sábado, janeiro 12, 2008

Pezão e os javés pigmeus

Estava eu posto em sossego no acampamento de Palmeiróplis, num fim de tarde melancólico de domingo, ainda curtindo a ressaca da noite anterior, quando me anunciam:
- Doutor! Tem um rapaz aí procurando emprego. Diz que é cozinheiro.
Se é um cargo para o qual sempre há vagas num acampamento do tamanho do nosso, é cozinheiro. Primeiro, porque o ofício em si não é fácil. Falta mão-de-obra qualificada. Segundo, porque peão prefere mil vezes a foice ao fogão, por causa do horário de trabalho. E terceiro, porque é necessário equipe de reserva para revezamento, já que os coitados trabalham praticamente 24 horas por dia. De sorte que mandei chamar o candidato para uma entrevista.
Dali a dois minutos me entra um gigante de quase dois metros de altura, espigado e todo desajeitado, com uma camisa rasgada, calção surrado, feições rudes de caboclo e um detalhe especial: seus pés, descalços, eram abertos num ângulo de seus 60 graus, tipo os ponteiros do relógio marcando 10h10. Um saco sujo às costas constituía sua única bagagem.
Me deu vontade de rir daquela figura desengonçada, mas cumprimentei, com cortesia:
- Boa tarde!
- Boa tarde!
- Qual seu nome?
- Pezão.
- Pezão? Pezão não é nome, é apelido.
- É, mas não tem importância não, sô! Todo mundo me chama assim, por causa do meu pé 46. Olha pro senhor ver!
Assim falando, levantou um pé enorme, cheio de cravos, que, na minha ligeira avaliação, era mais do que 46.
- Mas me conte senhor Pezão, o senhor sabe cozinhar mesmo? Já cozinhou em acampamento pra muitas pessoas?
Então, ele me contou curiosíssima história, que agora compartilho com vocês.
Até dois meses antes, trabalhava num acampamento da Vale do Rio Doce, em um local chamado Caseara, às margens do Araguaia, no então estado de Goiás. Era um acampamento pequeno, com dois geólogos e uma dezena de peões. Ele era o único cozinheiro, muito querido pelo pessoal, a quem acompanhava já há dois anos.
A vida transcorria monótona e sem graça, pois, segundo seu relato, a turma saía bem cedo, ele aprontava o almoço e ficava o dia todo na rede, até o meio da tarde, fim do expediente de campo. Nada de novo acontecia, a não ser raras visitas de pescadores que vagavam pelo rio, ou garimpeiros perdidos, pedindo informações. Dias e mais dias nesse marasmo. Uma solidão de doer.
Pois bem, um belo dia, pra seu infortúnio, essa rotina foi quebrada, mas antes não tivesse sido! Estava lá nosso amigo em sua bucólica rede, quando seus ouvidos, acostumados aos sons da mata, captaram estranho ruído.
- Uma anta? Uma capivara?
Perscrutou os arredores, mas não conseguiu identificar ao certo de onde vinham os sons. Poderia ter sido também só uma rajada doida de vento. Assim, despreocupando-se, voltou a se deitar. Melhor seria se tivesse ficado vigilante!
Dez minutos depois, novo roçar de folhas e galhos, mas de forma muito sutil. Não parecia de bicho conhecido. Como se fosse vento mesmo, mas vindo de todos os lados? Ao mesmo tempo em que se viam galhos balançando ao norte, se viam também ao sul, ao leste e oeste. Mas nada à vista. Só a impressão de passos cautelosos e invisíveis. Meio ressabiado, passou a mão na espingarda, botou na beira da rede e voltou para seu bem-bom e fechou novamente os olhos. Foi seu erro fatal.
Ao ouvir passos no terreiro, já dentro do acampamento, deu um salto da rede, mas sua arma não estava mais lá. Pra seu espanto e pavor, cerca de 20 criaturas pequenas, de seus 1,50 m de altura, porém muito fortes e mal encaradas, seminuas e de borduna nas mãos, o cercavam por todos os lados, fechando o círculo, pouco a pouco, ao seu redor.
- Doutor! O medo foi tão grande que eu nem sei direito o que fiz. Acho que borrei as calças e saí correndo, mas os desgraçados não me deixaram dar nem cinco passos! Esbarrei numa parede humana e quando vi, estava amarrado de embira, pé e mão, sem direito a um pio sequer. Os infelizes não disseram uma palavra. Simplesmente me amarraram e me puseram em pé, bem no meio do terreiro, parecendo uma estátua, com três cães de guarda ao meu redor.
