terça-feira, março 12, 2013

A música mais bonita do mundo


Capitão e seus causos


- Bom dia Capitão!
- Capitão! Me dê uma mãozinha aqui por favor!
- Capitão, tem um engovezinho aí ? O fígado hoje tá negando fogo...
Era assim.
As pessoas, para ele, não tinham nome. Todos eram, indistintamente, Capitão.
Isso, desde os tempos de faculdade, diziam seus contemporâneos do curso de Geologia.
Vem daí seu apelido de Capitão.
Se perguntarem a qualquer um que trabalhou com ele, por seu nome de batismo, a resposta só virá após uma consulta ao banco de dados da memória. Quem mesmo? Depois de algumas pistas: Ah!, Você está falando do Capitão!
Dizem as más línguas, embora isso nunca tenha sido confirmado, que ele rezava o Pai Nosso assim: “Capitão que estás no céu....”
Esse é o nosso personagem.
De sua contribuição à geologia estrutural da Borborema não vamos aqui tratar, primeiro por não estarmos à altura. Segundo, porque sua obra, vasta e importantíssima, fala por si só. O geólogo Capitão não precisa de loas desse pobre mortal.
Mas seus textos técnicos, recheados de flexuras, recumbências e rotações sinistras, nada dizem do Capitão boêmio e seresteiro, amante da boa música, da cerveja gelada, das noites de lua e de uma conversa madrugadeira na mesa de um boteco. Jogando conversa fora, lembrando os bons tempos, resolvendo os problemas do país e do mundo. Enfim, um tipo bem brasileiro.
O detalhe, em relação ao Capitão, é que ele tinha dificuldade em parar.
Explico-me.
Sabe aquele ditado, boi pra não entrar e boiada pra não sair? Foi criado para o Capitão. Quando ele começava, isto é, depois de tomar a primeira, não tinha hora de parar. Por isso, só andava de taxi. Já tinha uns motoristas conhecidos, que o deixavam no elevador do prédio, com o botão do andar pressionado.
E assim, após quase quatro décadas de atividades geológico-etílicas, por esse Brasil a fora, o Capitão colecionou causos incríveis, os mais inverossímeis que se possa imaginar e que ele saboreava relatar, com satisfação quase-orgulho, entre gostosas risadas e uns tantos novos tragos.
Vamos curtir alguns deles.

A MÚSICA MAIS BONITA DO MUNDO

Disseram ao Capitão que eu tocava violão e que gostava de seresta.

Bastou.

Passei a ser assediado por ele, até que numa sexta-feira enluarada, durante o expediente de rotina no bar da Associação, ei-lo que surge de violão em punho e uma ordem, na verdade uma sentença, dirigida a este pobre escriba:

- Capitão, hoje vamos fazer uma seresta.

Ante tamanha autoridade e, levando-se em conta que eu também gostava da coisa, iniciamos ali uma noitada memorável.

Capitão puxava do fundo do baú velhos boleros, valsas e sambas-canções, que arrematávamos com comentários saudosos e muita cachaça e cerveja. A assistência aprovou e os relógios pareceram parar para ouvir Carlos Galhardo, Francisco Alves, Vicente Celestino e  uma galeria que não se ouve mais, a não ser nos vinis esquecidos de quem, como eu, foi criado em ambiente seresteiro.

A essa altura, senti que meu compromisso de mais tarde já estava comprometido.

Lá pelas tantas, como notei que estava agradando, cismei de cantar Gardel, e ataquei de Mano a mano:

“Rechiflao en mi tristeza hoy te evoco e veo que has sido
En mi pobre vida paria solo una buena mujer...”

Enquanto eu cantava, notei que o Capitão parara a meu lado e ficara me olhando com olhos espantados, rodando um copo de cerveja nas mãos e ajeitando os óculos, como se não estivesse acreditando no que ouvia. Até que as últimas estrofes o acordaram da aparente letargia em que mergulhara:

“... Acordarte deste amigo que ha de jugarse el pellejo
Pa ayudarte en lo que pueda cuando llegue la ocasión”

Então, como um orador improvisado, pediu silêncio à turba e esclareceu:

- Pessoal, tenho 60 anos de idade e mais de 40 de boemia e posso afirmar, como profundo conhecedor do assunto. Contam-se nos dedos as pessoas que sabem cantar essa música. Pessoalmente, é a primeira vez que ouço a letra completa em espanhol. Sim, porque há uma versão em português que alguns boêmios cantam, mas em espanhol, só Gardel e uns poucos, incluindo o Capitão aqui. Portanto, vamos aplaudir o Capitão.

