Este poema em prosa, ou texto-poema, como queiram, é uma singela homenagem a Bill e Sucupira, dois bravos guerreiros em defesa dos valores culturais de nossa região, contando apenas com a força de seu amor à Terra, seu compromisso com os valores maiores de nossa tradição e a sensibilidade de suas palavras e imagens.
Não, seu moço.
Não conheço o Viaduto do Chá.
Nem sei onde fica.
Mas, e o Senhor?
Conhece a Ponte do Rio da Rua?
Hoje ela se modernizou, perdeu o charme
E nem se destaca mais,
Em sua roupagem cinzenta de cimento e asfalto.
Mas antes disso, era fantástica,
De madeira, com corrimão dos dois lados,
E assoalho de tábuas que estalavam, qual
trovão,
Num barulho que assustava,
Sob as rodas dos carros-de-bois,
Os pneus dos jipes, das picapes, dos
FNM’s
E os cascos dos cavalos ariscos,
Encolhidos de medo de tamanha altura.
Inacreditáveis três metros acima do fio d’água do Paramirim.
A mais imponente obra de engenharia
Dos meninos de dez anos de então.
Trampolim dos mais arrojados,
A infernizar as pobres lavadeiras,
Molhando e sujando as roupas secas
Do mosaico de lençóis e toalhas e anáguas e combinações,
Que coloriam as margens pedregosas do rio,
E que hoje colorem nossas lembranças.
Esse seu viaduto deve ser muito importante,
Disso, não duvido,
Mas nossa ponte era o portal da aventura,
Que separava nossos quintais seguros
Dos locais misteriosos e distantes,
Falados por nossos pais:
Volta do Rio,
Zé dos Santos,
Olho d’Água do Seco,
Larga de Sá Nenén...
Que São Paulo, que nada! Nem Rio, nem Salvador...
Os meninos do meu tempo
Queriam mesmo era conhecer esses lugares fascinantes,
Palcos dos nossos heróis, nossos vaqueiros.
Até me via, um dia, já adulto,
Apear do meu cavalo pampa,
Entrar em casa, suado, como meu pai,
Tirar gibão e perneira,
E narrar às crianças curiosas,
A perseguição implacável à novilha desgarrada,
Do Arraial ao Pajeú:
A vaqueirama aboiando,
A cachorrada no rastro,
E o Pampa, qual corisco,
Driblando a sanha mortal
Do carrasco assassino:
Espetos de pau-pereira,
Espadas de quiabento,
Punhais de jurema-preta,
Lanças de xique-xique...
Por fim, a tocaia na aguada,
O laço certeiro, no chifre,
E a rês domada, no chão...
Talvez por isso, seu moço,
Por ter os sonhos repletos, na infância,
Não tive tempo de sonhar,
Com o seu Viaduto do Chá.
Rua da Consolação?
Hum... Conheço não, seu moço.
Deve ser uma beleza, pelo que o senhor diz.
Mas, o senhor conhece a Rua do Cavalo Preto?
É uma rua pequena, estreita.
Um casario antigo, casebres geminados.
Não tem beleza de deslumbrar o visitante.
Pra falar mesmo a verdade, é uma rua pobre.
Mas por ali, seu moço,
Por aquela ruazinha feia, que deságua na Praça do Padre,
Por ali floresceu a inocência da minha geração,
Em brincadeiras e estripulias
Que se impregnaram, ad eternum,
Nos portais, tão familiares;
Nas calçadas amigas;
Nas paredes de tintas desbotadas;
Nas caras enrugadas das velhas matronas sorridentes;
Nas pedras irregulares da rua;
No imaginário das crianças felizes.
Dela se contavam lendas assustadoras
De visagens, almas penadas e mulas-sem-cabeça,
No silêncio das noites escuras.
Para ela fugiam os casais apaixonados,
Nas horas mortas das noites mornas,
Para o aconchego furtivo de sua solidão.
Por ela fugiam os escravos desesperados,
Das chibatas dos coronéis,
As donzelas, perseguidas pelos filhos de Ioiô,
Os escorraçados da casa-grande,
Os sem-teto da cidade,
Capitães-do-mato enfurecidos,
E gentes de todos os crimes, de todos os medos.
Mas, suas calçadas eram de paz,
Uma paz calada, sofrida, sem estardalhaço.
Uma rua que pagou seu preço.
Essa rua hoje, seu moço, tem outro nome,
Que me passa, no momento,
Mas não vem ao caso.
