Era um fim de noitada naquela cidade do interior paraense. Caminhava pela rua de terra vermelha, ainda atordoado de tanta bebida e farra. A noite tinha sido boa, mas já era dia claro. Dirigia-me, sonolento, mas sóbrio, ao jipe que me aguardava, adiante, para retornar ao acampamento.
De repente, notei um homem, sentado na guia da calçada, com o rosto entre as mãos. A princípio, julguei tratar-se de mais um bêbado, mas, ao me aproximar, percebi que ele chorava convulsivamente, em soluços entrecortados.
Meio constrangido, passei por ele, mas um súbito sentimento de compaixão me tomou e eu voltei, devagar, até tocar levemente seus ombros, já que ele não levantava a cabeça.
- Desculpe amigo! Mas posso fazer alguma coisa? Por que chora tanto?
Um rosto de seus 40 anos olhou-me, com surpresa, examinando-me como se ouvisse e não me visse. Um olhar de pura dor. Barba espessa, meio grisalha, vincos de sofrimento visíveis nas feições precocemente envelhecidas, lábios comprimidos, no esforço de conter o pranto. Quase me agradecendo, falou com infinita amargura:
- Ninguém pode me ajudar, amigo É muito grande a aminha dor!
Havia tanta dignidade em sua recusa, que restou no ar apenas o eco de uma decisão definitiva, inquestionável. Ainda assim, insisti:
- Precisa de algum dinheiro? Sente dor? Gostaria de tomar um café?
Acho que não foram exatamente essas minhas palavras, mas foi certamente o que eu gostaria de ter perguntado.
Novamente ele me olhou, por breves segundos e sua expressão de dor pôs um ponto final em minha impertinência. Sem outro comentário, ele apenas gemeu:
- Ai! É muito grande a minha dor!
E retomou seu lamento compungido.
Absolutamente desconcertado, afastei-me, em respeito àquele choro digno, que não queria outra coisa, que não fluir, como água na cachoeira.
Vinte metros adiante, meu carro me aguardava, com dois companheiros dormindo a bordo. Eu era o último retardatário. Mas, enquanto caminhava, com as mãos nos bolsos, a imagem e o som da cena de há pouco me afligiam, como espinho no pé, incomodando, exigindo atitude. Minha compaixão desdobrou-se em motim de sentimentos. Não se pode deixar um homem assim, aos prantos, no meio da rua, à mercê de tamanha dor. Em segundos, me vieram à mente os temores daquela noite nas dependências do DOI-CODI... O quanto eu não teria gostado se recebesse a solidariedade de alguém!
Instintivamente me voltei. Havia uma resolução irremovível em mim. Porém, para meu espanto, embora eu tivesse andado meros dez metros, a calçada estava vazia. O homem não estava mais lá, nem em qualquer outro ponto à vista.
Confesso que aquilo me atordoou ainda mais. Onde diabos se metera? Procurei nas ruas vizinhas, nos botecos ainda abertos, mas... Nada. Simplesmente ele desaparecera.
Já no carro, contei o ocorrido aos companheiros, mas eles juraram não ter visto ninguém ali.
Foi tão chocante o impacto daquele encontro-fantasma, que nem consegui dormir, ao chegar ao acampamento. A dor daquele rosto barbudo não me saia da visão, nem seus soluços, nem sua descrença.
Mas, existira mesmo tal homem ou teria sido imaginação de minha mente ressacada? Poderia ter sido apenas uma ilusão, aquela cena inesquecível? Efeito inconsciente de uma noite de esbórnia?
Anos depois, em conversa com psicólogo amigo, fiquei sabendo que sim, que, em certas circunstâncias, a mente pode criar cenas que nos iludem, principalmente sob o efeito de drogas, o que não foi o caso, juro.
Por mim, não acredito nisso e lhes afirmo que o tal homem era de carne e osso e se o visse ainda hoje, o reconheceria.
O fato, contudo, é que, por mais que tenha indagado, nunca obtive uma única pista do tal chorão. Sei que a tela do tempo embaça a visão, mas não os sentidos da alma. A dor do rosto de um homem rude jamais se esquece.
Mas nada disso vem mais ao caso. Ter existido ou não, não importa mais. Importa é que aprendi uma lição. Quando tiver oportunidade de ser solidário, não leve dez metros para decidir. Dez metros podem ser fatais. Podem causar um vazio, uma incerteza que te acompanharão pelo resto da vida. Dez metros podem te deixar uma interrogação na alma, como a cicatriz de uma facada na barriga. Irremovível.
Como já disse, para mim tornou-se irrelevante a dúvida das pessoas, sobre a existência do meu amigo chorão. O que me mata hoje é não poder responder à seguinte pergunta:
- O que aconteceria se eu apenas tivesse me sentado a seu lado e permanecido ali até poder fazer algo? Estaria aqui contando esse causo?