Encabulado, beberiquei minha cerveja, e fiquei dedilhando as cordas do Pinho, quando o Capitão, novamente impondo-se ao barulho do ambiente, me desafiou:

- Capitão, já vi que você é bom. Um dos maiores boêmios que conheci. Seu repertório é do caralho, mas pra provar que é o melhor mesmo, vai ter de saber uma música e em espanhol. Mas, se souber apenas em português já serve.

Fez-se um silêncio, tipo suspense, aguardando a pedida do Capitão. Nos semblantes, a dúvida geral. Parece-me até ter percebido certa torcida para que eu desconhecesse a música, não roubando assim, ao Capitão, a vanglória de continuar em busca de seu grande seresteiro. O maior de todos, dizia ele.

De minha parte, tomei mais um gole e aguardei. Quando o Capitão cantarolou um trechinho da música, porque ele não sabia o nome, adiantei-me:

- Conheço sim Capitão. Trata-se do bolero Nuestro Juramento e se a memória não me falhar, sei cantar sim.

Depois que molhamos as gargantas, o Capitão pediu silêncio porque, segundo eles, iríamos ouvir agora a música mais bonita do mundo.

- Sabe cantar mesmo? Porra Capitão, você é demais. Peraí... Zeca! Traz uma garrafa de Serra Grande aí, que pra ouvir essa música, temos que tomar umas cachaças. E vá fritando linguiças!

“No puedo verte triste, porque me mata,
Tu carita de pena mi dulce amor...”

À medida que o bolero se desenrolava, o Capitão parecia entrar em transe, de olhos fechados e um meio sorriso nos lábios.

“...Si yo muero primero es tu promesa,
Sobre de mi cadáver dejar caer...”

Como um maestro de imaginária orquestra, o Capitão se levantou e começou a reger, com as mãos, certamente movidas pela batuta de sentimentos muito profundos e tocantes. Todos entenderam e se emocionaram com a emoção do Capitão. Sem sombra de dúvidas, essa música abriu o baú das doces lembranças do velho seresteiro.

As últimas estrofes o fizeram abrir os olhos, voltando à realidade. Mesmo do meu banco, sob o galho da mangueira, pude ver marejados os cantinhos dos seus olhos.
“...Con toda el alma llena de sentimientos,
La escribiré con sangre, con tinta sangre del corazón”

Quando o silêncio engoliu as últimas notas do bolero, ficou no ar apenas a expectativa em torno da reação do Capitão. Qual seria?

Foi então que ele surpreendeu-nos com estranha expressão de melancolia nas feições. Lentamente, retirou os óculos, sentou-se, apoiou a cabeça entre as mãos e assim permaneceu por alguns segundo, exalando misteriosos suspiros. Depois de recompor os óculos, mirou-me diretamente:

- Capitão, você é, simplesmente, o maior seresteiro que conheço. Como é que você sabe essas letras todas?

Antes que eu respondesse, ele emendou:

- Só tem um problema, Capitão. Agora você vai ter de cantar essa música umas dez vezes. Há anos procurava alguém que soubesse essa letra e agora vou explorá-lo até a última gota.

É bom lembrar que na época dos fatos aqui narrados, não tínhamos a internet para pegar a letra e ouvir a música instantaneamente, como hoje. Para obter a letra de músicas fora dos catálogos, dependíamos de publicações especializadas ou de  encontrar algum “fóssil vivo”, como foi o caso.

- Pra começo de conversa, você vai me escrever essa letra agorinha mesmo, Capitão.

Rapidamente, sobre um guardanapo de papel engordurado, fiz o registro, que o Capitão jurou guardar ao lado de suas mais caras recordações.

E cantamos juntos uma, duas, sei lá quantas vezes, o Capitão devorando o guardanapo com seus olhos míopes, saboreando cada estrofe como se fora a última linguiça do Zeca e contagiando-nos a todos com o brilho adolescente do olhar e o mistério dos sorrisos mal contidos.

Por fim, já altas horas, ao retornar de uma ida ao banheiro um pouco mais demorada, o  Capitão revela um surpreendente convite-convocação. Havia telefonado para um primo, dono de um barzinho lá pras bandas do Aeroporto, onde um violão ficava sempre à disposição dos frequentadores, em sua maioria constituída por velhos boêmios da noite recifense.