Até aí, nosso amigo tinha sofrido apenas agressão psicológica, imobilizado e sem ter a menor noção do que aquilo significava. Intrigado, assistiu a uma espécie de conferência das lideranças, num palavrório alterado, entre algumas risadas. Volta e meia apontavam para ele e a discussão retomava, acalorada.
Finalmente, decorrida meia hora, parece que os conferencistas chegaram a um consenso. Abraçaram-se e puseram as mãos umas sobre as outras, no centro da roda, como um compromisso de solidariedade. E então, a um sinal do que parecia ser o líder maior, todos os pigmeus colocaram-se em fila e se dirigiram à estátua, isto é, ao nosso amigo imóvel, de borduna em punho. E o espancamento começou. Cada um que passava por ele, descia-lhe a borduna sem piedade e de forma alternada: na batata da perna, na coxa, na bunda, nas costas e no peito. Sem proferirem uma palavra sequer. Batiam e davam vez ao seguinte, como um ritual respeitoso. Preservaram a barriga e o rosto, numa clara demonstração de que não desejavam matá-lo, mas apenas dar-lhe uma surra.
As primeiras pancadas, apesar de doídas, eram suportáveis, me garantiu o interlocutor, mas quando vieram as superposições sobre a carne já macerada, na agonia de não poder se defender, um horror tão pavoroso o dominou, que se transformou em muito mais que dor lancinante. Segundo ele, era a própria sensação das torturas infernais, o corpo e alma no limite do sofrimento. Até que desmaiou.
Acordou livre das amarras, dentro da rede, após um tempo que estimou em no máximo uma hora. Ainda com o pavor nos olhos e na mente, a única coisa que fez foi sair correndo, desesperado, pela estrada, apenas com a roupa do corpo e sem saber direito o que estava fazendo. Andou mecanicamente pela estrada deserta, sem parar. Escureceu por completo e nem a noite cerrada o deteve. Garantiu-me que não sentia dor, nem fome nem sede. Apenas medo... Um medo maior do que qualquer outra sensação.
Somente ao alvorecer encontrou uma alma piedosa, num povoado chamado Barrolândia. Ali, recebeu a primeira assistência: café quente e um catre pra dormir. Ao acordar, cercado de curiosos, contou sua desventura e ficou sabendo tratar-se de uma dissidência da tribo Javaé, se não me falham os neurônios, oriunda da ilha do Bananal, que costuma fazer incursões em fazendas para saquear e amedrontar os moradores.
Logo chegou um carro da Vale, que o levou até Guaraí, onde recebeu tratamento médico num posto de saúde – ele era um hematoma ambulante. Todo o dinheiro que recebera, gastou com medicamentos, de modo que botou, literalmente, seu pezão na estrada e caminhou durante dois meses, ininterruptamente, com o objetivo de chegar em Goiânia. Nesse meio tempo, sobrevivera da caridade alheia e de pequenos bicos em restaurantes, postos de gasolina, borracharias, etc.
Em Santa Teresa, lhe falaram do nosso acampamento e ele resolvera arriscar, após certificar-se de que por ali não havia nem resquícios de índios.
- E é essa a minha história doutor.
Uma grande compaixão me invadiu. Não sei se o achava frágil ou forte, mas apenas vi um ser humano em busca de socorro, com muita dignidade. Lembrei-me de uns versos de Gonzaguinha, sobre a condição humana:

Eta mundo que a nada se destina!
Se maior se faz, mais se arruína,
Se mais quer servir, mais nos domina,
Se mais vidas dá, são mais os danos,
Se mais Deus lhes dá, mais são profanos.
Esses pobres de nós, seres humanos
!

Pezão ficou conosco pouco tempo, pois não era muito chegado a hábitos de higiene e entrou em conflito com o chefe Cabelo. Tinha a mania de cuspir nas mãos para pegar nos cabos das panelas. Tentei levá-lo para abrir picadas, mas não conseguimos botas que lhe coubessem nos pés desmedidos.
E assim nossas histórias se separaram. Mandei deixá-lo em Santa Teresa e nunca mais soube dele e agora me dou conta também de que nem cheguei a saber seu verdadeiro nome. Para mim será simplesmente Pezão, uma lembrança, entre tantos dramas humanos que se cruzaram com os meus, nesses sertões esquecidos do mundo. Mas inda lembro seu sorriso amarelo, quando dizia:
- Doutor! O pior da surra era o gosto de sangue na boca, quando a borduna batia no meu peito.
É... Quem já foi torturado sabe o que isso significa.

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