Do fundo do baú, do fundo da vida, do fundo do tempo, retiro uma vela caderneta de campo. As marcas de suor em suas sujas, barrentas páginas, vejo-as agora como gotas caídas das minha próprias idéias, da minha alma, do meu cansaço. Cada palavra escrita em péssima caligrafia lembra circunstâncias polarizadas entre a euforia e o sofrimento. Entre a descoberta de uma nova ocorrência de ouro e a saudade da filha recém-nascida. Entre a satisfação de encontrar uma preciosidade estrutural e o sobressalto pelo golpe frustrado da serpente. Entre a realização de estar forjando as geociências no Brasil e o terror de pensar que este cansaço, essa febre, poderia ser mais uma malária.
Algumas frases não são mais legíveis. Não sei mais o que escrevi. Mas, mesmo que jamais se recuperem essas palavras, uma coisa posso lhes afirmar: como acreditei nelas! Eram minha vida.
Talvez só Freud explique, mas o fato é que toda vez que me via escalando uma escarpa, sob o nosso escaldante sol tropical, com o suor a escorrer pela testa, pelos olhos, pela vida, pelo mundo, lutando contra o peso, os músculos, a gravidade, a vegetação e as cobras eu refletia. Em tais circunstâncias, seria totalmente impossível alguém ter estado de espírito para raciocinar com calma, ou mesmo fazer alguma observação isenta, criteriosa. O desconforto físico predispõe contra o detalhe. Perde a geologia. Creio até que muitas descrições de afloramentos foram prejudicadas por essa impaciência e irritação que o mal-estar físico gera. E aí - quem saberá por quê? - sempre me vinha à mente a imagem de Vandré, implacavelmente torturado, sendo obrigado a criar, ali mesmo, na sala de torturas, uma nova canção. A força da criação brotando da chibata.
Várias páginas molhadas pela chuva foram totalmente destruídas. Acode-me o terror das tempestades na floresta. O Universo a nos lembrar nossa pequenez. Galhos caindo, a escuridão, bichos correndo... E aquele aperto no coração, aquela angústia. A suprema humilhação. Em algumas ocasiões radicalizava-me contra Deus: “a chuva é castigo divino para os desabrigados”. Depois, vinha um sol gostoso e eu concluía que não sabia nada de chuva, de sol e de Deus.
Não sei por que misteriosas razões, uma página em branco me traz à mente noites de agonia na selva. Perdidos, eu e meus companheiros. Andando, rondando, desesperando... Sem rumo, sem destino, só a solidão e o medo... E essa sede, que até hoje ainda me seca a garganta. Os sons das matas, à noite, são indescritíveis.
Há até uma poesia entre essas velhas páginas. Desde menino tenho a mania de rabiscar versos aqui e ali, pretensiosamente. Vejo que esses foram rabiscados, com muita pressa, entre um afloramento de xisto e um quartzito. Falam de uma trilhazinha sinuosa, perdida numa encosta distante, onde, eu supunha, nunca passara vivalma. Despertou meu lirismo por ser recoberta de pedrinhas brancas, reluzentes ao sol. Lembrei-me de velha canção da infância. O fato é que as matas são verdadeiros labirintos, onde se cruzam miríades de trilhas, caminhos, atalhos. De todo lado, de todas as formas. Como se cada bicho tivesse sua via particular. Ninguém sabe de onde vêm, nem aonde levam. Para nós, fica apenas o mistério. Sem falar daquela inquietante sensação de que estamos sendo observados, o tempo todo, por invisíveis e felinos pares de olhos.
Doze afloramentos idênticos e consecutivos de uma mesma litologia. Em todos eles, mesmos minerais, mesmas estruturas, mesmas texturas. Enfim, afloramentos absolutamente iguais. Rotina de dois dias de trabalho, como se fosse o tédio de uma vida inteira. Todos os dias, indo e vindo pelos mesmos caminhos, pelas trilhas absurdas do nada. Nos mapeamentos geológicos, assim como na vida, vale uma regra de ouro: se tudo começa a ficar repetitivo, mude a direção da caminhada. 90 graus, de preferência.
Entre duas páginas, vêem-se, preservados, numa espécie de estranha fossilização, restos de um infeliz pernilongo. Permaneceu ali, fixado, anos a fio, em seu próprio sangue. Ou terá sido meu próprio sangue? As asas abertas compõem uma minúscula cruz. Acode-me a sentença popular de que cada um carrega sua própria cruz. A cruz do destino. Muitos se lamentam pelo peso que lhe coube. Reclamam. Blasfemam. De minha parte, sou conformado. Revejo meu passado e resigno-me. Não me preocupa que meu fardo seja mais leve ou mais pesado que o dos outros. Para mim, é apenas minha cruz. Basta. A subida é longa e não adianta resmungos. Sou assim. Não costumo perder tempo com coisas que estão fora do meu alcance. A cruz é minha e devo carregá-la. Isto está ao meu alcance.
Enfim, folheio a última página. Entre vagas anotações e telefones que nem desconfio de quem sejam, a caligrafia de um velho amigo, companheiro de infortúnios, alegrias e marteladas, em um tempo passado. Nunca mais o vi. Sumiu-se, tragado na roda-viva dos anos. Na verdade, agora me questiono. Acho mesmo que nunca cheguei a vê-lo, realmente. Nem durante nossa breve convivência. Igual ao valente índio do filme americano, meu coração fica pesado, como as nuvens de chumbo. Onde andará meu velho amigo? Por que nunca mais fizemos contato? Não sou covarde, mas sei reconhecer que há coisas impossíveis.
Empolgado com as recordações, retorno àqueles banquetes reais, geralmente às margens de algum igarapé, riacho, córrego, arroio, ou mesmo sob a fronde de alguma gameleira, juazeiro, mangueira, nos ermos dos interiores do Brasil. Um peão dava o sinal: -“Opa! Hora da tristeza do patrão e alegria do peão!”. E dos alforjes brotavam charque, farinha, ovo, sardinha, laranja, banana, sanduíches, uma festa. Se a época fosse propícia, abundava açaí, manga, cajuí, castanha, mangaba, umbu, ouricuri. Tudo dividido, comunitário, regado a água quente de cantil. As conversas, nesses minutos de banquete, eram deliciosas, invariavelmente versando sobre mulheres, maridos traídos, os cornos da cidade, futebol e essas coisas ingênuas, da essência da peãozada, que garantia o bom humor sempre em alta. Em algumas ocasiões muito especiais, tinha sobremesa de leite moça, a felicidade suprema naqueles rincões esquecidos. Quando chegava a hora, eu me vingava, divertido:
-“Opa! Hora da tristeza do peão e alegria do patrão!”. E lá ia aquela comitiva estranha, procurando o que não foi perdido, não se sabe onde, pra não sei o quê, como dizia o filósofo Orneides, o peão mais inteligente que conheci. Que filosofias fará hoje, o Orneides?
Fecho a velha caderneta. Desculpe as lágrimas. Fecho também o passado. Afloramentos, serpentes, pernilongos, sede, fome e dor. Saudades das minhas velhas saudades, velhos companheiros, filhas novas. O tempo é como o suor, a nos brotar da testa, dos olhos, sempre renovado. Interminável, a prenunciar novas caminhadas, nos consumindo, nos definhando, nos liquefazendo. Invencível. Não tente lutar contra ele. Simplesmente aproveite-o. Acredite em mim: ele passa!
Fosse alguém importante, comporia um memorial, ou doaria esses velhos escritos a algum museu. Mostraria aos curiosos do futuro, como se fazia geologia na década de setenta, no Brasil. Seria engraçado ver-lhes os sorrisos zombeteiros ante minha trova das pedrinhas brancas. Mas, enfim, sendo quem sou, acho que este velho baú está muito bom para uma relíquia vulgar, já quase ilegível. Até que as traças, por fim, dêem-lhe destino final.
Não sei se por fatalidade ou por mera contingência da profissão, mas agora, trancado o baú, lembro-me do saudoso poeta. O fato é que sempre, por toda a minha vida, por todos os lugares em que andei, sempre houve muitas pedras no meu caminho. Jamais me esquecerei disto.
Por falar nisso, o que é mesmo que eu vim procurar nesse baú? Alguém se lembra? O martelo. O martelo!??
Cá pra nós, estava revolvendo a terra do jardim, quando encontrei uma pequena lasca de pedra escura, granular, tipicamente ígnea, dura como quê! Mas eu moro em cima de uma formação recente! Um arrepio tomou-me inteiro. Que se dane a idade, a artrite e o bico-de-papagaio! Pintou um mistério geológico. Pode ser a martelada da minha vida! Puta que pariu! Quem pegou a porra desse martelo? Olha aqui, se minha mulher deu meu martelo pro pedreiro que trocou o piso da cozinha, mês passado, juro que vou pedir o divórcio. Já basta minha Brunton que ela doou para uma casa de antiguidades! Hoje eu quebro aquela amostra nem que seja na minha própria testa!
