O cara era fera no violão. Do sertanejo mais brega, ao rock mais pop da época, década de 70, ele “transava todas sem sair do tom”, como diz um famoso conterrâneo. Mas, como todo artista, era cheio de esquisitices e por isso tinha dificuldades de relacionamento. Por exemplo, a condição sine qua non pra ele se dignar a tocar, era o silêncio total e absoluto. Um pio que fosse, uma cadeira arrastada, um espirro, ele parava solenemente de tocar e saía puto da vida, resmungando e chamando todo mundo pra briga. Só porá vocês terem uma idéia do quanto ele levava a sério suas exibições, certa vez, em uma festinha de crianças, em sua casa, quebrou um violão na cabeça de ninguém menos do que sua esposa, mãe do aniversariante. É mole, ou quer mais?
O cara era o Elvis, nome fictício, claro, em homenagem a um de seus ídolos confessos. Éramos sete geólogos no projeto, naquela pequenina cidade do interior goiano. Imaginem a revolução que causamos na pacata comunidade! Por esquisito demais, o Elvis não ficou com a gente no hotel. Alugou um quartinho na periferia e às vezes ficávamos dias sem vê-lo. Não tinha motorista e sim um auxiliar de campo. Ele mesmo dirigia o Toyota, ao mesmo tempo em que navegava na fotografia aérea. Era o cara!
Certa noite, já por volta da 21h00, o senhorio do quartinho mandou nos avisar que o Dr. Elvis ainda não tinha chegado do campo. Acendemos a luz amarela, mas conhecendo nosso amigo, resolvemos dar mais um tempo. Finalmente, às 23h00 decidimos que tínhamos de fazer alguma coisa e, no caso, o mais imediato seria enviar uma equipe para a área, com suprimentos, primeiros socorros e fogos, pra facilitar a localização no escuro da noite. Como a minha folha era contígua à dele, o chefe do projeto determinou que iríamos ele, eu e meu motorista, que era da cidade e conhecia bem a região. Os demais deviam permanecer e ficarem alertas para o dia seguinte. Caso não estivéssemos de volta ao amanhecer, ficassem na cidade aguardando notícias. De modo que antes da meia noite partimos para nossa aventura noturna, pedindo a Deus que apenas o veículo tivesse dado problemas. Mas, as possibilidades trágicas eram muitas e tínhamos consciência disso. Picada de cobra e outros bichos venenosos, ataque de feras, emboscada de grileiros ou posseiros, assalto, acidente grave, seqüestro... Enfim, o que era certo é que algo acontecera a um dos dois, aos dois, ou ao veículo.
Com a ajuda do meu motorista, fomos indagando nas fazendas - pedidno desculpas, pelo adiantado da hora - e assim refazendo o trajeto da equipe naquele dia. De tempos em tempos, soltávamos rojões coloridos, que estremeciam a solidão do sertão silencioso, parecendo um tiro de canhão. Só tínhamos de volta os pios das corujas, o vento nas folhagens e os ecos soturnos dos sons nas serranias, que mais aumentavam nossa angústia.
Finalmente, pouco mais de 4h00, quando já perdíamos as esperanças, surge na estrada um vulto correndo em nossa direção, os braços levantados em euforia. Era o Elvis. Abraçamos-nos, todos chorando de emoção e alívio. O pobre estava bastante arranhado, com as roupas rasgadas e implorava por água.
Recomposta a serenidade, narrou-nos, de uma maneira bem simplória, como era seu feitio, que não houvera nada grave. Apenas o carro tinha caído num buraco e no baque, o pneu dianteiro esquerdo tinha estourado. Por mais que tentassem, ele e o ajudante não conseguiram apoiar o macaco para substituir o pneu danificado. Anoiteceu e ele tinha resolvido aguardar o dia amanhecer, até que viram os sinalizadores que emitíramos e ele veio então ao nosso encontro, pedindo ao auxiliar para permanecer no local. Mas o veículo estava bem longe dali. Pelos seus cálculos, tinha caminhado mais de uma hora, após ver os fogos, no meio do cerrado, para cortar caminho.
