quinta-feira, dezembro 14, 2006

Hipocrisia

Um buraco, um inferno, um riacho, um forno.
A pedra, o trago, o sol e as formiguinhas.
Um capenga, um caolho e um coxo e um corno.
As prostitutas cuidam, com amor, das criancinhas.

Vida vivida de labareda e vento,
Onde o tudo e o nada se resumem num barranco.
De dia o pó, de noite o relento,
Do ouro o sonho, da garganta o ronco.

Assim vive e morre esse povo de couro:
Do pau-a-pique à antena parabólica;
A novela chique na rede bucólica,
No delírio do parto de um vil tesouro.

Sonegador, nocivo, marginal:
Assim os poderosos falam dos garimpos,
Como se no Brasil, da lama oficial,
Fôssemos todos marcados: os sujos e os limpos.

Porque não dizem, donos da verdade,
Que nas crateras fundas, esquecidas,
Do ventre da terra adormecida,
À margem da outra sociedade,
Há uma fonte mágica de vida,
Que alimenta, dia a dia, os soldadinhos,
Que mantém os sonhos, que refaz caminhos?

Porque não dizem, senhores da falsidade,
Que dessa lama podre que dá nojo,
Bem no centro dessa lama existe um bojo,
Estranho estojo de amarela claridade,
Que dá vida e que permite que não morra,
Nas favelas, nas vielas, nas masmorras,
A desvalida gente da cidade:
O pedreiro, o engraxate, o camelô,
O frentista, o alfaiate, o cobrador?

Por que não dizem, arautos da maldade,
Que essa gente rude, sem roupas, sem botas,
Essa gente rota, sem dentes, sem notas,
Buscando sua cota de felicidade,
É uma gente simples, são compatriotas,
Que vêem no brilho dessas pedras mortas,
O que não lhes dais: oportunidade?

Que fazeis vós, donos da crítica,
Por essa gente faminta, raquítica?
Acaso lhe ofereceis trabalho?
Lhes garantis escola, saúde, agasalho?
Acaso lhe sabeis o nome?
Lhe sentis o frio, a sede e a fome?

Desculpe a irreverência, seu Dotô,
Mas a hipocrisia tem de ter um fim!
Não sabeis vós que o pedinte, o camelô,
O biscateiro, o muambeiro, enfim,
Toda essa leva de gente aventureira,
São marginais deserdados do Modelo?
Cuspidos do Sistema, varridos a rastelo?
Que sobrevivem dos restos do Banquete,
Contidos a bala, nas valas, no cacete?

Que fazer, sem salário, um cidadão?
Virar bandido!? Virar ladrão!?
Vós lhe dais remédio?
Vós lhe dais o pão?
E o leite do filho que chora???
Cora, cara sem-vergonha, cora!
Cadê o dotô? Cadê a ‘fessora?

Ou acaso julgais, gente imoral,
Gente boa, decente, gente séria,
Que se escolhe a rua, o perigo, a poeira,
Que se escolhe a emoção da vida marginal,
Que se morre de verme, sífilis e caganeira,
Que se vive na lama, no mangue, na miséria
Por um masoquista prazer pessoal?
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(Poesia escrita em 1992, do alto do barranco do garimpo do Caxias, em Godofredo Viana - MA, contemplando o formigueiro de milhares de criaturas se acotovelando, com seus fardos de terra. Paisagem surreal de um mundo louco. Vulcão ao contrário, explodindo pra dentro, tragando gente.)

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