O que me aflige são as minhas dúvidas e não as dos outros.
De repente, notei um homem, sentado na guia da calçada, com o rosto entre as mãos. A princípio, julguei tratar-se de mais um bêbado, mas, ao me aproximar, percebi que ele chorava convulsivamente, em soluços entrecortados.
Meio constrangido, passei por ele, mas um súbito sentimento de compaixão me tomou e eu voltei, devagar, até tocar levemente seus ombros, já que ele não levantava a cabeça.
- Desculpe amigo! Mas posso fazer alguma coisa? Por que chora tanto?
Um rosto de seus 40 anos olhou-me, com surpresa, examinando-me como se ouvisse e não me visse. Um olhar de pura dor. Barba espessa, meio grisalha, vincos de sofrimento visíveis nas feições precocemente envelhecidas, lábios comprimidos, no esforço de conter o pranto. Quase me agradecendo, falou com infinita amargura:
- Ninguém pode me ajudar, amigo É muito grande a aminha dor!
Havia tanta dignidade em sua recusa, que restou no ar apenas o eco de uma decisão definitiva, inquestionável. Ainda assim, insisti:
- Precisa de algum dinheiro? Sente dor? Gostaria de tomar um café?
Acho que não foram exatamente essas minhas palavras, mas foi certamente o que eu gostaria de ter perguntado.
Novamente ele me olhou, por breves segundos e sua expressão de dor pôs um ponto final em minha impertinência. Sem outro comentário, ele apenas gemeu:
- Ai! É muito grande a minha dor!
E retomou seu lamento compungido.
Absolutamente desconcertado, afastei-me, em respeito àquele choro digno, que não queria outra coisa, que não fluir, como água na cachoeira.
Vinte metros adiante, meu carro me aguardava, com dois companheiros dormindo a bordo. Eu era o último retardatário. Mas, enquanto caminhava, com as mãos nos bolsos, a imagem e o som da cena de há pouco me afligiam, como espinho no pé, incomodando, exigindo atitude. Minha compaixão desdobrou-se em motim de sentimentos. Não se pode deixar um homem assim, aos prantos, no meio da rua, à mercê de tamanha dor. Em segundos, me vieram à mente os temores daquela noite nas dependências do DOI-CODI... O quanto eu não teria gostado se recebesse a solidariedade de alguém!
Instintivamente me voltei. Havia uma resolução irremovível em mim. Porém, para meu espanto, embora eu tivesse andado meros dez metros, a calçada estava vazia. O homem não estava mais lá, nem em qualquer outro ponto à vista.
Confesso que aquilo me atordoou ainda mais. Onde diabos se metera? Procurei nas ruas vizinhas, nos botecos ainda abertos, mas... Nada. Simplesmente ele desaparecera.
Já no carro, contei o ocorrido aos companheiros, mas eles juraram não ter visto ninguém ali.
Foi tão chocante o impacto daquele encontro-fantasma, que nem consegui dormir, ao chegar ao acampamento. A dor daquele rosto barbudo não me saia da visão, nem seus soluços, nem sua descrença.
Mas, existira mesmo tal homem ou teria sido imaginação de minha mente ressacada? Poderia ter sido apenas uma ilusão, aquela cena inesquecível? Efeito inconsciente de uma noite de esbórnia?
Anos depois, em conversa com psicólogo amigo, fiquei sabendo que sim, que, em certas circunstâncias, a mente pode criar cenas que nos iludem, principalmente sob o efeito de drogas, o que não foi o caso, juro.
Por mim, não acredito nisso e lhes afirmo que o tal homem era de carne e osso e se o visse ainda hoje, o reconheceria.
O fato, contudo, é que, por mais que tenha indagado, nunca obtive uma única pista do tal chorão. Sei que a tela do tempo embaça a visão, mas não os sentidos da alma. A dor do rosto de um homem rude jamais se esquece.
Mas nada disso vem mais ao caso. Ter existido ou não, não importa mais. Importa é que aprendi uma lição. Quando tiver oportunidade de ser solidário, não leve dez metros para decidir. Dez metros podem ser fatais. Podem causar um vazio, uma incerteza que te acompanharão pelo resto da vida. Dez metros podem te deixar uma interrogação na alma, como a cicatriz de uma facada na barriga. Irremovível.
Como já disse, para mim tornou-se irrelevante a dúvida das pessoas, sobre a existência do meu amigo chorão. O que me mata hoje é não poder responder à seguinte pergunta:
- O que aconteceria se eu apenas tivesse me sentado a seu lado e permanecido ali até poder fazer algo? Estaria aqui contando esse causo?
O que me aflige são as minhas dúvidas e não as dos outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário