quinta-feira, novembro 28, 2013

Feijão indigesto

Homenagem singela aos grandes contadores de causos do Sertão, essa gente que fala de um Brasil que está na alma e que mostra uma cultura espontânea, tão pura quanto a garapa dos engenhos, o milho verde, o feijão de corda e a poeira do estradão. Especialmente, meus "gurus" Catulo da Paixão Cearense, Jessier Quirino, Luiz Vieira e o grande brasileiro Rolando Boldrin.


Naquele dia, seu moço, nunca ia imaginá
Que a minha vida certinha, ao lado de minha santa,
Meu gadinho, minhas pranta
Os minino e a cadelinha,
Minha vida tão folgada, fosse ansim se desandá,
Como um feitiço tinhoso, ou praga de Mãe Zilá.
Era domingo, seu moço,
Acordemo bem cedinho, era quatro e um bocadinho,
Antes do galo cantá.
Deixei Tõinha drumindo, tão serena, tão bonita...
Beijei ela e fui saindo, peguei a enxada e a marmita,
Pois tinha muito que andá.
Chamei compadre Vadin e peguemo o baixadão.
Cruzemo o Vale do Encanto e andemo uma légua e tanto,
Depois do rio Guaxinim, até pegá o estradão
Que vai dá lá na cancela do Compadre Zé de Antão.


Era festa na fazenda, todo mundo tava lá.
Tinha até boi na moenda
Pinga não ia fartá, no mutirão da colheita
Do roçado de feijão, do meu compadre querido, 
Amigo da vida inteira, desde os tempos de criança, 
Lá na Vila da Ingazeira.
Ah, que festança, seu moço!
Tava todo mundo lá,
Tava Seu Bento, Chiquinho, Tõe Miranda, Chico Bêra,
Armando, Zeca, Carlinho, Cirilo, Tota e Badu,
Boi Zebu, Louro e Caveira.
Tava todo mundo lá.
Das bandas do Bebedouro, veio uns quinze companheiro.
Uns dez da Lagoa Seca, bem uns doze da Jurema,
Sete do Gogó da Ema, meia dúzia do Umbuzeiro,
Mais um bando de penetra que viero atrás de festa,
Mas porém, pra fazer graça, tivero de trabaiá,
Pegar sereno na enxada, sem direito a descansá.


Tava todo mundo lá,
A muierada no alpendre só fazendo coisa boa,
Paçoca, cuscuz e broa, beiju quentinho e jabá.
Sá Aninha lá da Gamboa trouxe um mocó e um preá.
Tinha até surubim seco, pai-de-chiqueiro e leitoa...
Zefinha, só nas beiçada, alegrando o pessoá,
Cantando samba de roda, pra muierada sambá.
Góia, no fogão de lenha, num fumaceiro medonho
No meio dessa zoada, nem aí que tava prenha.
Com a ajuda de Totonho, neto de Alzira da Penha,
Preparava a feijoada.
Imagine um trem cheiroso!
Um caldeirão, que era um tacho,
Capaz de pegar, por baixo, pra mais de 50 litros
Borbulhando ali na trempe, que deixava a gente aflito.
E Góia de sempre em sempre,
Tocando coisas lá dentro: cebolinha, salsa, coentro,
Folha de louro, alecrim, pé de porco, rabo, rim,
Linguiça fresca, costela, vitela, lombo e cumpim,
Carne de sol do Sertão, pimenta, alho e açafrão...
Imagine um trem cheiroso!


No eito, o couro comeu.
Se atraquemo com as enxada, que parecia uma guerra.
As cara sujas de terra e o suor pingando solto,
Que João Binga, meio torto, nem sentiu, nem deu um pio,
Quando a cascavé mordeu,
Nem te conto amigo meu.
Mas o cabra era tinhoso, tava cheio de manguaça,
Quando viu o arriscoso
Cuspiu na cara da cuja, mamou mais meia cabaça,
Piando que nem coruja,
Que a cobra foi se esticando,
Abriu a boca todinha, ficou durinha e morreu
E o veneno, se é que tinha,
Se desfez, se escafedeu
E o couro comeu sereno.