Por sua própria sugestão, resolvemos regressar à cidade, para tranqüilizar a equipe e voltar, mais tarde, com o suporte necessário para o resgate do veículo. Assim foi feito.
Antes das 7h00 estávamos de volta à cidade, onde, após o necessário descanso, mobilizamos o melhor mecânico do lugar, munido de seus equipamentos portáteis mais avançados, além de correntes e macacos para todo tipo de resgate possível. De modo que, às 13h00 lá fomos de novo, em dois veículos, eu, o Dete, meu motorista, o chefe do projeto e o Elvis, no meu jipe. No outro, ia um motorista da CPRM, o mecânico da cidade e seu ajudante, além de toda a parafernália de ferramentas.
Elvis era o guia e aí começou nosso pequeno drama, porque ele não localizava o local exato em que saíra da estrada principal. Todos pensávamos que ele tinha tomado algum trilho ou estrada carroçável, pelo menos. E, nesses casos, a prudência determina assinalar referências precisas nas fotos, para garantir a localização. Não foi o que se deu, no entanto. O Elvis não tinha nenhuma referência e seu achismo não funcionou de jeito nenhum. Até que, já umas 16h00 ele confessou que, na verdade, não tinha pego estrada nem caminho nenhum. Tinha mesmo era enfiado o jipe no cerrado, por uma campina que se apresentava plana, coberta de vegetação rasteira, muito comum na região, em busca de um córrego, guiando-se pela bússola e calculando a distância pelo odômetro do veículo. O único dado preciso, era que tinha rodado 02 km após sair da estrada.
Fizemos uma conferência, sob imenso pé de ipê roxo e delimitamos a área possível e provável de localização do veículo e do pobre auxiliar do Elvis que, a essa altura, pouco contribuía, completamente desorientado. Estabelecemos que os dois veículos deveriam entrar no cerrado por pontos diferentes, segundo uma trajetória convergente, pré-determidada. Nesse trajeto, pelos nossos cálculos, obrigatoriamente, um dos veículos cruzaria com o rastro do jipe quebrado. Daí, era só seguir a pista, cerrado a dentro. Combinamos as formas de comunicação e iniciamos a operação resgate, quando já começava a escurecer. Nossa água estava quase no fim, pois não prevíramos virar o dia.
A estratégia, como não poderia deixar de ser, funcionou e mais ou menos 19h30, ouvimos o sinal combinado, significando que o outro jipe localizara a pista ou o próprio veículo quebrado. A essa altura, dentro do cerrado e no escuro, nosso deslocamento era a passo de tartaruga, em primeira marcha, com a bússola em punho e revendo a localização a cada cem metros, com os faróis do jipe e um estereoscópio de bolso.
A água tinha acabado e a sede nos atacou, como se tivéssemos há dias sem beber. Mas eu sabia que era só psicológico. Calculamos que o sinal enviado distava cerca de 300 metros, no máximo e todos, menos eu, decidiram acabar de chegar a pé, o que seria mais rápido que utilizando o Toyota, naquelas circunstâncias. Além do mais, nesse trajeto, certamente haveria um córrego com água para matar a sede.
Macaco velho, decidi ficar no jipe. Não me aventuraria pela escuridão do cerrado, sabendo que, de qualquer jeito iria passar a noite no mato. Levaram as caixas de fogos e se mandaram. De tempos em tempos se comunicavam com a outra equipe, através dos fogos. Resignado, baixei as cortinas do jipe (capota de lona) e procurei dormir, apesar do medo que a solidão da mata noturna infunde. Naturalmente, foi um sono descontínuo, sobressaltado, mas o fato é que, finalmente, senti a luz do arrebol no horizonte e tomei ânimo novo. Assim a claridade se impôs, peguei um facão e fui no rastro dos colegas, a pé.
Ironia, do destino: menos de 100 metros adiante, deparei com a pista do jipe do Elvis. Daí, menos de meia hora de caminhada depois, dei com o outro jipe sem ninguém. Pelos galhos dos arbustos quebrados ou cortados, fui seguindo a trilha dos andarilhos, até encontrá-los, na beira de um córrego, onde tinham passado a noite, tamanha era a sede que os acossara. Todos, principalmente o Elvis, mal-humorados, muito arranhados e picados de mosquitos. O Toyota quebrado estava bem perto, quase no barranco do córrego, a roda dianteira esquerda desaparecida numa vala, com a traseira oposta semi-suspensa.
Mal se agachou, para a primeira avaliação, o mecânico diagnosticou:
- Ih!!!!! Esse, só rebocado... Não sai daqui rodando nem a pau!
- Mas como? Não foi só o pneu que estourou?
O mecânico deu mais uma avaliada, por dentro do capô e por baixo do veículo e sentenciou, irônico:
- Que nada doutor! O pneu é o menor problema que temos aqui. O que houve, na verdade, foi um acidente violento. Não sei como o doutor não se machucou. O tranco foi muito violento e, pelo visto, não estava só a 10 km/h. A pancada foi tão forte que, além de estourar o pneu, estilhaçou a roda, quebrou a bandeja e a barra de direção, arrebentou o sistema de freios, furou o radiador e empenou a suspensão. Isso, assim, numa primeira avaliação... Não tem a menor condição de fazermos nada aqui, a não ser providenciar o reboque.
Todos os olhares se voltaram para o Elvis. Com um sorriso amarelo nos lábios, ele negava que estivesse em velocidade incompatível, apesar de que, depois, vimos uma imensa mancha roxa em sua coxa direita, provocada pela alavanca de câmbio.
Sem jeito a dar, marcamos as referências na fotografia e voltamos à cidade, No dia seguinte uma equipe profissional retornou ao campo e foram necessários mais dois dias para o reboque seguro do carro.
Naquela noite, enquanto tomávamos umas cervejas, comentando o ocorrido, não consegui calar uma pergunta:
- Elvis! Tire-me uma dúvida. Quando começou a escurecer, por que você não voltou para a estrada, caramba?
- Por que, àquela altura, já estava andando em círculos e comecei a cruzar meus rastros em todas as direções... Fiquei desnorteado.
- Pombas! Mas você não estava com a bússola? Por que foi seguir rastros se tinha a bússola, cacete?!
Aí, ouvimos a resposta mais estapafúrdia que poderíamos ter ouvido, principalmente partindo de um geólogo já com mais de 10 anos de formado.
- Pois é! Até coloquei a bússola, mas eu estava tão certo do rumo da estrada, que quando ela apontou noutra direção, supus que fosse influência das forças magnéticas noturnas, atração lunar, sei lá... Pensei cá comigo: à noite, a bússola deve ficar porralouca. Daí, segui meu faro de dobermann, mas a noite embotou o senso do velho cão, hehe!
Todos nos entreolhamos sem acreditar no que ouvíramos. O silêncio foi tão constrangedor, que se ouvia o barulhinho do precioso líquido escorrendo por nossas gargantas secas.
Adão* – que Deus o tenha! - que até então se mantivera calado, filosofou, cofiando a barbicha, como se pensasse alto:
- Forças magnéticas noturnas... Bússola porralouca... Faro de dobermann...
Finalmente, virando-se para o “dobermann” atrapalhado:
- Ô Elvis, eu vou te dizer uma coisa. Tu, como geólogo, é um grande tocador de violão, sabia? O esqueleto do Derby** deve ter se revirado na tumba, de vergonha, quando tu guardou a bússola.
Depois das risadas, como que querendo melhorar sua imagem, o Elvis propôs:
- Por falar em violão, vamos cantar umas músicas? A noite está deliciosa!
Daí 20 minutos o bar de seu Quincas virou uma casa de shows, com o Elvis em cima de uma mesa, sacudindo freneticamente a cabeleira, mandando ver:
O cara era o Elvis, nome fictício, claro, em homenagem a um de seus ídolos confessos. Éramos sete geólogos no projeto, naquela pequenina cidade do interior goiano. Imaginem a revolução que causamos na pacata comunidade! Por esquisito demais, o Elvis não ficou com a gente no hotel. Alugou um quartinho na periferia e às vezes ficávamos dias sem vê-lo. Não tinha motorista e sim um auxiliar de campo. Ele mesmo dirigia o Toyota, ao mesmo tempo em que navegava na fotografia aérea. Era o cara!
Certa noite, já por volta da 21h00, o senhorio do quartinho mandou nos avisar que o Dr. Elvis ainda não tinha chegado do campo. Acendemos a luz amarela, mas conhecendo nosso amigo, resolvemos dar mais um tempo. Finalmente, às 23h00 decidimos que tínhamos de fazer alguma coisa e, no caso, o mais imediato seria enviar uma equipe para a área, com suprimentos, primeiros socorros e fogos, pra facilitar a localização no escuro da noite. Como a minha folha era contígua à dele, o chefe do projeto determinou que iríamos ele, eu e meu motorista, que era da cidade e conhecia bem a região. Os demais deviam permanecer e ficarem alertas para o dia seguinte. Caso não estivéssemos de volta ao amanhecer, ficassem na cidade aguardando notícias. De modo que antes da meia noite partimos para nossa aventura noturna, pedindo a Deus que apenas o veículo tivesse dado problemas. Mas, as possibilidades trágicas eram muitas e tínhamos consciência disso. Picada de cobra e outros bichos venenosos, ataque de feras, emboscada de grileiros ou posseiros, assalto, acidente grave, seqüestro... Enfim, o que era certo é que algo acontecera a um dos dois, aos dois, ou ao veículo.
Com a ajuda do meu motorista, fomos indagando nas fazendas - pedidno desculpas, pelo adiantado da hora - e assim refazendo o trajeto da equipe naquele dia. De tempos em tempos, soltávamos rojões coloridos, que estremeciam a solidão do sertão silencioso, parecendo um tiro de canhão. Só tínhamos de volta os pios das corujas, o vento nas folhagens e os ecos soturnos dos sons nas serranias, que mais aumentavam nossa angústia.
Finalmente, pouco mais de 4h00, quando já perdíamos as esperanças, surge na estrada um vulto correndo em nossa direção, os braços levantados em euforia. Era o Elvis. Abraçamos-nos, todos chorando de emoção e alívio. O pobre estava bastante arranhado, com as roupas rasgadas e implorava por água.
Recomposta a serenidade, narrou-nos, de uma maneira bem simplória, como era seu feitio, que não houvera nada grave. Apenas o carro tinha caído num buraco e no baque, o pneu dianteiro esquerdo tinha estourado. Por mais que tentassem, ele e o ajudante não conseguiram apoiar o macaco para substituir o pneu danificado. Anoiteceu e ele tinha resolvido aguardar o dia amanhecer, até que viram os sinalizadores que emitíramos e ele veio então ao nosso encontro, pedindo ao auxiliar para permanecer no local. Mas o veículo estava bem longe dali. Pelos seus cálculos, tinha caminhado mais de uma hora, após ver os fogos, no meio do cerrado, para cortar caminho.
Por sua própria sugestão, resolvemos regressar à cidade, para tranqüilizar a equipe e voltar, mais tarde, com o suporte necessário para o resgate do veículo. Assim foi feito.
Antes das 7h00 estávamos de volta à cidade, onde, após o necessário descanso, mobilizamos o melhor mecânico do lugar, munido de seus equipamentos portáteis mais avançados, além de correntes e macacos para todo tipo de resgate possível. De modo que, às 13h00 lá fomos de novo, em dois veículos, eu, o Dete, meu motorista, o chefe do projeto e o Elvis, no meu jipe. No outro, ia um motorista da CPRM, o mecânico da cidade e seu ajudante, além de toda a parafernália de ferramentas.
Elvis era o guia e aí começou nosso pequeno drama, porque ele não localizava o local exato em que saíra da estrada principal. Todos pensávamos que ele tinha tomado algum trilho ou estrada carroçável, pelo menos. E, nesses casos, a prudência determina assinalar referências precisas nas fotos, para garantir a localização. Não foi o que se deu, no entanto. O Elvis não tinha nenhuma referência e seu achismo não funcionou de jeito nenhum. Até que, já umas 16h00 ele confessou que, na verdade, não tinha pego estrada nem caminho nenhum. Tinha mesmo era enfiado o jipe no cerrado, por uma campina que se apresentava plana, coberta de vegetação rasteira, muito comum na região, em busca de um córrego, guiando-se pela bússola e calculando a distância pelo odômetro do veículo. O único dado preciso, era que tinha rodado 02 km após sair da estrada.
Fizemos uma conferência, sob imenso pé de ipê roxo e delimitamos a área possível e provável de localização do veículo e do pobre auxiliar do Elvis que, a essa altura, pouco contribuía, completamente desorientado. Estabelecemos que os dois veículos deveriam entrar no cerrado por pontos diferentes, segundo uma trajetória convergente, pré-determidada. Nesse trajeto, pelos nossos cálculos, obrigatoriamente, um dos veículos cruzaria com o rastro do jipe quebrado. Daí, era só seguir a pista, cerrado a dentro. Combinamos as formas de comunicação e iniciamos a operação resgate, quando já começava a escurecer. Nossa água estava quase no fim, pois não prevíramos virar o dia.
A estratégia, como não poderia deixar de ser, funcionou e mais ou menos 19h30, ouvimos o sinal combinado, significando que o outro jipe localizara a pista ou o próprio veículo quebrado. A essa altura, dentro do cerrado e no escuro, nosso deslocamento era a passo de tartaruga, em primeira marcha, com a bússola em punho e revendo a localização a cada cem metros, com os faróis do jipe e um estereoscópio de bolso.
A água tinha acabado e a sede nos atacou, como se tivéssemos há dias sem beber. Mas eu sabia que era só psicológico. Calculamos que o sinal enviado distava cerca de 300 metros, no máximo e todos, menos eu, decidiram acabar de chegar a pé, o que seria mais rápido que utilizando o Toyota, naquelas circunstâncias. Além do mais, nesse trajeto, certamente haveria um córrego com água para matar a sede.
Macaco velho, decidi ficar no jipe. Não me aventuraria pela escuridão do cerrado, sabendo que, de qualquer jeito iria passar a noite no mato. Levaram as caixas de fogos e se mandaram. De tempos em tempos se comunicavam com a outra equipe, através dos fogos. Resignado, baixei as cortinas do jipe (capota de lona) e procurei dormir, apesar do medo que a solidão da mata noturna infunde. Naturalmente, foi um sono descontínuo, sobressaltado, mas o fato é que, finalmente, senti a luz do arrebol no horizonte e tomei ânimo novo. Assim a claridade se impôs, peguei um facão e fui no rastro dos colegas, a pé.
Ironia, do destino: menos de 100 metros adiante, deparei com a pista do jipe do Elvis. Daí, menos de meia hora de caminhada depois, dei com o outro jipe sem ninguém. Pelos galhos dos arbustos quebrados ou cortados, fui seguindo a trilha dos andarilhos, até encontrá-los, na beira de um córrego, onde tinham passado a noite, tamanha era a sede que os acossara. Todos, principalmente o Elvis, mal-humorados, muito arranhados e picados de mosquitos. O Toyota quebrado estava bem perto, quase no barranco do córrego, a roda dianteira esquerda desaparecida numa vala, com a traseira oposta semi-suspensa.
