Dia dos namorados.
O ano, se os neurônios não me traem, era 1983.
Fim de expediente, como todos os dias, dos namorados ou não, tinha reunião no Bar do Sujeirinha. Este que vos fala, Duque, Ivair, Adão, Brandão e Geovanni, todos nomes fictícios, claro. Talvez, pela relevância da data, levaram falta nessa noite, o Airton e o Waldir, o alfa e o ômega, como chamávamos os inseparáveis amigos. Em compensação, lá encontramos seu Zé Alves, que nos brindou com uma rodada por sua conta – uma branca e uma loira – para divulgar seu livro de poemas, cuja obra de abertura fez questão de recitar, subindo na cadeira.
O ano, se os neurônios não me traem, era 1983.
Fim de expediente, como todos os dias, dos namorados ou não, tinha reunião no Bar do Sujeirinha. Este que vos fala, Duque, Ivair, Adão, Brandão e Geovanni, todos nomes fictícios, claro. Talvez, pela relevância da data, levaram falta nessa noite, o Airton e o Waldir, o alfa e o ômega, como chamávamos os inseparáveis amigos. Em compensação, lá encontramos seu Zé Alves, que nos brindou com uma rodada por sua conta – uma branca e uma loira – para divulgar seu livro de poemas, cuja obra de abertura fez questão de recitar, subindo na cadeira.
Desgosto:
Uma ruga,
A procura de um rosto.
Declamou com tal sentimento, que todos viram as duas gotinhas que quase caem de seus olhos claros, não fosse nossa intervenção providencial, dando hurras e fazendo um brinde especial. Comprei logo um exemplar, que, confesso, nunca cheguei a ler. Nem me lembro se o levei para casa naquela noite. Mas nunca esqueci a poesia maravilhosa.
Como ia dizendo, era dia dos namorados. Naquela noite, evidentemente, nosso happy hour não poderia se estender como em noite comum. Afinal, nossas mulheres nos esperavam para o jantar especial que a data requeria. Conforme inconfidências mútuas, todos tinham programas agendados. Adão, inclusive, estava com um lindo arranjo de flores, com que pretendia surpreender sua querida Arlete. Para não desfigurar o arranjo, a esposa do Sujeirinha o acomodou sobre a Torre de Pisa, a geladeira inclinada, que gelava nossas cervas, tradição e patrimônio inalienável daquele boteco especial. Então, de comum acordo, estabelecemos que 19h00 seria nosso limite. Teríamos, assim, duas horas para nossa confraternização habitual, sem descurar da obrigação. Ok? Ok. Todos concordaram e as rodadas começaram a se suceder.
Exatamente no horário combinado, mandamos fechar a conta, seguida de uma saideira, claro. O bar já estava bem vazio e todos nos preparávamos para sair, quando o destino conspirou no sentido contrário. Já tínhamos tomado a saideira, quando chegou a família do poeta Zé Alves: dois filhos com as esposas e netos, uma filha solteira e um irmão, trazendo um violão a tiracolo. A emoção nos contagiou. Ele era viúvo e os filhos lhe prepararam essa surpresa. Além do mais, a filha solteira era um pedaço de mau caminho.
Bem, começou tudo de novo, em função do inusitado da circunstância e decidimos adiar nossa saída para as 20h00. As rodadas de brancas e loiras se intensificaram com renovado ânimo. Depois de algumas músicas sertanejas tocadas por um dos genros do poeta, Adão me pediu para tocar um samba-canção, só um, antes de ele ir embora. Um grande sucesso de Altemar Dutra: Que queres tu de mim. Cantei e emendei com outro: “reclamas que te faltam meus carinhos, e dizes que não sou como antes fui...” O irmão do poeta se encantou:
- Puta que pariu! Esse cara é demais! Mais uma rodada aí Sujeirinha!
Adão pediu pra tocar Brigas. Emendei com Queixas, Negues, Risque e as rodadas não paravam. Nem lembro que horas o Duque e o Geovanni se foram. Sei que por volta da 21h00, o Adão continuava a falar:
- Essa é a última! Arlete já deve estar puta comigo! Canta Apito, de Noel Rosa e fim de papo!