Ali umas nove horas, Ditim, da Fazenda Antiga
Correu pra trás de uma moita,
Num carreirão da bixiga, pra mode se aliviá
Dum mexicum na barriga:
Ou era a tripa gaiteira, ou revolta das lombriga.
Foi uma coisa de louco.
Nunca ouvi tanto pipoco, nem pense que isso é intriga.
Se esforçou tanto o coitado, que as morróida saltou fora
E Ditim, chora não chora, ficou todo envergonhado.
Mas o pior foi depois, quando ele foi se limpá
Sem ter papel pra usá, se esfregou numa folhagem,
Mas por não oiá mió, cabou limpando o fiofó
Numa gaiada de urtiga,
Minino, que quiprocó!
Ditim rolava no chão, rogando a Deus nas altura
Pra aliviar a queimura, pediu até pra morrer.
Dava dó a criatura!
Sem saber como ajudá, taquemo pinga em Ditim,
Abanando o zé broquim, inté ele se acalmá,
Vestir a roupa e sentá.
Mas foi um deus-nos-acuda, nem gosto de me alembrá.


Nego Amâncio, presepeiro,
Pensando que ninguém via, chamou Naninha na chincha,
Na sombra dum imbuzeiro,
Que a coitada nem mexia, até mesmo se quisesse,
Só tem que ela não queria.
E foi aquele truvejo, de abraço, cheiro e beijo,
Versão simplória e espoleta daquele romance antigo,
Entre um Romeu sertanejo, suado e só de calção
E a donzela do roçado, criada a paçoca e queijo,
Desastrada Julieta, 
Medrosa da reação do marido corneado,
De nome Elói Cansanção, Caixa Prego apelidado,
Que por muito menos disso, tinha tirado a facão
Um rim de Leo Caxeado.
Pois o dito Caixa Prego desconfiou da mutreta.
Pulou feito uma garrincha, quando viu, por uma frincha
Da gaiada do imbuzeiro, o casal só no bem-bom,
Se relando no casqueiro.
Num instante Caixa Prego desembainhou o Corneta
E foi pra cima dos dois, que foi um deus-nos-acuda
Se não fosse nossa ajuda, Nego Amâncio era defunto,
Companheiro do capeta.
Mas peguemo tudo junto, desapartemo os brigão,
E houve paz no mutirão.
Levaram Naninha embora, Nego Amâncio cascou fora
E encerrou-se aquele assunto.

Como era alegre, seu moço, as manhãs de mutirão!


E assim as horas voaro, nesse batidão corrido,
Que antes do meio dia, o feijão tava colhido
E agora tudo era festa...
Só se via a peãozada limpando o suor da testa,
Numa algazarra tremenda, pensando na feijoada,
No terreiro da fazenda...
Quado cheguemo no alpendre, começou a bebedeira.
Não tinha água, só pinga...
Da branquinha e da amarela, nas garrafa, nas panela,
Nos pote e inté nas moringa.
Tinha milonda, verdinha, carqueija, cravo e canela,
De toda raiz que tem, tinha cachaça também.
Foi tanta pinga, seu moço, que o finado Jó Pescoço
Depois de uma cuia inteira, saiu batendo as biela
E foi se banhar no poço, pra curar a bagaceira,
Mas se perdeu pelos mato,
Só voltou segunda-feira, sem os sapato e banguela.
Eu tomei tanta lapada com torrês de tira-gosto
Na farofa de fumeiro refogada na gordura,
Que pouco tempo depois já tava meio enjoado:
Uma queimura no rosto, uma saliva amargosa
Que nem um fel estragado,
O figo se arrepunando, querendo botá pra fora
Aquela sopa horrorosa, comida fora de hora,
Com cheiro de tripa velha e gosto de lixa nova.
Fui saindo de fininho, a procura de um bueiro.
Um pouco descabreado, fiquei de longe assuntado
O furdunço no terreiro.
E foi então que notei o que não tinha notado,
Até aquele momento.
E me chamou a atenção, pois faltava um convidado:
O tocador de viola, presente em qualquer evento,
O maior da região, conhecido por Zoiola,
Meu vizinho de roçado,
Que era artista de talento,
E amigo reservado, do compadre Zé de Antão.
Cadê o Zoiola, então?
Será que ficou doente?


