no campo de terra do acampamento do projeto Palmeirópolis. Alguns, como o Brucutu, nem trocavam de roupa. Entravam no campo com o mesmo traje do trabalho, de bota e tudo.
Eu, às vezes jogava, às vezes não, dependendo do dia de trabalho, do que ainda tinha pra fazer à noite e dos jogadores em campo. Tinha medo de me contundir. Era divertidíssimo ficar vendo a pelada, principalmente quando Brucutu estava em campo. Ele era baixinho, magricela, as pernas tortas... Ruim de bola que dava gosto! Parecia o Visconde de Sabugosa negro. Ficava correndo pra lá e pra cá, mas ninguém lhe passava a bola. Ele não reclamava, mas quando acontecia da redondinha sobrar na sua frente, ele não queria nem saber pra que lado jogava. Do jeito que desse, metia o pé na bola, com suas botinas grossas, de couro, e saia pulando e gritando, feito cabrito, como se tivesse feito um gol. Na maioria das vezes, jogava contra o patrimônio ou mandava a bola pros quintos dos infernos, cerrado a fora. Todos caiam na risada e era aquela festa. Uns corriam e davam tapinhas nas costas do craque, parabenizando. Maior barato!
Dia desses, após assistir mais uma inesquecível performance do Brucutu, regressava ao meu barraco, mas, a meio caminho, resolvi tomar um café na cozinha e, nesse trajeto, tinha de passar em frente ao barraco dos sondadores. Pois é... Quando passava exatamente pela porta do barraco, um barulho me atraiu a atenção e me virei pra ver do que se tratava. E foi aí que dei o maior flagra.
Marcelino* era um ajudante de sondagem introspectivo, tímido, daqueles que só falam quando instado. Retraído e caladão, jamais o supus capaz de alguma rebeldia. Mas, para minha surpresa, foi o exatamente o que flagrei, com esses olhos que a terra há de comer. Por conta de outros problemas, ele estava “virado no diabo” com sua chefia da sondagem e por isso resolvera descontar no capacete. Isso mesmo, no capacete, instrumento de trabalho destinado a proteger a cabeça contra contusões físicas, transformado pelo sondador revoltado, em sparring de suas decepções morais.
Ele não me viu, mas seus colegas viram, porém não puderam avisá-lo a tempo. Assisti de camarote, ao Marcelino tirar o capacete e vociferar:
- Aquele porra me paga! Aquele fdp!
E assim dizendo, jogou o capacete no chão com tanta força que o equipamento de proteção rebateu no teto, antes de cair de novo, com uma rachadura na carcaça.
Meninos, eu vi. E fiquei parado e mudo. Não disse absolutamente nada. Ante os olhares e risinhos dos companheiros, ele se virou e me viu. Lívido, quis balbuciar alguma coisa, mas sua timidez prevaleceu, deixando fluir apenas um esboço de riso, quase um pedido de desculpas entre os lábios. Olhamo-nos por uns breves segundos, sem palavras, e eu me retirei para o pretendido cafezinho.
Como todos sabiam que eu não tolerava impunidade, e naquele momento substituía o chefe do projeto, sendo, portanto autoridade máxima no acampamento, era evidente que alguma atitude eu teria de tomar. Durante o cafezinho, ponderei que teria de levar em conta dois fatores, na minha decisão. Primeiro, que o Marcelino, até então, era exemplo de comportamento, sem nenhum antecedente desabonador, ele que já era um funcionário antigo na Casa. E segundo, que eu presenciara uma falta grave e alguma punição ele deveria sofrer, sob pena de desgaste para minha imagem de chefe isento, adquirida ao longo dos anos.
Por volta das 18h30, quando todos os sondadores estavam em volta da mesa do jantar da cozinha, mandei um emissário anunciar, no refeitório, pra que todos ouvissem:
- Marcelino! Doutor Reginaldo pede que você passe no escritório, após o jantar.
Era a senha. A turma sabia que não haveria impunidade. Marcelino ia dançar.
Ás 19h00, Marcelino entra cabisbaixo, no escritório. Boné nas mãos e um riso acanhado nos lábios.
- Boa noite Marcelino, tudo bem?
- Tudo bem, doutor.
Procurei deixá-lo à vontade.
- A família vai bem? Seus filhos?
- Faz tempo que não vejo, mas vai bem...
Até então, em nenhum momento ele me olhara nos olhos.
- Marcelino! Como o conheço de muito tempo e sei que você é uma pessoa muito equilibrada, gostaria de uma opinião sua sobre um pequeno problema, pode ser?
- Claro, doutor! Às suas ordens.
Pela primeira vez, nossos olhares se cruzaram.
- É o seguinte: O que você faria, se estivesse na chefia do acampamento, e visse um subordinado seu destruindo, de propósito, um equipamento de trabalho, que você lhe dera para conservação e guarda?
Ele sentiu o golpe no fígado. Empalideceu e respondeu, depois de um pigarro e um risinho amarelo:
- É doutor... O sujeito merecia uma punição, né? Pelo menos pagar o capacete...
Entregou o ouro, porque eu nem tinha falado em capacete.
Aí então falei bem complacente, forçando-o a me encarar:
- Me esclareça uma coisa, Marcelino. Por que você fez aquilo?
Senti que ele recobrou a cor. Parece que aguardava, exatamente, essa chance.
- Doutor, na verdade eu sei que errei e o Senhor tem toda razão de me dar uma punição. Mas eu estava com muita raiva de Fulano de Tal (o nome não vem ao caso). Veja o Senhor....
E me contou um episódio tão revoltante de humilhação, que ele sofrera na sonda, diante de todos, vinda de seu chefe de turno, que sua revolta se transferiu para mim. Propus-lhe levar o caso adiante, pra que eu interpelasse o Fulano, mas ele me pediu pelo amor de Deus pra não fazer isso.
Disse-lhe que se considerasse advertido verbalmente e dei-lhe algumas orientações específicas sobre o episódio que o revoltara.
No outro dia, não me contive. Chamei o tal Fulano pra uma conversa logo cedo e lhe apliquei uma advertência por escrito, segundo as normas do acampamento, com o seguinte arremate:
- Essa advertência é confidencial. Se alguém no acampamento vier a saber, será por sua boca e, nesse caso, solicitarei uma suspensão para o Senhor.
Devidamente advertido, o Fulano se mandou para a estação de sondagem, que o sol já ia alto. E eu me quedei a pensar se agira certo ou errado. E o dia voou.
Naquela tarde, enquanto assistíamos às “brucutuzadas”, o Marcelino me confidenciou, um tanto encabulado:
- Doutor, não sei o que houve, mas hoje o Fulano me chamou e me pediu desculpas, diante de todos, Fiquei até emocionado.
- É Marcelino... As pessoas às vezes refletem e reconhecem seus erros. Pedir desculpas é sempre uma coisa nobre.
Seu semblante desanuviado me deu a certeza de que agira certo.
Nesse exato momento a bola quicou, redondinha diante de Brucutu, pedindo para ser chutada. Feliz da vida, ele comemorou antecipadamente o bicão que ia dar:
- Sai pra lá, nojenta!
E deu um pontapé tão violento na redonda, que a pobre foi cair quase cem metros adiante, no leito do córrego do Cunha, para delírio da torcida.
Depois, pude tomar meu cafezinho sem sobressaltos e com a agradável sensação do dever cumprido. E a vida no acampamento retomou seu ritmo normal.
...................................................................................
* Nome fictício