Importa é que sob seu leito humilde
E seus telhados modestos
Germinaram as sementes de um lugar,
A natureza de um povo,
A raiz de uma história ainda por contar,
Mas que eu sei, ou melhor, eu sinto,
Porque transitei por ela, durante os mil anos de minha infância,
E aprendi a ler os segredos de suas fachadas silenciosas.
Pra que é que serve mesmo essa...
Como é mesmo o nome? Hidrelétrica de Itaipu??
Ah! Pra gerar luz, o senhor diz.
Pois bem, conheço não, me desculpe.
Mas se o senhor viesse aqui no tempo em que fui menino,
Haveria de conhecer o nosso Motor da Luz,
Que muitos chamavam Motor de Zé Cardoso.
Ficava lá por trás da Rua de Trás,
Que, naquele tempo, era o fim da cidade,
Pra não incomodar ninguém,
A não ser a família de Agenaro.
Quando o lusco-fusco começava a tomar conta do mundo,
E Félix tocava, na Matriz, a badalada das seis,
Zé Cardoso dava na manica,
E, com uns três ou quatro giros, o bichão pipocava:
Pô pô pô pô pô pô...
No começo, era um terremoto tão grande, que dava medo,
Parecia que ia rachar a terra,
Mas daí a pouco, Zé Cardoso,
Ao mesmo tempo em que assobiava o hino nacional,
Regulava a garganta do bicho,
E ele passava a cantar sereno, miudinho...
Agenaro me confessou, certa vez,
Que se tornara um vício dormir ao som daquela orquestra a diesel.
Então, Zé empurrava uma manivela e... Pluft!
A cidade toda se iluminava, seu moço.
E era a luz mais clara que o senhor teria visto em toda a sua vida.
Quem já tinha acendido o candeeiro ou o Aladin, apagava,
E a cidade ganhava vida noturna.
Os jovens iam para o jardim, paquerar;
As crianças se reuniam nas ruas
A cantar rodas,
Rodar cirandas,
Brincar de ura.
Famílias se visitavam,
As calçadas se enchiam
Casais de mãos dadas, passeavam,
E rolavam as festinhas à radiola,
Os encontros na sorveteria de Tião,
A cidade vibrava,
E quando menos se percebia, eram nove e meia,
Mas não precisava se preocupar com relógio
Porque, exatamente às nove e meia, nem mais nem menos,
Zé Cardoso, assobiando, provavelmente, algum samba-canção,
Puxava e empurrava novamente a manivela.
Pluft! Pluft!
O apagar e acender das luzes eram o famoso sinal.
Sinal!!!! Gritavam os pais. Pra casa!
Era hora de recolher,
Porque dali a exatos 30 minutos, às dez horas,
O que era doce acabou-se,
A cidade voltava às escuras
E os velhos fifós e lamparinas eram acesos,
E nós íamos dormir,
Felizes e orgulhosos do progresso de nossa cidade.
E dali a pouco, ouvíamos, vindo da rua silenciosa,
Um assobio agudo, cortando a noite,
E era um solo maravilhoso de “A volta do boêmio”,
Que nos embalava o sono,
Último som de mais um dia,
Daqueles dias mágicos de minha infância.
Então, seu moço,
Sem querer desfazer de sua hidrelétrica famosa,
Mas nosso Motor da Luz, não iluminou só nossas casas.
Ele inundou de poesia e saudade
As lembranças de algumas gerações.
Que eu saiba, seu moço, aqui na nossa região
Não tem nenhuma usina sucroalcooleira.
Pode ser que, com o progresso,
Uma dessas chegue por aqui.
Mas, enquanto isso, deixa eu lhe falar do engenho de Tio Tota.
Ali, no Arraial de Baixo, bem pertinho da rua,
Nos fundos daquela casa que tem 17 janelas,
O senhor já se deu ao trabalho de contar?
Ele era meu padrinho, seu moço,
E o engenho era de madeira,
Mas era uma obra de pura engenharia,
Da mais alta tecnologia artesanal.
Três moendas, cujos dentes se encaixavam com precisão de GPS,
Movidas por duas parelhas de bois,
Girando, girando, girando,
Pisando em cima do rastro, como se diz,
Por horas e horas e horas, num ritmo hipnotizante.
Mas o bom mesmo era ficar ali sentadinho, na beira do tacho,
O bucho cheio de garapa,
Inebriado, naquele ambiente de mel e sonho:
A cantiga dolente das moendas,
A respiração ofegante dos bois,
O cheiro do bagaço nas narinas,
As abelhas em volta da bica,
O engenho a girar e a girar,
O olho no tacho, à espera da puxa e do batido,
As risadas do velo Cula,
A paciência de Tio Tota,
E o mel...
