O futebol no final da tarde era sagrado. Fosse o dia de trabalho pesado como fosse, nada impedia a turma de chegar das picadas ou da sonda, trocar de roupa e bater um “baba” no campo de terra do acampamento do projeto Palmeirópolis. Alguns, como o Brucutu, nem trocavam de roupa. Entravam no campo com o mesmo traje do trabalho, de bota e tudo.
Eu, às vezes jogava, às vezes não, dependendo do dia de trabalho, do que ainda tinha pra fazer à noite e dos jogadores em campo. Tinha medo de me contundir. Era divertidíssimo ficar vendo a pelada, principalmente quando Brucutu estava em campo. Ele era baixinho, magricela, as pernas tortas... Ruim de bola que dava gosto! Parecia o Visconde de Sabugosa negro. Ficava correndo pra lá e pra cá, mas ninguém lhe passava a bola. Ele não reclamava, mas quando acontecia da redondinha sobrar na sua frente, ele não queria nem saber pra que lado jogava. Do jeito que desse, metia o pé na bola, com suas botinas grossas, de couro, e saia pulando e gritando, feito cabrito, como se tivesse feito um gol. Na maioria das vezes, jogava contra o patrimônio ou mandava a bola pros quintos dos infernos, cerrado a fora. Todos caiam na risada e era aquela festa. Uns corriam e davam tapinhas nas costas do craque, parabenizando. Maior barato!
Dia desses, após assistir mais uma inesquecível performance do Brucutu, regressava ao meu barraco, mas, a meio caminho, resolvi tomar um café na cozinha e, nesse trajeto, tinha de passar em frente ao barraco dos sondadores. Pois é... Quando passava exatamente pela porta do barraco, um barulho me atraiu a atenção e me virei pra ver do que se tratava. E foi aí que dei o maior flagra.
Marcelino* era um ajudante de sondagem introspectivo, tímido, daqueles que só falam quando instado. Retraído e caladão, jamais o supus capaz de alguma rebeldia. Mas, para minha surpresa, foi o exatamente o que flagrei, com esses olhos que a terra há de comer. Por conta de outros problemas, ele estava “virado no diabo” com sua chefia da sondagem e por isso resolvera descontar no capacete. Isso mesmo, no capacete, instrumento de trabalho destinado a proteger a cabeça contra contusões físicas, transformado pelo sondador revoltado, em sparring de suas decepções morais.
Ele não me viu, mas seus colegas viram, porém não puderam avisá-lo a tempo. Assisti de camarote, ao Marcelino tirar o capacete e vociferar:
- Aquele porra me paga! Aquele fdp!
E assim dizendo, jogou o capacete no chão com tanta força que o equipamento de proteção rebateu no teto, antes de cair de novo, com uma rachadura na carcaça.
Meninos, eu vi. E fiquei parado e mudo. Não disse absolutamente nada. Ante os olhares e risinhos dos companheiros, ele se virou e me viu. Lívido, quis balbuciar alguma coisa, mas sua timidez prevaleceu, deixando fluir apenas um esboço de riso, quase um pedido de desculpas entre os lábios. Olhamo-nos por uns breves segundos, sem palavras, e eu me retirei para o pretendido cafezinho.
Como todos sabiam que eu não tolerava impunidade, e naquele momento substituía o chefe do projeto, sendo, portanto autoridade máxima no acampamento, era evidente que alguma atitude eu teria de tomar. Durante o cafezinho, ponderei que teria de levar em conta dois fatores, na minha decisão. Primeiro, que o Marcelino, até então, era exemplo de comportamento, sem nenhum antecedente desabonador, ele que já era um funcionário antigo na Casa. E segundo, que eu presenciara uma falta grave e alguma punição ele deveria sofrer, sob pena de desgaste para minha imagem de chefe isento, adquirida ao longo dos anos.
Por volta das 18h30, quando todos os sondadores estavam em volta da mesa do jantar da cozinha, mandei um emissário anunciar, no refeitório, pra que todos ouvissem:
- Marcelino! Doutor Reginaldo pede que você passe no escritório, após o jantar.
Era a senha. A turma sabia que não haveria impunidade. Marcelino ia dançar.
Ás 19h00, Marcelino entra cabisbaixo, no escritório. Boné nas mãos e um riso acanhado nos lábios.
- Boa noite Marcelino, tudo bem?
- Tudo bem, doutor.
Procurei deixá-lo à vontade.
- A família vai bem? Seus filhos?
- Faz tempo que não vejo, mas vai bem...
Até então, em nenhum momento ele me olhara nos olhos.
- Marcelino! Como o conheço de muito tempo e sei que você é uma pessoa muito equilibrada, gostaria de uma opinião sua sobre um pequeno problema, pode ser?
- Claro, doutor! Às suas ordens.
Pela primeira vez, nossos olhares se cruzaram.
- É o seguinte: O que você faria, se estivesse na chefia do acampamento, e visse um subordinado seu destruindo, de propósito, um equipamento de trabalho, que você lhe dera para conservação e guarda?