Dia desses, se não me falha a memória,
Mês passado ou coisa assim,
Apareceu lá em casa.
Surgiu assim, de repente, bem no meio da manhã...
Se assustou quando me viu, e então eu disse oxente!
Mas que novidade é essa?
- Não é nada, eu tô com pressa, só vim buscar hortelã
Pra dar um chá pra Teresa, que tá com febre terçã.
Achei tudo tão estranho...
A voz do cabra tremia....  Foi pegando o que queria,
Nem cumprimentou Tõinha.
Ajeitou-se sobre a sela, saiu relando a cancela,
Com seu cavalo castanho.
Tõinha - que alma boa! - ficou toda alvoroçada,
Num entra-e-sai dos diabos, largou pra lá os quiabo
Que lavava na bacia pra fazer um caruru
Pedido por minha tia, do Sítio Velho Coité.
Eu disse: -  o que foi muié? Que é que tá te apoquentando?
Notei que ela estremeceu, mas fez força e respondeu,
Querendo mostrar frieza, as duas mãos esfregando:
- É a comadre Teresa...
Tô com pena da bixinha, com essa febre, coitadinha
Sem ter ninguém pra ajudá. Acho que vou por a mesa
E vou lá ver minha amiga.
- Deixe de coisa Tõinha. Tu vai lá é atrapaiá
Faça logo o de-comer.
A gente enche a barriga, e depois de descansá
Vamos lá, eu e você.
Tõinha ficou calada, com uma cara esquisita,
Deu pra ver que tava aflita, com a feição preocupada.
Daqui a pouco ela grita, lá de dentro da cozinha:
- Deixa home! Eu vou sozinha.
Terminou de cozinhá, numa pressa disgramada,
Botou na mesa e saiu.
Comi dois pratos de arroz com feijão verde e galinha
E peguei na madorninha, lá na rede da latada,
Mas me alembro de ter visto, o vestido de Tõinha
Sumindo no pó da estrada.
Ficou fora a tarde inteira, só voltou de tardezinha,
Com o cabelo desgrenhado, foi direto pro banhado,
Se banhou e se benzeu.
Ao perguntar de Teresa, me respondeu com rudeza:
- Home, deixe de pergunta! Por que que tu não assunta?
Quem tá doente sou eu.

O mais estranho, porém, foi quando, no outro dia,
Na venda de Sá Luzia, quem eu vejo no balcão?
Pois foi a própria Teresa, rindo que era uma beleza,
Comprando sal e sabão.
Perguntei: e então vizinha? A saúde melhorou?
Espantada ela me olhou, e disse - Se não me engano,
Já tem mais de doze ano que não sei o que é doença.
Minha saúde é de ferro, meus marido, eu é que enterro,
Ser viúva é uma sentença.
Pra mostrar que não mentia, foi pedindo a Sá Luzia,
Duas doses caprichada, que tomou numa bicada
Sem deixar uma gotinha.
Fui pra casa atordoado, fiquei com aquilo guardado
Não falei nada a Tõinha.


Eis o meu erro, seu moço, pois devia ter contado.

E agora no mutirão, dessas coisas me alembrando,
Me deu uma pensação...
Fiquei só fazendo as contas, ou melhor, juntando as pontas:
Tinha uma coisa faltando...
Foi quando vi de repente, ali, bem na minha frente,
Uma interrogação....
Será? Não será? Será?!
O pensamento da gente fica, às vezes, flutuando,
Que nem uma pena solta:
Sobe e desce, sobe e desce...
E a gente perde o controle, e ele não obedece.
Pois foi assim que eu fiquei
A cabeça pipocando, ficando desse tamanho,
Um pesadelo medonho, uma dorzinha na testa,
Será que minha Tõinha, se enfeitiçou com a seresta,
Do violeiro Zoiola...? Me alembro dele tão estranho...
O que é que houve, meu bom Deus!
Fiquei tão desconcertado com esses pensamentos meus,
Que me deu uma coçação, parecendo catapora.
Achei melhor ir-me embora, pra acalmar meu coração.
E no melhor da festança, revirando essas lembranças,
Saí, sem dizer adeus.
Desembestei pela estrada, correndo feito um tufão,
Pulando cerca e tranqueira, varando pelo areião.
Reduzi caminho a peito, por entre espinho e garrancho,
Até chegar no meu rancho, levando tudo no eito.