(Homenagem aos geólogos, bandeirantes modernos, que, nas décadas de 70 e 80, se embrenharam nas matas, nas caatingas, nos cerrados, nos campos e nos pampas, desbravando e forjando a geologia do Brasil, tirando leite das pedras, sem o devido reconhecimento, por parte da sociedade.)
Algumas frases não são mais legíveis. Não sei mais o que escrevi. Mas, mesmo que jamais se recuperem essas palavras, uma coisa posso lhes afirmar: como acreditei nelas! Eram minha vida.
Talvez só Freud explique, mas o fato é que toda vez que me via escalando uma escarpa, sob o nosso escaldante sol tropical, com o suor a escorrer pela testa, pelos olhos, pela vida, pelo mundo, lutando contra o peso, os músculos, a gravidade, a vegetação e as cobras eu refletia. Em tais circunstâncias, seria totalmente impossível alguém ter estado de espírito para raciocinar com calma, ou mesmo fazer alguma observação isenta, criteriosa. O desconforto físico predispõe contra o detalhe. Perde a geologia. Creio até que muitas descrições de afloramentos foram prejudicadas por essa impaciência e irritação que o mal-estar físico gera. E aí - quem saberá por quê? - sempre me vinha à mente a imagem de Vandré, implacavelmente torturado, sendo obrigado a criar, ali mesmo, na sala de torturas, uma nova canção. A força da criação brotando da chibata.
Várias páginas molhadas pela chuva foram totalmente destruídas. Acode-me o terror das tempestades na floresta. O Universo a nos lembrar nossa pequenez. Galhos caindo, a escuridão, bichos correndo... E aquele aperto no coração, aquela angústia. A suprema humilhação. Em algumas ocasiões radicalizava-me contra Deus: “a chuva é castigo divino para os desabrigados”. Depois, vinha um sol gostoso e eu concluía que não sabia nada de chuva, de sol e de Deus.
Não sei por que misteriosas razões, uma página em branco me traz à mente noites de agonia na selva. Perdidos, eu e meus companheiros. Andando, rondando, desesperando... Sem rumo, sem destino, só a solidão e o medo... E essa sede, que até hoje ainda me seca a garganta. Os sons das matas, à noite, são indescritíveis.
Há até uma poesia entre essas velhas páginas. Desde menino tenho a mania de rabiscar versos aqui e ali, pretensiosamente. Vejo que esses foram rabiscados, com muita pressa, entre um afloramento de xisto e um quartzito. Falam de uma trilhazinha sinuosa, perdida numa encosta distante, onde, eu supunha, nunca passara vivalma. Despertou meu lirismo por ser recoberta de pedrinhas brancas, reluzentes ao sol. Lembrei-me de velha canção da infância. O fato é que as matas são verdadeiros labirintos, onde se cruzam miríades de trilhas, caminhos, atalhos. De todo lado, de todas as formas. Como se cada bicho tivesse sua via particular. Ninguém sabe de onde vêm, nem aonde levam. Para nós, fica apenas o mistério. Sem falar daquela inquietante sensação de que estamos sendo observados, o tempo todo, por invisíveis e felinos pares de olhos.
Doze afloramentos idênticos e consecutivos de uma mesma litologia. Em todos eles, mesmos minerais, mesmas estruturas, mesmas texturas. Enfim, afloramentos absolutamente iguais. Rotina de dois dias de trabalho, como se fosse o tédio de uma vida inteira. Todos os dias, indo e vindo pelos mesmos caminhos, pelas trilhas absurdas do nada. Nos mapeamentos geológicos, assim como na vida, vale uma regra de ouro: se tudo começa a ficar repetitivo, mude a direção da caminhada. 90 graus, de preferência.
Entre duas páginas, vêem-se, preservados, numa espécie de estranha fossilização, restos de um infeliz pernilongo. Permaneceu ali, fixado, anos a fio, em seu próprio sangue. Ou terá sido meu próprio sangue? As asas abertas compõem uma minúscula cruz. Acode-me a sentença popular de que cada um carrega sua própria cruz. A cruz do destino. Muitos se lamentam pelo peso que lhe coube. Reclamam. Blasfemam. De minha parte, sou conformado. Revejo meu passado e resigno-me. Não me preocupa que meu fardo seja mais leve ou mais pesado que o dos outros. Para mim, é apenas minha cruz. Basta. A subida é longa e não adianta resmungos. Sou assim. Não costumo perder tempo com coisas que estão fora do meu alcance. A cruz é minha e devo carregá-la. Isto está ao meu alcance.