Os pedidos foram se sucedendo e os ânimos se exaltando. Alguém roubou o buquê que o Adão ia levar pra sua Arlete. Ninguém sabe, ninguém viu. Simplesmente desapareceu. De raiva, ele pediu uma branca dupla e garantiu ficar até no máximo 22h00. Onde já se viu?
Os demais fregueses já se tinham ido e só restávamos nós no bar, naquela noite romântica. Depois de mandar fechar a conta pela milésima vez, Zé Alves me pediu:
- Vou pedir uma música. Se você souber, pago mais uma rodada. Sabe cantar Poema?
Mandei sem pestanejar:
“Poema é a noite escura de amargura, poema é a luz que brilha lá no céu, poema é ter saudade de alguém...”
Às 23h00, depois de imenso esforço, a família de seu Zé Alves conseguiu levá-lo, deixando a conta paga e mais umas rodadas incluídas e o violão, sob meus cuidados. Dez minutos depois, uma Brasília estaciona e dela desce seu Zé Alves, para um último pedido, amparado pelo irmão condescendente:
- Baiano, eu não vou embora sem antes ouvir Deusa do Asfalto! Sujeirinha! Mais uma aí!
Atendi, e sem imaginar as conseqüências, emendei com “O Ébrio”:
“Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer aquela ingrata que eu amava e que me abandonou...”
Seu Zé desatou um pranto sem fim, me pegou de abraços, mandou descer todas e só foi retirado mais de meia noite, carregado, sem sentidos. Brandão aproveitou a deixa e saiu. Ficamos eu, Ivair e Adão. Pedimos uma saideiríssima e avaliamos a situação. Estávamos todos fedidos. E agora? Ivair estava conformado:
- Bom, vou entrar em casa bem devagarzinho e já fico na sala mesmo. Nem subo pro quarto! Amanhã será outro dia!
Eu segui na mesma linha:
- É... Também durmo no sofá da sala e amanhã ataco os pontos fracos dela e resgato meu crime. Também tenho minhas manhas!
Mas a situação do Adão era diferente. Ele não tinha chave de casa e, pelo que conhecia da sua Arlete, hoje a cobra ia fumar. E tinha o buquê... Ele não se conformava de alguém ter roubado. Bom, como Arlete gostava muito de serenatas, resolvemos ir todos para a janela do prédio, em solidariedade, derreter seu coração com alguns sambas-canções, escolhidos a dedo pelo maridão apaixonado. Tomamos mais umas, para dar coragem e inspiração e ensaiamos as músicas que ele achava que iriam transformar o coração de sua amada em geléia. Por volta de 01h00, finalmente, deixamos o bar do Sujeirinha, em direção ao Bairro Popular, para a operação “Salva Adão”.
Os carros não podiam entrar no Condomínio. Andamos uns bons 50 metros até chegar ao pé da janela da bem amuada, isto é, bem amada. Ela morava no segundo andar, de um prédio tipo caixão, sem elevador. Tudo escuro. A pedido do marido, a primeira deveria ser “Camisola do Dia”, para relembrar a inesquecível lua-de-mel do casal, cinco anos atrás, em Porto Seguro. Depois de mamar um gole na garrafa que o Ivair providenciara, afinei a garganta e sapequei:
“Amor, eu me lembro ainda, que era linda, muito linda, a camisola do dia...”
Infelizmente, vocês têm que acreditar só em mim, porque Ivair e Adão hoje fazem serenatas nas noites do céu, aguardando a hora de nos reunirmos novamente. Abandonaram-me antes do previsto, ambos. Mas retornemos ao fatídico dia dos namorados. Quando ia em meio a Camisola do Dia, a janela do quarto se abriu e eu me enchi de pavonice:
- É... Não tem coração endurecido que uma boa música não derreta!
Apesar da escuridão da noite, vi perfeitamente, quando um travesseiro voou da janela entreaberta e caiu bem próximo de onde estávamos. A princípio, não atinei com o que estava ocorrendo, e continuei cantando:
“...tinha rendas de Sevilha, a pequena maravilha que o teu corpinho abrigava...”
