Não sei quanto tempo inda me resta
Nesta festa.
Não importa.
Vou seguindo a turba
Sempre em frente.
Só mais um no carnaval.
Boi de manada,
No frenesi do caos,
No turbilhão do curral.
Não se sabe das comportas,
Do sangradouro, das frestas.
Vai-se andando, apenas,
Seguindo a corrente,
Regressar, não se permite,
Até quando, de repente,
Tipo um abracadabra,
Sai-se, por oculta porta,
Quando vence o tempo estipulado,
Ilegível,
Ilegível,
No convite.
Sem apelação
E sem direito a volta.
Mas a festa não se abala,
Não acaba nunca.
Pra cada um que sai,
Vêm mais dois pra sala.
Sai um conde de fraque e bengala,
Entra um Zé da espelunca.
Sai a Maria da feira,
Entra a dama em traje de gala,
E a piranha, a donzela e a freira.
Sai o louco, o mendigo, o anão,
E entram donos de banco e de banca.
E a dança ferve no salão.
Um soluça, outro sorri,
Um apanha, outro espanca.
O professor leciona,
O doutor pratica,
O falso fuxica,
O promotor pressiona,
O réu confessa,
O advogado enrola,
O batedor descola.
Até que alguém se estressa
E põe fogo no estopim
E é um deus-nos-acuda,
Um corre-corre da mulesta.
Parece o fim da seresta,
Mas logo o bombeiro ajuda
E acaba o motim
E o festim recomeça.
O banqueiro vem cobrar juros,
A amante vem cobrar juras,
O grileiro vem cobrar terra.
Uns dançam danças de guerra
Nas águas dos rios impuros,
Outros dançam carnaval,
De pierrôs e arlequins.
Uns bebem nos botequins,
Ou se drogam no quintal.
Um se farta, outro se enfarta.
Um gordo se empanturra,
Um empurra, outro aparta,
Um faz mimo, outro esmurra
E segue o som da orquestra
No palco iluminado,
Arrebatando as paixões,
Alimentando os dramas mais pungentes,
Sangrando corações, em dores lancinantes,
Ou embalando os sonhos febris dos amantes,
Neste ambiente etéreo de ilusões.
Num canto, ele chora com a mão na testa,
Enquanto ela faz cena e protesta,
Mas outro diz que a ama e a leva
E a turba aplaude, em transe,
O fim de mais um drama
E vai em busca de outro palco, outro palhaço,
Que há dramas pra todo gosto,
E dores pra todo peito,
E rugas pra todo rosto,
Nessa orgia de valores invertidos:
Traidores que traem com estardalhaço,
Benfeitores que doam contrafeitos,
Pregadores imorais e pervertidos
Conduzindo multidões de convertidos,
Explorando o sangue de um coitado
Que há dois mil e tantos anos
Agoniza, indefeso, na cruz,
Sem descanso e sem respeito.
Vendilhões do Templo, desalmados,
Quando vão descrucificar Jesus?
Tem horas em que se cansa,
E nada faz sentido,
E se quer sair, mas...
Sair pra onde?!
O tempo urge,
Os pares chamam,
É preciso entrar na dança.
Não há tréguas.
De repente, assim, sem mais nem menos
Lá vem o arrastão, levando tudo de eito
E na histeria coletiva que se instala,
De tudo, um pouco rola:
A freira se prostitui,
A prostituta ora,
O moralista corrompe,
O autista discursa,
O enfermo canta,
O delator se cala,
O careta fuma,
Um explorado se indigna e explode: Basta!
O explorador se revolta e chama o xerife
E recomeça o banzé,
E segue animada a festa.
Vem turista tirar foto,
Jornalista entrevistar,
Demagogo prometer,
Artista cobrar cachê,
E o preguiçoso na sesta,
A rir do fragor dos bestas.
Mas o relógio do salão badala.
São horas já...
Mas, de quê?
Ninguém sabe, ninguém fala,
Mas, são horas...
A turba avança e empurra,
À frente, a multidão senil
Vai deixando o salão principal,
Se espremendo num alpendre escuro,
Gigantesca boca de um funil.
O som da música esmaece,
E a festa fica pra trás.
O funil suga, irresistível.
Quem não dançou, se arrepende e quer voltar,
Mas é tarde.
Enormes setas convocam:
SAÍDA!!!!
E a manada segue em frente
E não há quem o evite:
É chegada a hora impressa,
Ilegível,
No convite.
Pouco a pouco, vem um frio.
A cabeça roda, a visão embaça,
As pernas já não dançam mais:
Fim da festa.
Uns se desesperam,
Outros se conformam,
Alguns se precipitam,
E tudo o que se quer é paz.
Mas, no salão, segue a festa
Eterna, e sempre nova,
Debutante senhora,
Sedutora, misteriosa,
Ilusória e imodesta.
Quanto a mim,
Não sei quanto tempo inda me resta
Não importa,
Vou seguindo a turba
Sempre em frente,
Dançando conforme a dança,
Com minha perna torta,
Tangos, boleros e valsas,
E sambas e salsas,
Aproveitando a festança.
E não me importa as horas,
Importa os passos que rodopiei,
As músicas que dancei,
Que aprendi e ensinei.
E seja qual for meu limite,
Desejo fazer valer,
Até a última gota,
Os preciosos minutos ,
Os derradeiros segundos,
Conforme consta,
Ilegível,
No convite.
Salvador, maio/2015
Um comentário:
Maravilhoso Reginaldo. Fantástica a sua dança das horas. Embora os afazeres profanos não me permitam desfrutar a poesia como gostaria, quando posso escrevo e leio o que outros escreveram. E sempre que posso visito o teu blog, para me deleitar com teus poemas sérios, engraçados, mas poemas encantados. Sou teu fã.
Mauricio Bressan Junior
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