terça-feira, setembro 04, 2007

Janela para a vida

Inda me lembro bem o dia,
Era uma segunda-feira de meu Deus.
Da janela do hospital, senti o pulsar da vida lá fora,
A passar, singelamente, pelas calçadas.

Vi a luta impressionante do velho e sua bengala.
Só. Lentamente. Tropegamente.
A percorrer 50 metros de banho de sol.
Parando ofegante, olhando o infinito...
E prosseguindo.
Quanta fibra! Quanto fiapo de vida valorizado!
Mas vi, sobretudo, no olhar do bom velhinho,
O prazer de um passeio sob o sol,
E quase ouvi a lição de suas veneráveis mechas brancas:
De que a vida pede pouco,
Deus oferece muito
E que o sol está aí, pra banhar a todos.

Vi a moça muito branca, colo à mostra, pernas de louça,
A se abanar e se apressar para o lado da sombra.
Seus passos rápidos traíam a ânsia de um encontro importante...
Um novo trabalho? Namorado? Uma consulta?
Quem há de saber?!
Mas vi latente em sua ansiedade, a esperança.
Desapareceu sob a marquise do prédio,
Deixando um rastro de vida a pulsar
E quase pude ouvir a lição de seu rosto afogueado:
De que o dia convida à luta,
E que a esperança é filha do esforço,
E que os dias são todos iguais,
Despertadores divinos que não nos custam nada.

Vi a babá dedicada e seus dois diabinhos loiros,
Gêmeos, sem dúvida, a traquinar no gramado,
Em luta de vida ou morte por um copo plástico.
Testemunhei a amargura dos pestinhas,
Quando o objeto da disputa caiu no canteiro cercado.
Acompanhei seus dez segundos de decepção,
Antes que um vira-lata transeunte lhes recordasse que a vida continua.
Vi o sorriso complacente da babá e seus cuidados
Com a hora, a água, o lanche, a rua...
Quase ouvi a lição daquele trivial conluio amoroso:
Que a vida é simples;
Que os valores das coisas não são intrínsecos,
Somos nós que as valorizamos;
E que há sempre portas abertas em nossa volta,
Mas precisamos ter olhos de vê-las.

Vi mais, muito mais, naquela segunda-feira de meu Deus.
Vi homens suarentos, apressados;
Senhoras tranqüilas, com seus cães;
Jovens barulhentos, em bandos despreocupados;
Um pregador solitário, sem platéia;
Um vendedor de churros, um engraxate...
E quase ouvi a lição do burburinho das gentes a passar:
Cada um tem uma história a escrever
E todos querem produzir um final feliz;
E por isso lutam e correm e sofrem e riem
E é justamente nesse afã que a vida pulsa;
E é esse pulsar da vida que arrebata.

Enfermeiras me chamam de volta ao leito,
Para o soro, o remédio, o sangue, a sonda...
E em breve o silêncio do quarto me assombra.
E me pego a refletir as lições da janela.
Venda a faina das pobres que socorrem,
Trocam curativos, limpam, alimentam,
Brincam, brigam, reanimam...
E quase ouvi a lição das vidas que cuidam de outras vidas:
De que a teia do destino é muito frágil,
E no choro de dor dos que sofrem
E no choro de amor dos que amparam,
Nessa mescla de luta conjunta,
Nesse plasma de lágrimas santas,
Deus nos mostra a lição das lições:
De que uns precisamos dos outros.
E é nesse enlace de doação e esperança
Que a vida pulsa, mais forte e mais viva,
Ao influxo potente do Amor.
....................................................................................
Bsb, agosto de 2007

segunda-feira, setembro 03, 2007

Ninha e as "libera"