A ficha só caiu quando a panela de pressão se espatifou no chão, com um barulho ensurdecedor. Logo em seguida veio um prato de louça, um jarro de flores e duas taças de vinho e aí tivemos que nos abrigar, porque o apartamento inteiro do Adão veio abaixo. Depois dos últimos talheres, ela deu o ar da graça na janela:
- E pode ir pra casa da mamãezinha, porque aqui você não põe os pés nunca mais! Seu cachorro! Nem essa laia que está contigo!
Toda a vizinhança, a essa altura, assistia ao dramalhão, das janelas encortinadas.
É... A situação do Adão tava complicada. Ivair, muito pragmático, depois de oferecer uma mamada ao coitado, propôs:
- Vamos tomar uma na Avenida Goiás, pra avaliarmos a situação. É preciso manter a calma, que tudo se resolve.
Apesar da consternação, Adão concordou. Catou algumas coisas atiradas lá de cima, inclusive a cueca que ele ia estrear naquela noite, e lá fomos nós, boêmios incompreendidos.
Depois de tomarmos umas geladas, Adão se lembrou que minha mulher era muito amiga da Arlete e propôs uma intermediação de emergência.
- Por que você não pede a sua mulher pra ela ligar pra Arlete e quebrar meu galho, pelo menos essa noite?
- Olha Adão, a essa hora, quase três horas da matina, depois do cano que dei no nosso jantar dos namorados, não tenho cara de fazer um pedido estapafúrdio desses. Se quiser, liga você. Tem um telefone público bem em frente ao bar (naquela época não havia celular).
Ivair mais uma vez, foi pragmático:
- Essas coisas não se resolvem por telefone. Só pessoalmente.
Assim, tomamos mais todas e, por volta de quatro horas, os galos já cantando, entramos no meu apartamento (eu tinha a chave, claro), para a missão impossível. Como não tinha cerveja na geladeira, abri uma garrafa de uísque antes de ir ao quarto despertar a fera. Mas, na verdade não precisou. Ela estava acordada e, percebendo a movimentação, saiu do quarto, enrolada num roupão. Passou por mim como se passasse por um cachorro e deu com os dois bebuns na sala. Ao vê-la, Adão fez o maior drama. Inventou uma estória complicadíssima, cheia de contradições e finalmente, implorou pra ela ligar pra Arlete e pedir pra abrir a porta.
Para minha surpresa, ela foi pro quarto e ligou de lá. Depois de uns 10 minutos voltou, arrogante:
- Pode ir. A porta vai estar aberta.
Adão ajoelhou a seus pés, agradecendo. Ela ria, um riso amarelo e na primeira deixa voltou pro quarto.
Quando a garrafa de uísque secou, mais ou menos cinco choras, os dois foram embora. Com o resto de lucidez que me restava, corri ao banheiro para um merecido banho. Debaixo do chuveiro, ouvi quando o telefone tocou e, pela conversa, a Arlete dava conta do estado do pobre do Adão. Ela só sossegou quando quebrou uma colher de pau na cabeça do coitado. Mas só fez um galo.
Claro que dormi no sofá. Nem tentei entrar no quarto.
Uma semana depois, já as pazes feitas, recebemos a visita do casal Adão – Arlete, para um jantar. Lá pelas tantas, puxando-me para um canto, ele me confessa o verdadeiro motivo da visita.
- Você pode ser meu fiador na Caixa Econômica? Preciso fazer um empréstimo de dois mil reais. A maluca quebrou tudo o que tínhamos em casa.
- Porra Adão! Só por aquela besteirinha daquela noite?
- Pois é... Essas mulheres de hoje!
Adão foi pro andar de cima. Antes, separaram-se. Não sei da Arlete e os anos voaram. Mas nunca mais vou esquecer a indignação do Adão, questionando o radicalismo da ensandecida esposa:
- O que é que eu fiz Baiano? Diz pra mim, o que é que eu fiz?
Não sei Adão. Nunca pude lhe responder essa pergunta que tanto o angustiou em vida. Acho que não fez nada demais. Espero que onde se encontre hoje, junto ao Ivair, ao Brandão e ao Geovanni, esteja mais conformado. Me aguarde, que, a seu tempo, haveremos de cantar todas as músicas que aqui não nos foi permitido. Sei que aí tem bons seresteiros e também me disseram que as colheres de pau celestes são feitas de material macio. Nem doem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário