terça-feira, dezembro 19, 2006

Velha Caderneta de Campo

Do fundo do baú, do fundo da vida, do fundo do tempo, retiro uma vela caderneta de campo. As marcas de suor em suas sujas, barrentas páginas, vejo-as agora como gotas caídas das minha próprias idéias, da minha alma, do meu cansaço. Cada palavra escrita em péssima caligrafia lembra circunstâncias polarizadas entre a euforia e o sofrimento. Entre a descoberta de uma nova ocorrência de ouro e a saudade da filha recém-nascida. Entre a satisfação de encontrar uma preciosidade estrutural e o sobressalto pelo golpe frustrado da serpente. Entre a realização de estar forjando as geociências no Brasil e o terror de pensar que este cansaço, essa febre, poderia ser mais uma malária.
Algumas frases não são mais legíveis. Não sei mais o que escrevi. Mas, mesmo que jamais se recuperem essas palavras, uma coisa posso lhes afirmar: como acreditei nelas! Eram minha vida.
Talvez só Freud explique, mas o fato é que toda vez que me via escalando uma escarpa, sob o nosso escaldante sol tropical, com o suor a escorrer pela testa, pelos olhos, pela vida, pelo mundo, lutando contra o peso, os músculos, a gravidade, a vegetação e as cobras eu refletia. Em tais circunstâncias, seria totalmente impossível alguém ter estado de espírito para raciocinar com calma, ou mesmo fazer alguma observação isenta, criteriosa. O desconforto físico predispõe contra o detalhe. Perde a geologia. Creio até que muitas descrições de afloramentos foram prejudicadas por essa impaciência e irritação que o mal-estar físico gera. E aí - quem saberá por quê? - sempre me vinha à mente a imagem de Vandré, implacavelmente torturado, sendo obrigado a criar, ali mesmo, na sala de torturas, uma nova canção. A força da criação brotando da chibata.
Várias páginas molhadas pela chuva foram totalmente destruídas. Acode-me o terror das tempestades na floresta. O Universo a nos lembrar nossa pequenez. Galhos caindo, a escuridão, bichos correndo... E aquele aperto no coração, aquela angústia. A suprema humilhação. Em algumas ocasiões radicalizava-me contra Deus: “a chuva é castigo divino para os desabrigados”. Depois, vinha um sol gostoso e eu concluía que não sabia nada de chuva, de sol e de Deus.
Não sei por que misteriosas razões, uma página em branco me traz à mente noites de agonia na selva. Perdidos, eu e meus companheiros. Andando, rondando, desesperando... Sem rumo, sem destino, só a solidão e o medo... E essa sede, que até hoje ainda me seca a garganta. Os sons das matas, à noite, são indescritíveis.
Há até uma poesia entre essas velhas páginas. Desde menino tenho a mania de rabiscar versos aqui e ali, pretensiosamente. Vejo que esses foram rabiscados, com muita pressa, entre um afloramento de xisto e um quartzito. Falam de uma trilhazinha sinuosa, perdida numa encosta distante, onde, eu supunha, nunca passara vivalma. Despertou meu lirismo por ser recoberta de pedrinhas brancas, reluzentes ao sol. Lembrei-me de velha canção da infância. O fato é que as matas são verdadeiros labirintos, onde se cruzam miríades de trilhas, caminhos, atalhos. De todo lado, de todas as formas. Como se cada bicho tivesse sua via particular. Ninguém sabe de onde vêm, nem aonde levam. Para nós, fica apenas o mistério. Sem falar daquela inquietante sensação de que estamos sendo observados, o tempo todo, por invisíveis e felinos pares de olhos.
Doze afloramentos idênticos e consecutivos de uma mesma litologia. Em todos eles, mesmos minerais, mesmas estruturas, mesmas texturas. Enfim, afloramentos absolutamente iguais. Rotina de dois dias de trabalho, como se fosse o tédio de uma vida inteira. Todos os dias, indo e vindo pelos mesmos caminhos, pelas trilhas absurdas do nada. Nos mapeamentos geológicos, assim como na vida, vale uma regra de ouro: se tudo começa a ficar repetitivo, mude a direção da caminhada. 90 graus, de preferência.