Mal se agachou, para a primeira avaliação, o mecânico diagnosticou:
- Ih!!!!! Esse, só rebocado... Não sai daqui rodando nem a pau!
- Mas como? Não foi só o pneu que estourou?
O mecânico deu mais uma avaliada, por dentro do capô e por baixo do veículo e sentenciou, irônico:
- Que nada doutor! O pneu é o menor problema que temos aqui. O que houve, na verdade, foi um acidente violento. Não sei como o doutor não se machucou. O tranco foi muito violento e, pelo visto, não estava só a 10 km/h. A pancada foi tão forte que, além de estourar o pneu, estilhaçou a roda, quebrou a bandeja e a barra de direção, arrebentou o sistema de freios, furou o radiador e empenou a suspensão. Isso, assim, numa primeira avaliação... Não tem a menor condição de fazermos nada aqui, a não ser providenciar o reboque.
Todos os olhares se voltaram para o Elvis. Com um sorriso amarelo nos lábios, ele negava que estivesse em velocidade incompatível, apesar de que, depois, vimos uma imensa mancha roxa em sua coxa direita, provocada pela alavanca de câmbio.
Sem jeito a dar, marcamos as referências na fotografia e voltamos à cidade, No dia seguinte uma equipe profissional retornou ao campo e foram necessários mais dois dias para o reboque seguro do carro.
Naquela noite, enquanto tomávamos umas cervejas, comentando o ocorrido, não consegui calar uma pergunta:
- Elvis! Tire-me uma dúvida. Quando começou a escurecer, por que você não voltou para a estrada, caramba?
- Por que, àquela altura, já estava andando em círculos e comecei a cruzar meus rastros em todas as direções... Fiquei desnorteado.
- Pombas! Mas você não estava com a bússola? Por que foi seguir rastros se tinha a bússola, cacete?!
Aí, ouvimos a resposta mais estapafúrdia que poderíamos ter ouvido, principalmente partindo de um geólogo já com mais de 10 anos de formado.
- Pois é! Até coloquei a bússola, mas eu estava tão certo do rumo da estrada, que quando ela apontou noutra direção, supus que fosse influência das forças magnéticas noturnas, atração lunar, sei lá... Pensei cá comigo: à noite, a bússola deve ficar porralouca. Daí, segui meu faro de dobermann, mas a noite embotou o senso do velho cão, hehe!
Todos nos entreolhamos sem acreditar no que ouvíramos. O silêncio foi tão constrangedor, que se ouvia o barulhinho do precioso líquido escorrendo por nossas gargantas secas.
Adão* – que Deus o tenha! - que até então se mantivera calado, filosofou, cofiando a barbicha, como se pensasse alto:
- Forças magnéticas noturnas... Bússola porralouca... Faro de dobermann...
Finalmente, virando-se para o “dobermann” atrapalhado:
- Ô Elvis, eu vou te dizer uma coisa. Tu, como geólogo, é um grande tocador de violão, sabia? O esqueleto do Derby** deve ter se revirado na tumba, de vergonha, quando tu guardou a bússola.
Depois das risadas, como que querendo melhorar sua imagem, o Elvis propôs:
- Por falar em violão, vamos cantar umas músicas? A noite está deliciosa!
Daí 20 minutos o bar de seu Quincas virou uma casa de shows, com o Elvis em cima de uma mesa, sacudindo freneticamente a cabeleira, mandando ver:
“Yesterday, all my troubles seemed so far away, now it looks as though they´re here to stay, oh I believe in yesterday...”
O bar se encheu de garotas e Adão, num canto afastado da algazarra, não deixou por menos:
- É... O dobermann pode não ter faro pra se localizar no meio do cerrado, mas pra farejar as lebres da cidade, não tem melhor!
..........................................................................
* Nome fictício
** Naturalista inglês, falecido em 1915, considerado pai da geologia no Brasil
* Nome fictício
** Naturalista inglês, falecido em 1915, considerado pai da geologia no Brasil