O mais doce que já se produziu nesse sertão de meu Deus,
E aquela rapadura divina,
Que adoçou a vida de tantas crianças...
E assim, seu moço, a infância se foi,
Fugaz, como a chuva do imbu, em setembro,
E eu nem percebi que essa simplicidade toda
Era, na verdade, a essência dos valores mais puros da vida.
Tão verdadeiros, que inda hoje os trago em mim,
Decorrida uma vida inteira,
Como uma cicatriz de felicidade.
Como uma cicatriz de felicidade.
Pode ser que ainda tenhamos, por aqui, uma usina sucroalcooleira,
Como o senhor diz.
Mas será fria e técnica,
Sem Palmeira e Beija-Flor,
Sem Castelo e Rio Branco
Pra girarem as moendas.
E sem os afilhados de Tio Tota.
E não terá graça nenhuma, seu moço,
Porque Tio Tota já morreu,
E eu... Eu não sou mais criança,
Envelheci.
Banda de rock?
Bem, seu moço, o senhor vá me desculpando,
Mas se é pra falar de música,
O senhor tinha que ter ouvido a Filarmônica de Canabravinha,
Sob a batuta de Seu Augusto Brasil,
Numa procissão domingueira,
Naqueles domingos de maio
Da minha infância.
Os meninos, com seus terninhos brancos,
A cidade enfeitada de palmas de coqueiro,
João Cabelo Azul soltando fogos,
E o céu de um azul... De um azul dos pincéis de Deus,
E aqueles dobrados no ar,
E a Valsa de Santa Terezinha,
E Tardes de Lindóia e Saudades de Matão,
E Tardes de Lindóia e Saudades de Matão,
E a tuba, fon, fon...
Ah, seu moço! Toda criança do meu tempo
Sonhava, um dia, tocar tuba.
Mas, tem mais,
Tem os ternos de Reis:
“Porta aberta e luz acesa, recebei com alegria”
E lá vinha Sá Lió,
E lá vinha Dizé e Nelson e Peixoto,
E o som das mais puras raízes lusoafricanas
Brotando das ruas, das praças, dos becos.
Um som rude, cru, de couros esticados,
Como o lamento e o protesto, saídos do fundo das senzalas,
Para o terreiro da casa-grande,
A fustigar nossa memória atávica,
Despertando remorsos sepultados,
Sob o batuque de um zabumba irônico:
“Seu Antônio é muito bom, Dona Nice, inda é mió”
E de repente, o samba de roda.
Quase se podiam ver os espíritos, vindos de além-mar,
Baixando coletivamente
Nas mulheres, nos senhores, nas crianças:
“Rodou rodou, piranha, tornou rodar, piranha”
E era um grira-gira no salão,
Um sapateado que libertava a alma agrilhoada
E, ao mesmo tempo, a todos escravizava,
Na roda mágica... Magnética.
E a pisada daqueles passos em frenesi, seu moço,
Era mais que samba,
Era a expressão da história de um povo,
Traduzida no protesto do zabumba altivo,
Na cadência da viola conciliadora
E no choro da gaita humilde.
Os ternos de Reis eram, a um só tempo,
Agradecimento e reação,
Alegria e lamento,
Som mais legítimo de uma cultura sem vitrine
E, sobretudo, faziam a festa da meninada daqueles tempos.
Por isso eu digo: quem não sambou no Reis de Sá Lió,
Perdeu o melhor de um tempo bom, que não volta mais.
Hoje, é capaz de o senhor ainda encontrar um ou outro Reis por aí,
No raiar do ano novo,
É bem capaz, mas...
É melhor eu calar meu bico.
Ah, seu moço, pare de fazer perguntas.
Eu sou um ignorante que nunca saiu daqui,
Dessa Paramirim sofrida,
Desse sertão de meu Deus,
Desse pé-de-serra,
Desse Vale encantado.
Conheço muito pouco além de Caraíbas e Caturama.
Mas vivi intensamente a cultura da minha gente
E graças e ela, criei as raízes que me sustentam.
E é uma pena o senhor não ter chegado aqui antes,
Porque não ouviu as cantigas de Dandá:
“Fui andando prum camim, encontrei uma lagartixa,
Tirei meu pé duma banda, ai Deus me livre dessa bicha”.