Entre duas páginas, vêem-se, preservados, numa espécie de estranha fossilização, restos de um infeliz pernilongo. Permaneceu ali, fixado, anos a fio, em seu próprio sangue. Ou terá sido meu próprio sangue? As asas abertas compõem uma minúscula cruz. Acode-me a sentença popular de que cada um carrega sua própria cruz. A cruz do destino. Muitos se lamentam pelo peso que lhe coube. Reclamam. Blasfemam. De minha parte, sou conformado. Revejo meu passado e resigno-me. Não me preocupa que meu fardo seja mais leve ou mais pesado que o dos outros. Para mim, é apenas minha cruz. Basta. A subida é longa e não adianta resmungos. Sou assim. Não costumo perder tempo com coisas que estão fora do meu alcance. A cruz é minha e devo carregá-la. Isto está ao meu alcance.
Enfim, folheio a última página. Entre vagas anotações e telefones que nem desconfio de quem sejam, a caligrafia de um velho amigo, companheiro de infortúnios, alegrias e marteladas, em um tempo passado. Nunca mais o vi. Sumiu-se, tragado na roda-viva dos anos. Na verdade, agora me questiono. Acho mesmo que nunca cheguei a vê-lo, realmente. Nem durante nossa breve convivência. Igual ao valente índio do filme americano, meu coração fica pesado, como as nuvens de chumbo. Onde andará meu velho amigo? Por que nunca mais fizemos contato? Não sou covarde, mas sei reconhecer que há coisas impossíveis.
Empolgado com as recordações, retorno àqueles banquetes reais, geralmente às margens de algum igarapé, riacho, córrego, arroio, ou mesmo sob a fronde de alguma gameleira, juazeiro, mangueira, nos ermos dos interiores do Brasil. Um peão dava o sinal: -“Opa! Hora da tristeza do patrão e alegria do peão!”. E dos alforjes brotavam charque, farinha, ovo, sardinha, laranja, banana, sanduíches, uma festa. Se a época fosse propícia, abundava açaí, manga, cajuí, castanha, mangaba, umbu, ouricuri. Tudo dividido, comunitário, regado a água quente de cantil. As conversas, nesses minutos de banquete, eram deliciosas, invariavelmente versando sobre mulheres, maridos traídos, os cornos da cidade, futebol e essas coisas ingênuas, da essência da peãozada, que garantia o bom humor sempre em alta. Em algumas ocasiões muito especiais, tinha sobremesa de leite moça, a felicidade suprema naqueles rincões esquecidos. Quando chegava a hora, eu me vingava, divertido:
-“Opa! Hora da tristeza do peão e alegria do patrão!”. E lá ia aquela comitiva estranha, procurando o que não foi perdido, não se sabe onde, pra não sei o quê, como dizia o filósofo Orneides, o peão mais inteligente que conheci. Que filosofias fará hoje, o Orneides?
Fecho a velha caderneta. Desculpe as lágrimas. Fecho também o passado. Afloramentos, serpentes, pernilongos, sede, fome e dor. Saudades das minhas velhas saudades, velhos companheiros, filhas novas. O tempo é como o suor, a nos brotar da testa, dos olhos, sempre renovado. Interminável, a prenunciar novas caminhadas, nos consumindo, nos definhando, nos liquefazendo. Invencível. Não tente lutar contra ele. Simplesmente aproveite-o. Acredite em mim: ele passa!
Fosse alguém importante, comporia um memorial, ou doaria esses velhos escritos a algum museu. Mostraria aos curiosos do futuro, como se fazia geologia na década de setenta, no Brasil. Seria engraçado ver-lhes os sorrisos zombeteiros ante minha trova das pedrinhas brancas. Mas, enfim, sendo quem sou, acho que este velho baú está muito bom para uma relíquia vulgar, já quase ilegível. Até que as traças, por fim, dêem-lhe destino final.
Não sei se por fatalidade ou por mera contingência da profissão, mas agora, trancado o baú, lembro-me do saudoso poeta. O fato é que sempre, por toda a minha vida, por todos os lugares em que andei, sempre houve muitas pedras no meu caminho. Jamais me esquecerei disto.
Por falar nisso, o que é mesmo que eu vim procurar nesse baú? Alguém se lembra? O martelo. O martelo!??
Cá pra nós, estava revolvendo a terra do jardim, quando encontrei uma pequena lasca de pedra escura, granular, tipicamente ígnea, dura como quê! Mas eu moro em cima de uma formação recente! Um arrepio tomou-me inteiro. Que se dane a idade, a artrite e o bico-de-papagaio! Pintou um mistério geológico. Pode ser a martelada da minha vida! Puta que pariu! Quem pegou a porra desse martelo? Olha aqui, se minha mulher deu meu martelo pro pedreiro que trocou o piso da cozinha, mês passado, juro que vou pedir o divórcio. Já basta minha Brunton que ela doou para uma casa de antiguidades! Hoje eu quebro aquela amostra nem que seja na minha própria testa!