No nordeste de Goiás, em sua configuração antiga, entre as cidades de Natividade e Dianópolis, havia um povoado quase fantasma, aglomerado de velhas construções de adobe, sem reboco, caindo aos pedaços, com o sugestivo nome de Almas. Foi o que restara de antigo Quilombo, diziam, erguido ao redor do cemitério, daí o nome. De fato, a população local era 99% de negros, salvo raros sararás de cabelos feito piaçava.
Bem, o amigo ou amiga faça idéia do que era essa região em 1976. Um bando de homens indolentes - jovens e velhos - o dia inteiro a jogar dominó, damas e truco, sob imensas mangueiras no pátio da velha capela em ruínas. A intervalos regulares, circulava a indefectível garrafa de cachaça, a pinga da terra, como eles orgulhosamente a apresentavam. As mulheres, em geral gordas e roliças, levavam a lavar roupas no rio, às margens da comunidade, em grande algazarra e cantorias esquisitas, também sob o embalo discreto da aguardente que mantinham dentro das imensas trouxas. Era comum vê-las, ao final dos trabalhos, banharem-se nuas, sem a menor preocupação com eventuais voyeurs. Enquanto isso, os meninos, seminus, jogavam bola (bexigas de gado) na praça de terra, enquanto as meninas, aos bandos, se divertiam nos calçadões das casas e as moças namoradeiras se punham nas janelas, sonhadoras, à espera do príncipe encantado.
No único comércio do local, o velho Nestor, um negro alto e magro, de idade indefinida e fala mansa, vendia desde fumo de rolo a calça curinga; de cibalena a platinado de fusca; de enxada e enxó a goiabada e sardinha em lata. Enfim, ali o povoado se abastecia do necessário e do supérfluo. Atrás do balcão encardido de madeira, o comerciante passava a maior parte do tempo numa velha rede, quase rente ao chão, abanando, com o caderno de fiados, as moscas que insistiam em pousar em seu rosto suarento.
Pois bem, recebi a incumbência de fazer follow up em uma área, a cerca de 20 km de Almas, sertão a dentro, por caminhos onde, antes, só passara carros de bois e animais de carga e montaria. Contratei alguns braçais no povoado, fiz compras e abri conta em seu Nestor e caímos no mato. Levamos dois dias pra atingir o centro das áreas, tendo de improvisar pontes e abrir estradas, nos trechos mais ínvios. Mas, enfim, nos instalamos numa campina aplainada, ao lado de um córrego de águas límpidas. Seis barracas de lona, cozinha de palha, escritório sob lona e um sanitário sobre fossa séptica. Duas rurais Willys e uma picape F-100. À nossa disposição, cajuís, pequis e mangabas à mancheia. Um pequeno Éden.
E os dias correram, sem maiores contratempos, fora aqueles normais do tipo de atividade que fazíamos. Certo sábado, já cerca de um mês de acampado, precisei ir até Almas levar um peão que pedira demissão, aproveitando para repor a equipe e o estoque de víveres. Dormi no povoado, ao lado da igreja, dentro da picape e no domingo cedinho, com o novo peão e um técnico que tinha ido junto, bati em retirada, após dar um "tapa no beiço" lá em seu Nestor, que ninguém é de ferro. Era meado de setembro e à noite caíra uma chuva forte, chamada pelos locais de "chuva dos cajus". O dia amanhecera fechado, prenunciando início de inverno. Impressionou-me observar que as grotas secas por onde passara na véspera, levantando poeira, agora eram cursos d'água, alguns caudalosos, exigindo grande perícia do condutor, para não ficarmos presos nos leitos arenosos. E o dia foi fechando cada vez mais. Ao meio-dia, tínhamos a impressão de que já eram 18 horas, tal a escuridão. Às 13 horas, as nuvens de chumbo por fim se derreteram e toda a água do universo deu de cair ali, naquele pedaço de sertão de meu Deus. Avançávamos muito lentamente pelos riscos de estrada, que agora eram leitos aquosos, cheios de armadilhas.
Eu já sabia que teria de pernoitar na estrada, mas nunca da maneira como se deu. Mais ou menos 15 horas, chegamos ao barranco de um verdadeiro rio, inexistente no dia anterior. Se eu tivesse tido a sagacidade de bater fotos para ilustrar o antes e do depois, o amigo ou amiga diria que era montagem. De sã consciência, ninguém poderia admitir o surgimento de um rio, de um dia para o outro, com uma simples noite de chuva. Mas o fato estava ali, diante de nós, a exigir decisão: arriscamos atravessar, ou não? Reinaldo, o técnico que estava comigo, entrou no córrego, com uma vara na mão, explorou todo o leito e voltou com uma avaliação:
- Temos de fazer um "Z". Entramos aqui, contra a correnteza, até o meio do leito. Ali, descemos a favor da corrente até onde o Lico (o peão) vai ficar de pé, sinalizando. Naquele ponto, temos de dar uma guinada pra cima e sair, onde o leito é mais pedregoso. Mas dá pra atravessar tranquilo, bobo, disse ele, com seu sotaque mineiro.
O detalhe é que o Reinaldo tinha 1,75 m de altura e a água, no centro do canal, chegava acima de sua cintura. Negligenciei essa observação e isso me foi fatal.
A decisão cabia a mim e eu, normalmente muito ponderado e cauteloso, abdiquei de minha natureza e segui o impulso do técnico açodado. É evidente que a prudência recomendava pernoitar ali, já que, mesmo atravessando com sucesso, iríamos ter de dormir na estrada, de qualquer forma, só um pouco mais adiante.
- Vamos lá! Disse eu, você dirige então...
Reinaldo topou, entusiasmado. Eu fiquei na margem, torcendo pra tudo dar certo e o Lico, coitado, ficou no local onde o Reinaldo indicou, para sinalizar o ponto exato da inflexão para a esquerda.
Quando o carro percorreu meros três metros, contra corrente, vi o erro que cometera, mas aí já nada mais podia ser feito. Muito antes do Reinaldo atingir o meio, conforme planejado, a força da correnteza embicou a picape para jusante, deixando-a sem freios e completamente fora de controle do condutor, descendo quase a flutuar. E o pior é que a água inundou a cabine, o motor apagou e o Reinaldo teve de abandonar o veículo, pelo espaço do vidro da porta, no maior sufoco, já que não conseguia abri-la, em função da pressa e da pressão da água. Por muito pouco, o Lico não ficou sob o veículo, em sua desesperada tentativa de contê-lo com as mãos. E o carro descendo, como se fora uma tora de pau, desgovernado. Cerca de 10 metros adiante, graças a uma árvore caída, num estreitamento do canal, a picape se enganchou e parou, adernada perigosamente.
E agora? Ao relento, já praticamente noite fechada, sob chuva incessante e sem nada para nos proteger. Que merda eu tinha feito!
Com muito cuidado descemos até o carro, pelas margens e resgatamos algumas mochilas, com pacotes de bolacha, enlatados, lanternas e, naturalmente, a pinga da terra, para o frio da noite encharcada. Utilizando cordas, prendemos o carro em árvores, dos dois lados, para prevenir novo arrasto e nos batemos a pé, em busca de lugar para pouso. O mundo virou um breu e a chuva não dava tréguas, vez por outra acompanhada por trovões e relâmpagos. Se não fosse a pinga da terra, não teríamos agüentado andar na escuridão, na chuva e no frio. Um pouco mais de 21 horas, ouvimos latidos de cachorro e aquilo soou como benção de Deus aos nossos ouvidos, pois indicava morador por perto. De fato, mais adiante nossas lanternas apontaram a silhueta de um rancho de palha, dentro de uma mandiocal, 10 metros afastado da estrada. Não havia saída. Era acorrer pra lá e pedir pouso ao morador, pelo menos pra secar os corpos, até o socorro que certamente viria no dia seguinte, quando o pessoal do acampamento desse por nossa demora.
Ao nos aproximar, o vira-lata se mandou, mato a dentro. Antes mesmo de batermos palmas, uma voz gritou, ainda no escuro:
- Quem é oceis? O que oceis quer?
Com muito cuidado, medindo as palavras, nos apresentamos, relatamos o ocorrido e pedimos guarida por uma noite.
Após breve silêncio, um candeeiro se acendeu e uma figura idêntica à dos pretos velhos se nos apresentou, nu da cintura pra cima, um cigarro imenso na boca, nos acolhendo com a maior hospitalidade. Somente ao entrar, avaliamos a extensão da pobreza que nos abrigava. Um vão, de não mais que nove metros quadrados, paredes e teto de palha, no qual havia um catre, quase rente ao chão; uma espingarda enfiada nas palhas, ao alcance da mão, sobre o catre; uma trempe de pedra, certamente o fogão do morador; uns trapos numa espécie de varal de cipó; umas latas de querosene, que deveriam conter os estoques de comida; um pote de barro sobre forquilhas toscas e uns tocos, que serviam de cadeira e mesa, além de terçados, enxadas e outras ferramentas espalhadas no chão batido.
Quase se desculpando, o velho nos informou que aquele rancho era temporário, somente para a colheita da mandioca e por isso, não tinha nenhum conforto. Ofereceu-se para cozinhar umas mandiocas novinhas, tudo o que dispunha naquele momento. No dia seguinte provaríamos de seu feijãozinho. Claro que recusamos. Tudo que queríamos era nos secar e descansar, mesmo que sentados no chão.