Ele sentiu o golpe no fígado. Empalideceu e respondeu, depois de um pigarro e um risinho amarelo:
- É doutor... O sujeito merecia uma punição, né? Pelo menos pagar o capacete...
Entregou o ouro, porque eu nem tinha falado em capacete.
Aí então falei bem complacente, forçando-o a me encarar:
- Me esclareça uma coisa, Marcelino. Por que você fez aquilo?
Senti que ele recobrou a cor. Parece que aguardava, exatamente, essa chance.
- Doutor, na verdade eu sei que errei e o Senhor tem toda razão de me dar uma punição. Mas eu estava com muita raiva de Fulano de Tal (o nome não vem ao caso). Veja o Senhor....
E me contou um episódio tão revoltante de humilhação, que ele sofrera na sonda, diante de todos, vinda de seu chefe de turno, que sua revolta se transferiu para mim. Propus-lhe levar o caso adiante, pra que eu interpelasse o Fulano, mas ele me pediu pelo amor de Deus pra não fazer isso.
Disse-lhe que se considerasse advertido verbalmente e dei-lhe algumas orientações específicas sobre o episódio que o revoltara.
No outro dia, não me contive. Chamei o tal Fulano pra uma conversa logo cedo e lhe apliquei uma advertência por escrito, segundo as normas do acampamento, com o seguinte arremate:
- Essa advertência é confidencial. Se alguém no acampamento vier a saber, será por sua boca e, nesse caso, solicitarei uma suspensão para o Senhor.
Devidamente advertido, o Fulano se mandou para a estação de sondagem, que o sol já ia alto. E eu me quedei a pensar se agira certo ou errado. E o dia voou.
Naquela tarde, enquanto assistíamos às “brucutuzadas”, o Marcelino me confidenciou, um tanto encabulado:
- Doutor, não sei o que houve, mas hoje o Fulano me chamou e me pediu desculpas, diante de todos, Fiquei até emocionado.
- É Marcelino... As pessoas às vezes refletem e reconhecem seus erros. Pedir desculpas é sempre uma coisa nobre.
Seu semblante desanuviado me deu a certeza de que agira certo.
Nesse exato momento a bola quicou, redondinha diante de Brucutu, pedindo para ser chutada. Feliz da vida, ele comemorou antecipadamente o bicão que ia dar:
- Sai pra lá, nojenta!
E deu um pontapé tão violento na redonda, que a pobre foi cair quase cem metros adiante, no leito do córrego do Cunha, para delírio da torcida.
Depois, pude tomar meu cafezinho sem sobressaltos e com a agradável sensação do dever cumprido. E a vida no acampamento retomou seu ritmo normal.
...................................................................................
* Nome fictício
Eu, às vezes jogava, às vezes não, dependendo do dia de trabalho, do que ainda tinha pra fazer à noite e dos jogadores em campo. Tinha medo de me contundir. Era divertidíssimo ficar vendo a pelada, principalmente quando Brucutu estava em campo. Ele era baixinho, magricela, as pernas tortas... Ruim de bola que dava gosto! Parecia o Visconde de Sabugosa negro. Ficava correndo pra lá e pra cá, mas ninguém lhe passava a bola. Ele não reclamava, mas quando acontecia da redondinha sobrar na sua frente, ele não queria nem saber pra que lado jogava. Do jeito que desse, metia o pé na bola, com suas botinas grossas, de couro, e saia pulando e gritando, feito cabrito, como se tivesse feito um gol. Na maioria das vezes, jogava contra o patrimônio ou mandava a bola pros quintos dos infernos, cerrado a fora. Todos caiam na risada e era aquela festa. Uns corriam e davam tapinhas nas costas do craque, parabenizando. Maior barato!
Dia desses, após assistir mais uma inesquecível performance do Brucutu, regressava ao meu barraco, mas, a meio caminho, resolvi tomar um café na cozinha e, nesse trajeto, tinha de passar em frente ao barraco dos sondadores. Pois é... Quando passava exatamente pela porta do barraco, um barulho me atraiu a atenção e me virei pra ver do que se tratava. E foi aí que dei o maior flagra.
Marcelino* era um ajudante de sondagem introspectivo, tímido, daqueles que só falam quando instado. Retraído e caladão, jamais o supus capaz de alguma rebeldia. Mas, para minha surpresa, foi o exatamente o que flagrei, com esses olhos que a terra há de comer. Por conta de outros problemas, ele estava “virado no diabo” com sua chefia da sondagem e por isso resolvera descontar no capacete. Isso mesmo, no capacete, instrumento de trabalho destinado a proteger a cabeça contra contusões físicas, transformado pelo sondador revoltado, em sparring de suas decepções morais.
Ele não me viu, mas seus colegas viram, porém não puderam avisá-lo a tempo. Assisti de camarote, ao Marcelino tirar o capacete e vociferar:
- Aquele porra me paga! Aquele fdp!
E assim dizendo, jogou o capacete no chão com tanta força que o equipamento de proteção rebateu no teto, antes de cair de novo, com uma rachadura na carcaça.