(Homenagem aos geólogos, bandeirantes modernos, que, nas décadas de 70 e 80, se embrenharam nas matas, nas caatingas, nos cerrados, nos campos e nos pampas, desbravando e forjando a geologia do Brasil, tirando leite das pedras, sem o devido reconhecimento, por parte da sociedade.)

sábado, dezembro 16, 2006

Parodiando o Poeta

E agora Drumond?
Me manda de Minas a pista,
Que eu saí da risca,
Que eu caí na isca
E essa vida arisca
Não tem compaixão.
Cadê seu José?
Cadê seu João?
Cadê quem me ensina?

José se perdeu,
João se escondeu
Nem sobrou Maria,
Que na romaria
Deu no que deu.
Nem sobrou Sinhá
Que no bafafá
Deu o que falar.

E aí Vanzolini?
E a volta por cima,
Como é que se dá?
Como é que se limpa
A cara de tacho?
Como é que se ergue
Um peito capacho?
Me manda a receita
Dessa Sampa esperta,
Dessa sempre alerta!

E agora mundão,
Como é que se safa?
Depois da farra, a ressaca
E o remorso, um bate-estaca,
Que nos tritura e estafa.
Quem é que agüenta a barra?
E esta vida só?
E esta vida sem?
Sem amor, sem vintém...

Tudo bem, a dor a gente abafa,
A fome a gente aplaca,
Mas... e os filhos?!
Como supri-los,
Sem renunciá-los,
Se perdi meus brilhos,
Se perdi meu trilhos,
Eu, que fi-los, porque qui-los?
E agora, Jânio, seu puto!
Quem afasta de mim esses grilos?

E agora gente?
E agora Deus?
Tô aí na barca
Dessa vida torta,
Dessa vida curta,
Sem meu bugarim,
Sem meu pé de murta,
Sem meus oito anos...
E agora, e agora?
A agora você?

Cadê Miguelim?
Cadê Guimarães?
Cadê João Cabral?
Rimai, poetas, rimai!
Cantai, cantores, cantai!
E agora Dylan?
Cadê as respostas
Que flutuariam
Bailando no ar?
E essa calmaria?
E esses anos todos?
Onde estão os ventos?
Creindeuspadre, avemaria,
Que será de mim?
Será, enfim, o meu fim??
............................................
(Uruaçu-GO, Out-85)

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Baetinha, o craque da camisa 11