Enfim, folheio a última página. Entre vagas anotações e telefones que nem desconfio de quem sejam, a caligrafia de um velho amigo, companheiro de infortúnios, alegrias e marteladas, em um tempo passado. Nunca mais o vi. Sumiu-se, tragado na roda-viva dos anos. Na verdade, agora me questiono. Acho mesmo que nunca cheguei a vê-lo, realmente. Nem durante nossa breve convivência. Igual ao valente índio do filme americano, meu coração fica pesado, como as nuvens de chumbo. Onde andará meu velho amigo? Por que nunca mais fizemos contato? Não sou covarde, mas sei reconhecer que há coisas impossíveis.
Empolgado com as recordações, retorno àqueles banquetes reais, geralmente às margens de algum igarapé, riacho, córrego, arroio, ou mesmo sob a fronde de alguma gameleira, juazeiro, mangueira, nos ermos dos interiores do Brasil. Um peão dava o sinal: -“Opa! Hora da tristeza do patrão e alegria do peão!”. E dos alforjes brotavam charque, farinha, ovo, sardinha, laranja, banana, sanduíches, uma festa. Se a época fosse propícia, abundava açaí, manga, cajuí, castanha, mangaba, umbu, ouricuri. Tudo dividido, comunitário, regado a água quente de cantil. As conversas, nesses minutos de banquete, eram deliciosas, invariavelmente versando sobre mulheres, maridos traídos, os cornos da cidade, futebol e essas coisas ingênuas, da essência da peãozada, que garantia o bom humor sempre em alta. Em algumas ocasiões muito especiais, tinha sobremesa de leite moça, a felicidade suprema naqueles rincões esquecidos. Quando chegava a hora, eu me vingava, divertido:
-“Opa! Hora da tristeza do peão e alegria do patrão!”. E lá ia aquela comitiva estranha, procurando o que não foi perdido, não se sabe onde, pra não sei o quê, como dizia o filósofo Orneides, o peão mais inteligente que conheci. Que filosofias fará hoje, o Orneides?
Fecho a velha caderneta. Desculpe as lágrimas. Fecho também o passado. Afloramentos, serpentes, pernilongos, sede, fome e dor. Saudades das minhas velhas saudades, velhos companheiros, filhas novas. O tempo é como o suor, a nos brotar da testa, dos olhos, sempre renovado. Interminável, a prenunciar novas caminhadas, nos consumindo, nos definhando, nos liquefazendo. Invencível. Não tente lutar contra ele. Simplesmente aproveite-o. Acredite em mim: ele passa!
Fosse alguém importante, comporia um memorial, ou doaria esses velhos escritos a algum museu. Mostraria aos curiosos do futuro, como se fazia geologia na década de setenta, no Brasil. Seria engraçado ver-lhes os sorrisos zombeteiros ante minha trova das pedrinhas brancas. Mas, enfim, sendo quem sou, acho que este velho baú está muito bom para uma relíquia vulgar, já quase ilegível. Até que as traças, por fim, dêem-lhe destino final.
Não sei se por fatalidade ou por mera contingência da profissão, mas agora, trancado o baú, lembro-me do saudoso poeta. O fato é que sempre, por toda a minha vida, por todos os lugares em que andei, sempre houve muitas pedras no meu caminho. Jamais me esquecerei disto.
Por falar nisso, o que é mesmo que eu vim procurar nesse baú? Alguém se lembra? O martelo. O martelo!??
Cá pra nós, estava revolvendo a terra do jardim, quando encontrei uma pequena lasca de pedra escura, granular, tipicamente ígnea, dura como quê! Mas eu moro em cima de uma formação recente! Um arrepio tomou-me inteiro. Que se dane a idade, a artrite e o bico-de-papagaio! Pintou um mistério geológico. Pode ser a martelada da minha vida! Puta que pariu! Quem pegou a porra desse martelo? Olha aqui, se minha mulher deu meu martelo pro pedreiro que trocou o piso da cozinha, mês passado, juro que vou pedir o divórcio. Já basta minha Brunton que ela doou para uma casa de antiguidades! Hoje eu quebro aquela amostra nem que seja na minha própria testa!
(Homenagem aos geólogos, bandeirantes modernos, que, nas décadas de 70 e 80, se embrenharam nas matas, nas caatingas, nos cerrados, nos campos e nos pampas, desbravando e forjando a geologia do Brasil, tirando leite das pedras, sem o devido reconhecimento, por parte da sociedade.)
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