Ficamos todos de cuecas, tremendo de frio e estendemos as roupas no cipó-varal, enquanto o bondoso anfitrião sacou de sob seu catre duas redes imundas e mal-cheirosas, que lhe serviam de colchão e nos ofertou. Apenas um dormiria no chão. Sobrou pro Lico, sem nenhuma disputa. Mas tivemos de tomar várias doses pra enfrentar as redes e o frio. E quando já nos ajeitávamos, para o merecido repouso, o velho nos alertou:
- Quando apagar a luz, oceis não liga pro baruinho nas paias, não, viu? É as libera... Faiz um baruinho esquisito nas paias quando fica escuro.
Libera??? Que diabo seria? Imaginei ser uma corruptela de libélula e, sem maiores temores, me preparei para o sono dos justos. Mas, antes de assoprar o pavio do candeeiro, uma última perguntinha do anfitrião:
- Oceis viu a Ninha?
-Ninha??? Perguntamos a uma só voz.
-Óia! Bota a lanterna doceis na cumieira que oceis vai ver ela, mas não carece ter medo, não, sô. É mansinha que faiz dó! É minha companheira, hahahaha!
Deu uma risada que era, ao mesmo tempo, uma satisfação e um antegozo da nossa reação.
Quando nossas lanternas focaram aquela jibóia imensa, quase da grossura do caibro da cumeeira, 1,50 m de comprimento, instintivamente nos pusemos de pé, como se fôssemos iniciar uma carreira, porta a fora. O velho ria de dobrar a risada, tentando nos acalmar, explicando que Ninha já morava ali, quando ele chegara e que só fazia se alimentar das libera e não mexia com ninguém. Durante o dia sumia e só voltava à noite. Mas não teve jeito. Diante da nossa súplica, ele puxou Ninha de lá de cima, com a enxada, e a arrastou para fora de casa, sem nenhuma resistência da coitada, mas prevendo que ela certamente voltaria. De qualquer forma, tomamos mais uma e, agora sim, o candeeiro foi apagado.
Menos de cinco minutos, após, conforme previra o velho, começou um zum zum nas palhas. Era um barulho incessante, a indicar que algo muito pequeno se movia, provocando o ruído das palhas secas. Tão intrigante era o chiado que não resisti. De lanterna em punho, fucei até conseguir ver a famosa libera. Me arrepiei todo, pois me lembrei da minha mãe botando fogo nos colchões, quando aprecia apenas uma libera. Imagine aquele exército! Na verdade, eram percevejos, um inseto negro, de pinça afiada, cerca de meio centímetro de comprimento, roliço, tipo um mini-besouro. Só que é um transmissor de doenças e uma praga de difícil extermínio. Dá muito em colchões artesanais, do interior, preenchidos com paina ou macela.
Resultado: não consegui engatar um sono profundo, nem a custa de mais umas lapadas de pinga. A qualquer barulhinho, acendia a lanterna, pois não sabia se era um percevejo ou Ninha revoltada, querendo vingança. E ainda tinha o frio. Enfim, foi uma noite dos diabos, digna do dia de sobressaltos e surpresas.
Muito antes de clarear, já o bondoso anfitrião acendeu a trempe e botou a cozinhar seu feijãozinho com mandioca, criando um calor e um cheirinho delicioso no barraco. Aí fomos nos dar conta da fome que tínhamos. Rapidamente, levamos nossas roupas para perto do fogo, para acabar de secar e, por volta das seis horas, nos empanturramos de feijão com torresmo e mandioca, acrescentando ainda as bolachas que levávamos e umas latas de sardinha. Enfim, um verdadeiro banquete, saboreado diretamente nas panelas e frigideiras, e usando colheres de pau como talher. E devo dizer que foi um desjejum inesquecível.
Como a chuva amainou, mas não parou, ali ficamos até que por volta do meio-dia, chegou o Antonio, outro técnico, com uma Rural repleta de provisões, roupas e ferramentas, para o devido socorro.
Levamos mais três dias para retirar o carro e rebocá-lo até Almas. Depois, mais um dia para ir a Dianópolis trazer um mecânico com reboque profissional. Somente após 15 dias é que a picape adquiriu condições de uso.
Não me lembro mais o nome do bondoso preto velho que dividiu conosco sua pobreza. Sei que guardo para sempre sua lição de hospitalidade. Ao voltar para o acampamento, deixei com ele algo como uma cesta básica, que comprara em Almas. Fazia gosto ver o brilho de seus olhos, ante tanta fartura. Quando, por fim, terminamos os trabalhos, o rancho estava abandonado. O velho já se tinha mudado para outra roça. Certamente, Ninha agora fazia a festa, sem visitantes incômodos. Não quisemos pagar pra ver
Já pendurei o martelo, hoje sou burocrata. Mas esse contato direto com o Brasil desconhecido das estatísticas me amadureceu cedo, me fez mais gente e, certamente, muito mais brasileiro. É o lado humano da profissão. Isso para mim, não foi sofrimento. Foi experiência, que me mata de saudade e que repetiria com prazer, se a roda do tempo pudesse girar para trás.