Ai, que canseira, seu moço!


Na cancela do cercado, parei pra tomar um ar
E orei, sem saber orar:
Pedi que Deus me ajudasse, e que eu estivesse errado
No meu modo de pensar:
Tõinha dentro do rancho, o rancho limpo e arrumado,
E eu entrasse aliviado na santidão do meu lar.


Que silêncio no sertão!


Me acheguei devagarinho...
Só se ouvia os canarinho e os pios da pombinha-rola
Na gaiolinha do oitão.
Quando a cadela latiu, o mais novinho me viu
E foi logo me avisando:
- Papai, nossa mãe saiu e diz que vai demorar...
Pro senhor não esperar.
Que cuidasse bem de nós e, com um tremor na voz,
Pediu pra lhe perdoar.


Então é isso seu moço, eis aí a minha história...


Se não me falha a memória, já faz mais de trinta anos.
Mas porém não me lamento, nem sou de guardar rancor,
Remoendo desenganos que o tempo já enterrou.
Ao invés do sofrimento e da dor devastadora,
Da saudade que ficou,
Quando alembro de Tõinha,
De seus óios cor de estrume, seus cabelos de sereia,
Não lembro da traidora que me matou de ciúme,
Que fez de mim um cocô...
Só lembro dos seus carinhos, na varanda do ranchinho
Nas noites de lua cheia,
Só lembro do seu amor...
Por isso toquei a vida, sem mágoa e sem desespero.
Fui pai e mãe dos meus filhos, plantando feijão e milho
Nessa terra ressequida.
Trabalhando o tempo inteiro, penei feito boi carreiro,
Mas nunca faltou comida.


Os mininos tão criados... Criei do jeito que pude,
Tudo rude e sem estudo, pois não pudero estudá
Tivero que trabaiá...
O minino no roçado, pegando duro no arado
De sol a sol no sertão,
E a menina coitadinha, manejando no fogão,
No lugar da mãe, Tõinha.
Eles não me abandonaro.
Já estão tudo casado, mas inda moram comigo,
O rancho cheio de neto e os netos cheios de amigo.


Ver os filhinhos sofrer é a maior dor de um home,
Só quem passou é que sabe.
Por isso roguei a Deus: Nem que o céu no chão desabe,
Se preciso eu viro bicho, uma mula, um lobisome,
Não deixe que meus filhinhos, passe uma noite com fome.
Acho que Ele me atendeu e hoje sou agradecido
Por mais que tenha sofrido, meus dois filhos são unido,
Nenhum deles se perdeu.


Eu já passei dos oitenta, a saúde enfraquecida,
Já nem posso trabaiá... O corpo já não aguenta
Que mais eu quero da vida?
Levo meu tempo na rede, futucando na parede
Só vendo o tempo passá...
Mas também não tenho pressa de ver a morte chegá
Eu não pedi pra nascer, nem peço pra me enterrá.
Quem me deu vida é quem sabe, o buraco que me cabe,
Ele é que vai decidir.
Quando chegar minha hora, tô pronto pra ir embora,
Não levo nada daqui.
Mas tem dia que a saudade cutuca meu coração,
Que até choro de emoção, relembrando a mocidade,
Quando eu era tão feliz
No roçado de meus pais, nas missas na igrejinha,
Namorando com Tõinha, tempo que não volta mais,
Pois Tõinha não me quis.

E aqui na rede bestando, o pensamento voando,
Quero deixar um protesto.
Sei que já estou no fim, pouco mais resta pra mim
E que nem pra nada eu presto.
Fui sertanejo valente, nunca fugi do batente,
Sempre fui um home honesto,
Mas caí na esparrela de namorar a donzela
Mais bonita do Sertão,
E ela me fez esse gesto.
Por isso quando me alembro daquele mês de dezembro
Na casa de Zé de Antão, na colheita do feijão,
Vem uma dor que eu detesto,
Que eu queria esquecer...
Mas como não pode ser,
Fico na rede calado, feito um corno conformado:
Eita feijão indigesto!


Salvador, novembro de 2013