- Capitão, vamos lá no bar do meu primo, que vou lhe apresentar os maiores seresteiros da cidade e nós vamos fazer uma seresta pra ficar na história. Hoje a noite é nossa, Capitão.

Infelizmente, frustrei o Capitão, pois tinha outro compromisso para aquela noite e não podia assim, sem mais nem menos, furar com outras pessoas. Mas, o autorizei a agendar a farra para a próxima semana, se fosse de seu agrado.

Desculpas aceitas, protestos engolidos, despedimo-nos, o Capitão me garantindo que, mesmo sem mim, iria amanhecer no bar do primo, onde iria estrear sua performance de Nuestro Juramento.

E assim foi.

Devo dizer, contudo, que nunca tive retorno do Capitão, sobre o final daquela noitada. Ele nunca me reportou e eu também nunca perguntei como tinha se saído. E digo, ainda, que nunca mais ele voltou a falar do tal bar. Não sei porquê. O que sei apenas é que mais tarde, ainda naquela memorável noite, quando já estava em meu apartamento, por volta das duas horas da manhã, levo um baita susto ao ouvir o escandaloso triiiim do telefone, que atendo ansioso. Do outro lado, um barulho infernal de música e vozes. Reconheço um ambiente de bar. A custa de muito esforço, distingo um agressivo Capitão, cuja voz pastosa denunciava embriaguês avançada:

- Porra Capitão! Sua caligrafia é uma merda! Tô tentando cantar nossa música mas tá difícil, porra. Ninguém entende essa merda de letra.

Refeito do susto revidei:

- Porra Capitão! Nós cantamos tantas vezes hoje! Onde tá pegando?

- Aqui por exemplo, ó.... Tem uma frase aqui na segunda estrofe, muito estranha... Parece “carote de pera”... Que porra é essa Capitão?

- “Carote de pera” não, Capitão. É “carita de pena”, lembra? “Tu carita de pena mi dulce amor...”

- Puta que pariu Capitão! Vem pra cá porra!

Aliviado, desliguei o telefone, mas, no fundo, eu adoraria estar lá junto com o Capitão, desfiando o lamento dos seresteiros de um tempo que já se foi.

Como já disse, não sei o que houve com o Capitão. Ou melhor, como o Capitão se houve. Mas, isso não vem ao caso. O que sei é que trago a seresta no sangue, e raras são as vezes em que tenho oportunidade de encontrar ouvintes, assim como ele, que curtam essas maravilhosas velharias. Por isso, não me perdôo. Deveria ter acompanhado o Capitão ao bar do primo. Pode ser que tivéssemos, os dois, caídos de bêbados, em pleno boteco. Mas, pode ser que a madrugada nos resgatasse e produzíssemos um concerto mágico. Quem sabe?
Pior de tudo é o gosto amargo da dúvida.

Salvador 12/03/2013

sexta-feira, março 08, 2013

24 horas de cerveja... E outras cositas


Capitão e seus causos


- Bom dia Capitão!
- Capitão! Me dê uma mãozinha aqui por favor!
- Capitão, tem um engovezinho aí ? O fígado hoje tá negando fogo...
Era assim.
As pessoas, para ele, não tinham nome. Todos eram, indistintamente, Capitão.
Isso, desde os tempos de faculdade, diziam seus contemporâneos do curso de Geologia.
Vem daí seu apelido de Capitão.
Se perguntarem a qualquer um que trabalhou com ele, por seu nome de batismo, a resposta só virá após uma consulta ao banco de dados da memória. Quem mesmo? Depois de algumas pistas: Ah!, Você está falando do Capitão!
Dizem as más línguas, embora isso nunca tenha sido confirmado, que ele rezava o Pai Nosso assim: “Capitão que estás no céu....”
Esse é o nosso personagem.
De sua contribuição à geologia estrutural da Borborema não vamos aqui tratar, primeiro por não estarmos à altura. Segundo, porque sua obra, vasta e importantíssima, fala por si só. O geólogo Capitão não precisa de loas desse pobre mortal.
Mas seus textos técnicos, recheados de flexuras, recumbências e rotações sinistras, nada dizem do Capitão boêmio e seresteiro, amante da boa música, da cerveja gelada, das noites de lua e de uma conversa madrugadeira na mesa de um boteco. Jogando conversa fora, lembrando os bons tempos, resolvendo os problemas do país e do mundo. Enfim, um tipo bem brasileiro.
O detalhe, em relação ao Capitão, é que ele tinha dificuldade em parar.
Explico-me.
Sabe aquele ditado, boi pra não entrar e boiada pra não sair? Foi criado para o Capitão. Quando ele começava, isto é, depois de tomar a primeira, não tinha hora de parar. Por isso, só andava de taxi. Já tinha uns motoristas conhecidos, que o deixavam no elevador do prédio, com o botão do andar pressionado.
E assim, após quase quatro décadas de atividades geológico-etílicas, por esse Brasil a fora, o Capitão colecionou causos incríveis, os mais inverossímeis que se possa imaginar e que ele saboreava relatar, com satisfação quase-orgulho, entre gostosas risadas e uns tantos novos tragos.
Vamos curtir alguns deles.