Essa é muito boa.
Era final dos anos 70. Desenvolvíamos um projeto na região de Cavalcante, GO. Entre geólogos, geoquímicos, técnicos, motoristas e auxiliares braçais, eram quase trinta profissionais vindos de Goiânia, uma verdadeira invasão estrangeira, naquela cidade perdida no nordeste do estado de Goiás. Para deleite das garotas e aflição dos machões daquela pacata comunidade. Entre os estrangeiros, o Baeta, grande geólogo a quem o Serviço Geológico muito deve, e que era por todos nós, chamado carinhosamente, de Baetinha. É que ele era baixinho e cheinho assim, tipo bujão de gás, sem cintura. O Mário, ex-geólogo da Superintendência de São Paulo, apelidou-o de Ursinho Panda. Uma gracinha o Baeta! Bem humorado, simpático, boa praça, aquele companheiro cuja presença era sempre motivo de alegrias para o grupo.
Hoje, já aposentado, deve estar, com muita justiça, aproveitando a melhor idade nos rincões goianos ou na sua querida Minas, que ele nunca esqueceu. Enfim, um grande e querido amigo. Axé, Baetinha!
Mas tinha um defeito, nosso amigo: nunca jogou bola na vida. Naquela altura, acho que já rondando os quarenta, era mais fácil fazer rapel nas escarpas da Serra do Araí, do que fazer três embaixadas seguidas.
O Élvio, viciado em futebol, combinou um jogo, num final de semana, contra o time do colégio da cidade. Maior frisson! Um carro de som passou o sábado circulando pela rua da metrópole anunciando o acontecimento. Do padre ao delegado, ninguém comentava outro assunto. O jogo da vida do lugar. Um comerciante, sabido, organizou logo o bingo de uma bezerra pra sortear na hora do jogo. As irmãs mandaram fazer uma quermesse ao lado do campo, para arrecadar fundos pras obras da igreja. Das fazendas vizinhas vieram peões e caboclas de todos os matizes. Todos queriam ver os cavalcantenses meterem uma goleada nos "metidinhos" da capital.
Meia hora antes do jogo, umas duzentas pessoas em volta do campo de terra batida, nossos craques se aquecendo, Baetinha, o que nunca tinha jogado bola na vida, vê aquele movimento, um mundo de gatinhas assanhadas, tem um repente e dá uma ordem que ninguém, ousou contestar:
- Eu quero jogar também!
Falou com aquela autoridade inata dos grandes líderes. Um bochicho geral percorreu o time.
- Em que posição? Perguntou o Élvio, o craque maior e técnico moral da equipe.
- Qualquer uma!
O tom incisivo e a firmeza de sua resposta eliminaram qualquer possibilidade de protesto.
O Élvio coça sua vasta cabeleira, vira-se para o Barão, que já estava suado de tanto se aquecer e determina:
-Passe a camisa 11 pro Baetinha.
Camisa 11, pra quem ainda se lembra, antigamente (não tão antigamente assim) era a camisa do ponta esquerda. Ponta esquerda, só para lembrar também, era uma posição ingrata. O cara tinha de receber a bola, passar pelo half-direito, ir para a linha de fundo e fazer o cruzamento. Mas tinha uma condição básica: o cara precisava ser canhoto e gostar de jogar avançado, meio esquecido, só esperando os lançamentos! Não era fácil achar um ponta esquerda efetivo. Geralmente essa posição sobrava para aquele que não se queria em nenhuma outra posição. Assim o Élvio olhou bem para o Baetinha e pensou lá com seus botões.
-“Esse cara nunca jogou. Não tem altura para jogar na defesa, nem fôlego para o meio-campo, muito menos estatura para centro-avante. Vou colocá-lo na ponta esquerda e pronto.” Aí o Barão dançou.
Chamando o pupilo a um canto, instruiu: - Olha aqui Baetinha, você vai jogar enfiado na esquerda, só recebendo os lançamentos e cruzando pra área, certo? Eu e o Wilson vamos subir de surpresa para área. É só receber o cruzamento e sair pro abraço! Se o Ireno subir, você faça o overlaping com ele. Alguma dúvida?”
Baetinha não entendeu porra nenhuma, mas disse que ia jogar com muita garra e determinação e essas coisas. Como não tinha chuteiras, pegou as do Barão emprestadas, de número 41. Seu número era 37, um pequenino problema que ele resolveu atufando o bico da chuteira com um meião que ele pegou de alguém.
Quatro horas em ponto, o prefeito dá o pontapé inicial, não sem antes desejar que vença o melhor e a pelota começa a rolar, para delírio da torcida. Naquela época não havia ainda o Galvão Bueno, por isso ninguém levou nenhuma faixa para o estádio.
Quando o time da capital atacava, Baetinha corria que nem um desesperado pra linha de fundo, com os braços levantados e berrando:
- Lança, porra, lança!
Mas ninguém lançava.
Não sei se por não conseguirem vê-lo atrás dos defensores, ou se por desconfiança mesmo de sua capacidade, o fato é que ninguém lançou uma única bolinha para o pobre do Baeta. Nesses avanços sem bola, levou três quedas feias, tropicando no bico da chuteirona. Seu lado esquerdo já estava todo escalavrado. Já imaginaram alguém correr com um pé-de-pato?
44 minutos, do primeiro tempo, jogo ainda no zero a zero, Baetinha mortinho de cansaço de tanto correr pra linha de fundo e sem ainda ter conseguido pegar na bola uma vez sequer, surge uma falta na entrada da grande área, pelo flanco esquerdo, a favor dos "metidinhos" da capital. Baetinha, que já tinha decidido não retornar no segundo tempo, porque já estava muito machucado, vislumbrou a oportunidade de sair carregado nos braços, vai logo ordenando, braços levantados, peito estufado, com aquela autoridade dos craques, que Deus lhe deu:
- Deixa! Deixa! Deixa que eu chuto! Essa é minha! Vai todo mundo pra área!
Quem contestaria tamanha autoridade?
E ainda como que para consolidar o poder, que naquele momento assumia, fez gestos com as mãos para que a defesa fosse toda pra frente, pra dentro da área:
- Pra frente meu time! Pra frente!!
Com muita calma, ajeitou a bola na marca do chute, sobre um montinho de terra que fez com as próprias mãos. O goleiro não quis barreira e mandou todo mundo sair da frente. Nosso craque foi se afastando da bola, passo a passo, como um contendor, num duelo dos antigos filmes de bang-bang, olhar fixo na bola e no goleiro, até atingir a linha do meio de campo. Suspense na torcida, o medo era geral. O goleiro, diante daquela cena inusitada, o cobrador a mais de 10 metros da bola, imaginou que aquela era a "arma secreta" do adversário e mudou de opinião.
- Seu juiz! Barreira por favor!
A barreira se posiciona, Baetinha encara. Todo o time da capital na área, os braços levantados, o juiz apita, empurra-empurra geral. Baetinha dá mais três passos pra trás, todos da barreira se protegem, em baixo e em cima, com medo do petardo. Suspense. Baetinha, enfim parte pra bola, como um touro raivoso pra cima do toureiro. A barreira trêmula, se virando e encolhendo. Um silêncio de “matar o Hitchcock” e Baetinha tomando impulso. Uns dizem que ele babava, de tanta gana. A uns cinco metros da bola, fechou o olho e se atirou como uma flecha humana. A sorte estava lançada.
Na hora exata e precisa do chute, naquela fração de segundo fatal em que o tudo e o nada se resumem numa bola no chão, o mundo como que entrou em câmara lenta. Todos suspenderam a respiração para acompanhar, cena a cena, quadro a quadro, aquele chute histórico. Foi então que todos viram Baetinha firmar o pé direito no chão, com as traves enterradas no terreno duro e a perna esquerda se retesar, como o dedo do atirador no instante fatal do tiro. Naquele exato átimo de segundo em que a perna ia se lançar, como um míssil, em direção à redondinha que ali jazia humilde e quieta, Baetinha se deu conta de que não era canhoto e fez um movimento desastrado, tentando trocar de pé. Tarde demais. Em câmara lenta, numa cena absolutamente inesquecível, todos viram o bicão da chuteira esquerda do exímio batedor de faltas tropicar no chão, ainda muito longe da bola. Nesse instante, o mundo voltou ao normal e a vida retomou o ritmo frenético de um jogo de futebol. Assim, numa velocidade estonteante, todos viram o Baetinha sair rodopiando como um bólido, feito uma broca tonta, cair a uns três metros de distância e dar quinze voltas sobre o próprio corpo, como se fosse um tapete humano sendo enrolado por um lençol de terra e poeira. E ali ficou, emborcado, imóvel, até que os companheiros acudissem, preocupados. Todos viram que a coisa foi séria. O médico da cidade, prestativo e aliviado, como toda a assistência, correu a examinar nosso herói e diagnosticou em menos de um minuto:
- Fratura grave na junção da tíbia com o perônio, uma costela quebrada, clavícula esquerda deslocada, sangramento no nariz, escoriações generalizadas e indícios de poeira nos pulmões. Levem pro centro de saúde, sem perda de tempo.
Não tinha maca no local, os colegas retiraram Baetinha nos braços, até o Toyota da Empresa. No trajeto para o carro, a boca cheia de terra, foi pensando, filósofo e bem humorado que era:
-Bom, perdi a única oportunidade que tive, durante todo o jogo, de tocar na bola, pelo menos uma vez, mas afinal, meu desejo realizou-se: saí carregado nos braços!
Taí o Élvio que não me deixa mentir!
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(Este é o primeiro de uma série de causos, que pretendo resgatar, do meu tempo de geólogo de campo. Histórias que são deliciosas pelas boas lembranças, pelas situações inusitadas e que retratam a vida sofrida desses modernos badeirantes a desbravarem esse Brasilzão de meu Deus, dos pampas à floresta amazônica, anonimante, esquecidos dos demais brasileiros.)

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Hipocrisia

Um buraco, um inferno, um riacho, um forno.
A pedra, o trago, o sol e as formiguinhas.
Um capenga, um caolho e um coxo e um corno.
As prostitutas cuidam, com amor, das criancinhas.

Vida vivida de labareda e vento,
Onde o tudo e o nada se resumem num barranco.
De dia o pó, de noite o relento,
Do ouro o sonho, da garganta o ronco.

Assim vive e morre esse povo de couro:
Do pau-a-pique à antena parabólica;
A novela chique na rede bucólica,
No delírio do parto de um vil tesouro.

Sonegador, nocivo, marginal:
Assim os poderosos falam dos garimpos,
Como se no Brasil, da lama oficial,
Fôssemos todos marcados: os sujos e os limpos.

Porque não dizem, donos da verdade,
Que nas crateras fundas, esquecidas,
Do ventre da terra adormecida,
À margem da outra sociedade,
Há uma fonte mágica de vida,
Que alimenta, dia a dia, os soldadinhos,
Que mantém os sonhos, que refaz caminhos?

Porque não dizem, senhores da falsidade,
Que dessa lama podre que dá nojo,
Bem no centro dessa lama existe um bojo,
Estranho estojo de amarela claridade,
Que dá vida e que permite que não morra,
Nas favelas, nas vielas, nas masmorras,
A desvalida gente da cidade:
O pedreiro, o engraxate, o camelô,
O frentista, o alfaiate, o cobrador?

Por que não dizem, arautos da maldade,
Que essa gente rude, sem roupas, sem botas,
Essa gente rota, sem dentes, sem notas,
Buscando sua cota de felicidade,
É uma gente simples, são compatriotas,
Que vêem no brilho dessas pedras mortas,
O que não lhes dais: oportunidade?

Que fazeis vós, donos da crítica,
Por essa gente faminta, raquítica?
Acaso lhe ofereceis trabalho?
Lhes garantis escola, saúde, agasalho?
Acaso lhe sabeis o nome?
Lhe sentis o frio, a sede e a fome?

Desculpe a irreverência, seu Dotô,
Mas a hipocrisia tem de ter um fim!
Não sabeis vós que o pedinte, o camelô,
O biscateiro, o muambeiro, enfim,
Toda essa leva de gente aventureira,
São marginais deserdados do Modelo?
Cuspidos do Sistema, varridos a rastelo?
Que sobrevivem dos restos do Banquete,
Contidos a bala, nas valas, no cacete?