Não levou uma carreira de Felin;
Não viu Lídia levantar a saia,
Nem Salú comer mosquito;
Não bebeu água do rego, apanhada de carote,
Nem banhou no açude do Zabumbão;
Não conheceu um certo Cristo,
Que nunca bebeu água
Que nunca bebeu água
E viveu mais de cem anos;
Não viu uma briga de Mané Ferrado;
Não ouviu uma serenata de Quinca Araújo:
“Na noite alta enluarada, a serenata passando vai”;
Não dançou no Clube Social, ao som d'Os Atuais;
Nem assistiu Roy Rogers no cinema de Raul;
Não comeu o quebra-queixo de Gostosão;
Não viu a Marujada de seu Maroto:
“O sol nasce alegre, já não chove mais”;
Não viu os bonecos de Seu Ziquinha,
Não arrematou um leilão de Tião Peitudo,
Não ouviu Javan declamar “A flor do maracujá”,
Nem o ouviu bradar:
"Vamo chirrando e vamo pagando!";
Nem o ouviu bradar:
"Vamo chirrando e vamo pagando!";
Não fez uma consulta com Dr. Aurélio,
Não tomou óleo de rícino na farmácia de seu Lauro;
Não viu a arte maior de Osmã;
Não pousou na Pensão de D. Nucy;
Não ouviu as histórias de Seu Melé e Seu Chiquim;
Não ouviu as histórias de Seu Melé e Seu Chiquim;
Não conheceu Seu Messias soldado,
Não assistiu a uma missa do Padre Benvindo;
Nem às Pastorinhas de Dona Nice;
Não viu as máquinas de Tõe da Máquina;
Não conheceu as meninas da Rua de Trás;
Não tomou uma verdinha de Eliza Boneco;
Não foi aluno de Seu Záiter,
Nem aprendeu francês com Major;
Não viu Seu Nestor varrendo a rua,
Não viu os dribles de Dua e Dilermando;
Não ouviu um concerto com Miguelzinho, Edgar e João do Trombone;
Não provou a cachaça de Zé Barbosa,
Nem bebeu no bar de Quinca do Bar;
Não riu com as tiradas de Quelé,
E nem soube quantos partos fez Dona Elza;
Não viu o caminhado de Seu Herculano
Nem o procedimento de Seu Ulisses;
Não participou da Semana da Cultura;
Não visitou o presépio de Tata;
Não deu esmola a Maria e Luiza,
Para ouvir em agradecimento:
“O guarda-chuva, eu acho graça, guarda-chuva de
pobre é cachaça”;
Não dançou um São João de latada,
Nem saiu no Bloco da Borra:
“Quem quiser ficar que fique, quem quiser correr que corra”...
Ah, seu moço, quantas coisas mais o senhor teria visto!
Como já disse, sou ignorante,
Mas, tenho olhos de ver e ouvidos de ouvir.
Sei que as coisas mudaram muito
E tinham mesmo que mudar,
Pois o novo sempre há de vir e será sempre bem-vindo.
Esse não é o problema.
O problema, seu moço,
É quando o "novo" exclui o "velho";
O problema é quando as lendas morrem,
E ninguém mais quer ouvir as histórias de nossos antepassados,
E as tradições são interrompidas,
E nos tornamos uma gente sem identidade,
E passamos a importar identidades estranhas,
E nossas raízes vão ficando apenas na lembrança
De quem viveu outros tempos.
Esse é o problema.
Minha saudade não é saudosismo.
Minha saudade é das coisas que não existem mais.
Dizem os mais entendidos que uma nação se faz com Homens e cultura.
Eu, na minha ignorância, concordo.
Um brasileiro que sabia das coisas,
E por isso morreu perseguido como uma fera,
Escreveu isto:
"Povo que não ama e cultiva suas tradições
Não merece ser um povo livre".
Então, seu moço, a coisa tá feia.
Se ele estiver certo,
Estamos, como uma manada,
Marchando para a escravidão cultural.
Mas, desculpe o desabafo,
Afinal, o senhor não tem nada a ver com isso.
Poderia me estender mais, seu moço,
Mas as palavras, às vezes, como pedras atiradas ao alto,
Caem em nossa própria cabeça.
E eu sou um vivente cauteloso.
Ademais, as coisas estão aí... Não vê quem não quer.
Quero dizer só mais uma coisinha e nada mais:
Do pouquinho que aprendi dessa vida,
Do que vi, do que vivi e do que ouvi dizer,
Concordo com quem já disse, alhures,
Que cultura é o que fica de um povo,
Quando esse povo acaba...
Preciso dizer mais alguma coisa?
Salvador, out/2014
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