24 HORAS DE CERVEJA



No início, eu achava que havia exageros naqueles causos absurdos, mas comecei a mudar de opinião na festa do dia dos pais de 1992, na Associação de Empregados. Naquele ano, a Associação planejou uma festa de gala, para o sábado antecedente à data magna. Até uma banda regional fora contratada (na época na se dizia banda, mas conjunto) para abrilhantar a festa.
Pois bem, na sexta-feira, véspera da festa, como de costume, fomos todos (falo dos botequeiros, claro) ao bar da Associação, desestressar da semana cansativa, com umas loiras geladíssimas e a famosa lingüiça do Zeca, o funcionário que tomava conta do bar e jogava em todas as posições naquele ambiente.

Tudo correu dentro da mais absoluta normalidade. A partir das 21hs os frequentadores começaram e se retirar, de modo que às 22hs só restavam mesmo o Capitão e o Baixinho, em uma mesa mais recolhida, animadíssimos, sem o menor sinal de preocupação com o esvaziamento do bar e os resmungos do Zeca, que morava na periferia e dependia de ônibus pra chegar em casa.

Baixinho era o melhor amigo do Capitão, um geólogo da mesma laia, isto é, que só tinha hora pra começar. Aliás, registre-se ser o único mortal a quem o Capitão não chamava de Capitão, mas sim de Baixinho, isso mesmo. Tamanha era a deferência.

Às 23hs, quando Zeca ameaçou parar de servir cervejas, o Capitão ordenou do alto de seus 1,90m:

- Capitão, frite aí umas linguiças, deixe a chave do freezer com a gente e pode ir que amanhã nós acertamos a despesa.

Ordens são ordens.

Dia seguinte, 9hs, Zeca chega pra receber o pessoal que ia decorar o local para a festa da noite e levou um baita susto. Lá estão os dois, na mesma mesa e na mesma animação da noite anterior, rindo e contando causos, com se tivessem chegado a minutos. O freezer, praticamente vazio, precisou ser reabastecido com urgência.

- Bom dia Capitão, providencie aí mais umas linguicinhas com macaxeira, que estamos morrendo de fome.

Chegou o pessoal da decoração, decorou e foi embora.

Chegou o pessoal da banda, instalou e passou o som e foi embora.

Chegou o pessoal do bufê, guardou os comes e bebes e foi embora.

E enfim chegou a noite.

E os dois amigos ali, no mesmo lugar, na mesma mesa, a mesma cerveja e o mesmo prato de linguiças.

Finalmente, às 20hs começaram a chegar os casais para a grande festa e o corre-corre das crianças tirou a calmaria do ambiente. Visivelmente deslocados, como se tivessem invadido seu espaço, os dois amigos, finalmente, após 24 horas de bebedeira, decidem parar.

- Capitão, traz a conta aí que o ambiente ficou muito tumultuado.

Feitos os acertos, saem abraçados em busca de um taxi.

Já no portão da Associação, de onde puderam contemplar uma magnífica lua cheia espelhada nas águas do Capibaribe, o Capitão não deixou por menos:

- Baixinho, veja que lua! A noite é uma criança, Baixinho. Ainda são oito horas, tá cedo pra caramba. Vamos tomar uma saideira no Mercado da Madalena!

- Só se for agora Capitão.

E lá se foram os dois, felizes da vida, pelas ruas mal iluminadas da Madalena.

Dois personagens em busca de um novo causo.

Se houvesse no Guiness o item “tempo ininterrupto de bebida em mesa de bar” essa dupla, com certeza, seria imbatível.

Salvador 08/03/2013