Que fazer, sem salário, um cidadão?
Virar bandido!? Virar ladrão!?
Vós lhe dais remédio?
Vós lhe dais o pão?
E o leite do filho que chora???
Cora, cara sem-vergonha, cora!
Cadê o dotô? Cadê a ‘fessora?

Ou acaso julgais, gente imoral,
Gente boa, decente, gente séria,
Que se escolhe a rua, o perigo, a poeira,
Que se escolhe a emoção da vida marginal,
Que se morre de verme, sífilis e caganeira,
Que se vive na lama, no mangue, na miséria
Por um masoquista prazer pessoal?
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(Poesia escrita em 1992, do alto do barranco do garimpo do Caxias, em Godofredo Viana - MA, contemplando o formigueiro de milhares de criaturas se acotovelando, com seus fardos de terra. Paisagem surreal de um mundo louco. Vulcão ao contrário, explodindo pra dentro, tragando gente.)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Iazul (Tudo passa)

Mas quando sentires a mão da desgraça
E chorares o travor da dor cruel;
E da vida sorveres o cadinho de fel
E te vires só, no fragor da praça;
E fecharem-se a ti todas as portas
E os amigos mais fiéis te deram as costas;
Calma! Tem fé e luta! Tudo passa…

E se fores alvo da calúnia e da chalaça
E sofreres a mais vil perseguição
E a covardia da soez humilhação;
E se te acuarem, como à mais fera caça,
E quando já não vires mais saída
E pensares em por fim à própria vida;
Calma! Espera e ora! Tudo passa…

Mas, se a vida se tornar um céu de graça,
E passares a viver no paraíso,
Entre festas, alegrias e sorrisos,
Longe da dor que lá fora grassa,
Ao sabor da fama e do sucesso,
Num labor contínuo de progresso;
Sê prudente e te acautela! Tudo passa…

E se a fortuna só te sorri e te abraça,
E se os amigos te honram e te proclamam,
E se os teus são constantes e te amam,
E vives a sorver em finas taças,
E tens saúde que aos outros causa inveja,
E glórias que esbanjas a quem veja,
Ainda assim, sê prudente! Tudo passa…

Eis uma ciência que a tudo perpassa;
Que recobra a fé ao sofredor
E faz ter humildade ao vencedor,
Trazendo serenidade à raça:
Seja o mal que mortifica e confrange,
Seja toda a felicidade que se esbanje,
Tudo é nuvem que ao vento esvoaça
Nem o mal é o portão do inferno,
Nem o bem é passaporte eterno.
Tudo é um tempo.... Um momento... Tudo passa!
...........................................................
(Iazul vem de uma lenda do escritor Malba Tahan. Significa "tudo passa")

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Porraloquice

Quis rabiscar um poema moderno,
Sem métrica, sem rima, sem babado.
Poema de verão para o inverno,
Poema seco pra se ler molhado.

Falar dos porrilhões de universos,
Do céu, do mar, da terra e do inferno.
Humilhar os quadrados dos inversos,
Poema esporte, pra gravata e terno.

Enfim, uma poesia colorida,
Estrofes de escandalizar coreto.
Mas fui tão bitolado pela vida,

Que fiz uma poesia em banco e preto.
E em vez de versos soltos, sem medida,
Compus a quadratura de um soneto.

(Escrito em 1968, em plena inquietação da juvenude rebelde dos anos dourados)

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Vermes e Canteiros

Quando vem a escuridão da mesquinhez humana
E em tudo se dissemina,
Nos cantos, nas quinas;
Quando a mão do tirano desmanda,
Discerne, desanda e discrimina;
Quando a Inteligência, enfim, percebe a farsa
E a Mão lhe amordaça, lhe cassa e basta;
E se resiste chora de amarguras.
Se resiste esbarra em duras barras
De verdades obscuras, sem cura;

Quando vem uma angústia descontrolada
E fica, e tudo domina
E dói fina, sem jeito,
Aí então tudo se avilta, se corrompe.
Rompe-se o velho laço
E nos invade brutal cansaço.
Do passado, retalhos esparsos retratam visões vazias,
Cheias de decepções.
A dignidade murcha, mingua, mirra, morre...
Ao sonhador, lhe restarão suas fantasias, alegorias...
E comporá um circo e será o palhaço
De pano, com dedos apenas,
E nunca o leão de aço, com mão e braço.