Meninos, eu vi. E fiquei parado e mudo. Não disse absolutamente nada. Ante os olhares e risinhos dos companheiros, ele se virou e me viu. Lívido, quis balbuciar alguma coisa, mas sua timidez prevaleceu, deixando fluir apenas um esboço de riso, quase um pedido de desculpas entre os lábios. Olhamo-nos por uns breves segundos, sem palavras, e eu me retirei para o pretendido cafezinho.
Como todos sabiam que eu não tolerava impunidade, e naquele momento substituía o chefe do projeto, sendo, portanto autoridade máxima no acampamento, era evidente que alguma atitude eu teria de tomar. Durante o cafezinho, ponderei que teria de levar em conta dois fatores, na minha decisão. Primeiro, que o Marcelino, até então, era exemplo de comportamento, sem nenhum antecedente desabonador, ele que já era um funcionário antigo na Casa. E segundo, que eu presenciara uma falta grave e alguma punição ele deveria sofrer, sob pena de desgaste para minha imagem de chefe isento, adquirida ao longo dos anos.
Por volta das 18h30, quando todos os sondadores estavam em volta da mesa do jantar da cozinha, mandei um emissário anunciar, no refeitório, pra que todos ouvissem:
- Marcelino! Doutor Reginaldo pede que você passe no escritório, após o jantar.
Era a senha. A turma sabia que não haveria impunidade. Marcelino ia dançar.
Ás 19h00, Marcelino entra cabisbaixo, no escritório. Boné nas mãos e um riso acanhado nos lábios.
- Boa noite Marcelino, tudo bem?
- Tudo bem, doutor.
Procurei deixá-lo à vontade.
- A família vai bem? Seus filhos?
- Faz tempo que não vejo, mas vai bem...
Até então, em nenhum momento ele me olhara nos olhos.
- Marcelino! Como o conheço de muito tempo e sei que você é uma pessoa muito equilibrada, gostaria de uma opinião sua sobre um pequeno problema, pode ser?
- Claro, doutor! Às suas ordens.
Pela primeira vez, nossos olhares se cruzaram.
- É o seguinte: O que você faria, se estivesse na chefia do acampamento, e visse um subordinado seu destruindo, de propósito, um equipamento de trabalho, que você lhe dera para conservação e guarda?
Ele sentiu o golpe no fígado. Empalideceu e respondeu, depois de um pigarro e um risinho amarelo:
- É doutor... O sujeito merecia uma punição, né? Pelo menos pagar o capacete...
Entregou o ouro, porque eu nem tinha falado em capacete.
Aí então falei bem complacente, forçando-o a me encarar:
- Me esclareça uma coisa, Marcelino. Por que você fez aquilo?
Senti que ele recobrou a cor. Parece que aguardava, exatamente, essa chance.
- Doutor, na verdade eu sei que errei e o Senhor tem toda razão de me dar uma punição. Mas eu estava com muita raiva de Fulano de Tal (o nome não vem ao caso). Veja o Senhor....
E me contou um episódio tão revoltante de humilhação, que ele sofrera na sonda, diante de todos, vinda de seu chefe de turno, que sua revolta se transferiu para mim. Propus-lhe levar o caso adiante, pra que eu interpelasse o Fulano, mas ele me pediu pelo amor de Deus pra não fazer isso.
Disse-lhe que se considerasse advertido verbalmente e dei-lhe algumas orientações específicas sobre o episódio que o revoltara.
No outro dia, não me contive. Chamei o tal Fulano pra uma conversa logo cedo e lhe apliquei uma advertência por escrito, segundo as normas do acampamento, com o seguinte arremate:
- Essa advertência é confidencial. Se alguém no acampamento vier a saber, será por sua boca e, nesse caso, solicitarei uma suspensão para o Senhor.
Devidamente advertido, o Fulano se mandou para a estação de sondagem, que o sol já ia alto. E eu me quedei a pensar se agira certo ou errado. E o dia voou.
Naquela tarde, enquanto assistíamos às “brucutuzadas”, o Marcelino me confidenciou, um tanto encabulado:
- Doutor, não sei o que houve, mas hoje o Fulano me chamou e me pediu desculpas, diante de todos, Fiquei até emocionado.
- É Marcelino... As pessoas às vezes refletem e reconhecem seus erros. Pedir desculpas é sempre uma coisa nobre.
Seu semblante desanuviado me deu a certeza de que agira certo.
Nesse exato momento a bola quicou, redondinha diante de Brucutu, pedindo para ser chutada. Feliz da vida, ele comemorou antecipadamente o bicão que ia dar:
- Sai pra lá, nojenta!
E deu um pontapé tão violento na redonda, que a pobre foi cair quase cem metros adiante, no leito do córrego do Cunha, para delírio da torcida.
Depois, pude tomar meu cafezinho sem sobressaltos e com a agradável sensação do dever cumprido. E a vida no acampamento retomou seu ritmo normal.
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* Nome fictício
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