Todavia, são as fantasias
Perigosas vias ascendentes
E quem subir tão alto, como as estrelas cadentes,
Ouvirá vozes doidas, estridentes:
-“Acorda, acorda Consciência!
Explode tua ira, conspira, atira,
Explode forte, farta de impaciência”.
Mas virá depois um coro retumbante,
Abafando as vozes suplicantes,
Com brados roucos, agourentos de gigantes:
-“Dorme, dorme, Consciência!
Repousa calma, serena, alva,
Mansa, morna, morta de Impotência.”

E cá no chão, continuamos feito lixos, bichos,
Sem coração, embrião e cerne,
Repelidos feito vermes,
De canteiro em canteiro pisados,
Cuspidos, maltratados, expelidos,
Combatidos, batidos, tidos, idos...

(Rio de Janeiro, agosto de 1977 - Reflete a escuridão em que minha geração vivia, sem luz no final do túnel, naquele momento)

sexta-feira, dezembro 01, 2006

O que é um blog?

Ainda não sei. Estou tentando descobrir.
Quando ouvi a palavra pela primeira vez, me deu nojo.
Parecia uma onomatopéia de vômito: blog!
Pensei cá comigo: deve ser uma porcaria!
...........
O tempo foi passando e foi só blog pra lá, blog pra cá,
Virou uma febre, comecei a visitar alguns,
Muito desconfiado do modismo, mas enfim...
O tempo passou...
.................
Hoje, sou um devorador de blogs.
Não tenho dúvida de que o blog é o instrumento mais democrático desse instrumento democrático, que é a internet.
Além de poder acessar as poesias de Camões, Castro Alves, João Cabral; as obras de Machado, Rui, Chico, Guimarães e Veríssimo, posso ler Zuza, Zé Poeta, Mota... Quando poderíamos ler Zuza, Zé Poeta e Mota, sem a democracia dos blogs? Além de Mino Carta, Alberto Dines e Paulo Henrique Amorim, as últimas eleições para presidente do Brasil mostraram a força dos Josés, Joões e Antonios que, através dos milhares, talvez milhões de comentários contestando as posições oficiais dos ditos "grandes jornalistas" da dita "grande imprensa", formaram uma contracorrente vitoriosa, mostrando a voz da maioria. A internet é, hoje, peça-chave no processo de aprimoramento da nossa ainda jovem democracia.
Aí pensei: Esse negócio é um achado!
....................
E aqui estou eu hoje, inaugurando o meu próprio blog.
E aí repito a pergunta do início: o que é, afinal, um blog?
Um diário? Uma coluna editorial? Uma página literária? Não sei.
Já andei por centenas deles e os há de todos os jeitos, para todos os gostos.
Talvez não seja nada disso, ou tudo isso junto, que, no final, é a mesma coisa.
Talvez seja mesmo algo para confundir, sei lá...
Eu, por mim, vejo essas janelas na internet como porta-retratos cibernéticos.
Cada blog é uma moldura.
Ali, pelas frases, versos, figuras, fotos, alguém mostra a sua cara.
Mais até: sua alma.
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É isso aí. Aderi.
Se tiver saco, ou for curioso, fique à vontade.
Leia minhas poesias, meus causos, minhas histórias.
Isso serve para alguma coisa? Contribui para a cultura do Brasil?
Sei lá! Não escrevi pensando nisso.
Procure você mesmo a resposta.
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Talvez seja lixo, não sirva pra nada, pura vaidade minha. Talvez.
Não tenho pretensão nenhuma.
Se gostar, muito bom. Se não, mude de sítio.
Apenas pus a cara na janela, nesse imenso mosaico cultural que é o Brasil.
Afinal, que seria dos Reginetos, se só existissem Machados?
Mas, queiram ou não, o Brasil é feito de Reginetos e Machados.
Sê bem vindo à casa de um cristão. Fique à vontade.