segunda-feira, julho 30, 2007

Jibóia e minhoca

Jorjão* era um geólogo mineiro, de Carmo do Paranaíba (MG), quarentão e solteiro inveterado, com quem trabalhei algum tempo em Goiânia. Ele mesmo reconhecia que dificilmente conseguiria se casar, porque era muito metódico e cheio e manias. Cito uma, por exemplo, que presenciei várias vezes. Quando acontecia de ele aceitar, coisa rara, algum convite para uma noitada, ou simples farra de bar, avisava logo:
- Tá certo. Eu vou, mas às 10h38 eu venho embora.
Ele estipulava uma hora de fim de festa e isso tinha o valor de uma sentença. Até se divertia tomando umas (nós nunca o vimos namorando) e ficava à vontade, mas no horário marcado, ele disparava. Não tinha apelo que o fizesse desistir. Assim era o Jorjão.
Mas sobre ele pairava um mito, que soube assim cheguei a Goiânia, 1978. Diziam que ele era, digamos, avantajado... Me entendem, não? Referiam-se a ele como tripé, perna de mesa, pé de banco, esses apelidos clichês. Diziam até, não sei se tinha fundamento, que essa seria a principal causa de sua solteirice. Não conseguiu nenhuma mulher disposta a se bater em duelo com arma de tal calibre.
Dizia-se, por fim, para não se ter dúvidas sobre o tamanho da encrenca, que a dita cuja trazia inscrito, em letras maiúsculas garrafais, numa homenagem ao cerrado goiano:

S A M B A Í B A

Sambaíba é o nome do arbusto típico do cerrado. Ninguém assumia já ter visto a famosa inscrição, mas todos a alardeavam como verdadeira. Jorjão, por sua vez, não confirmava nem desmentia. Sob seu sorriso tímido, deixava no ar o mistério, até, de certa forma, alimentando as fantasias dos mais criativos. Certa vez, ouvi um colega dizer que tinha ouvido de outro colega que a inscrição não era S A M B A Í B A e sim S A M B A D A B A H I A. Enfim, o certo é que o Jorjão, lá no fundo, curtia essa fama.
O Saulo*, outro geólogo, colega de turma do nosso herói e bastante gozador, certa vez, com o próprio protagonista presente, numa roda de bar, saiu-se com essa pérola:
- Rapaziada! Quero fazer uma revelação.
Assim dizendo, encostou-se no Jorjão, com a mão sobre seu ombro e prosseguiu.
- Aliás, quero fazer um depoimento, em defesa do nome do nosso colega aqui. Andam dizendo que ele tem a inscrição S A M B A Í B A no cano de sua espingarda. Os mais maldosos dizem que é S A M B A D A B A H I A. Mas quero dizer que isso é uma calúnia, uma deslavada mentira.
Suspense no bar. Jorjão ria, meio sem graça, e a turma se espantou daquela negativa que afrontava o mito popular já consagrado. Mas o Saulo prosseguiu:
- Tenho um primo urologista, Dr. Camilo, que me perguntou ontem, se eu conhecia um geólogo da CPRM, de nome Jorjão. Ao confirmar, ele me disse:
- Aquele cara é um fenômeno! Um caso para estudo da medicina.
- Mas por que, primo?
- Rapaz! O cara tem uma arma que é uma aberração. Em estado de repouso, parece uma jibóia enrolada. Desenrolado o pacote, você não credita o que se vê!!
- O que é nprimo?
- Sobre a cobra desenrolada pode-se ler, perfeitamente: S A M B A Í B A. Toda a minha equipe ficou abismada!
O bar quase veio abaixo, das risadas da platéia ávida. E Saulo, deliciando-se com o efeito de sua narrativa, prosseguiu:
- Mas, meu primo me deixou estupefato, quando me contou o final da novela. Ouçam o que ele me disse, depois:
- Todos já tínhamos ficado espantados com aquela inscrição inusitada, mas o pior estava por vir.
Nesse ponto, o Saulo fez uma pausa proposital, para tomar um gole de cerveja, deixando o suspense no ar.
- Então meu primo me disse que quando esticou a jibóia pra introduzir o cateter, o que era S A M B A Í B A foi aos poucos se transformando, até que surgiu a inscrição completa:

SAUDADES DO MEU QUERIDO CARMO DO PARANAÍBA.

- Isso mesmo que você ouviram, com todas as letras!
- Saulo, eu vi com esses olhos que a terra há de comer. E toda minha equipe também. Aliás, todas as equipes que estavam de plantão ontem. Tive de organizar uma fila pra manter o mínimo de ordem no consultório. Foi o maior sucesso. Dona Arlinda, enfermeira da proctologia, entrou na fila três vezes. E Zezito Margarida se ofereceu como enfermeiro voluntário...
Um estrondo de risadas abalou o bar e o Jorjão ficou vermelho, como um peru, embora risse também.
Quando as risadas foram baixando o tom, o sacana do Saulo ainda completou:
- E tem mais. Esqueci de dizer um detalhe. Estava escrito tudo em letras maiúsculas, com pincel atômico!
O bar foi ao delírio.
Nesse exato momento o relógio marcou 21h47, a hora que o Jorjão tinha estipulado como limite naquela noite. Calmamente, ele se levantou, deixou sua contribuição para a conta sobre a mesa e se retirou.
Na esteira de sua ausência, Zé Tampinha, de 1,30m de altura, que a tudo ouvira, quebrou o silêncio:
- Tamanho não é documento minha gente. Eu também tenho uma inscrição na minhoca, em homenagem à minha cidade natal.
Todos perguntaram quase a uma só voz:
- Que cidade Zé Tampinha? Pindamonhangaba?
Ele respondeu orgulhoso:
- Maceió! Minha querida Maceió.
Ante o espanto geral e achando que a mentira tinha sido exagerada, ele consertou:
-É... mas a bem da verdade, o acento do ó ficou bem na beiradinha... Quase não cabe!
Novamente o bar foi ao delírio.
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*Nome fictício

quarta-feira, julho 25, 2007

Pelego é a mãe

Zanata, nome fictício, era daquelas pessoas que costumo chamar de artífices das palavras. É que ele rebuscava seus discursos com raciocínios e frases tão inusitadas que, muitas vezes, escapavam ao entendimento dos mortais comuns. Só para o leitor ter uma idéia, aqui vai uma tirada dele, ao fazer breve intervenção, para saber a pauta de uma determinada reunião:
- Que me desculpem os preclaros, mas conforme reza a dialética determinista pitagórica, reafirmada pelo gongorismo secular de Dennis, os fins podem justificar os meios, mediante certas circunstâncias especiais, levando-se em conta o momento histórico e blá-blá-blá... De modo que seria muito bom se todos soubéssemos, com a devida antecedência, qual é a pauta da porra dessa reunião.
Todo mundo ria de sua erudição incompreendida e ele achava o máximo. Certa vez, numa daquelas intermináveis reuniões preparatórias para a constituição da Coordenação Nacional das Associações de Empregados, CONAE, em Brasília, 1984, Vergílio presidia a Mesa, quando o Zanata fez o seguinte discurso, após o assunto em pauta já ter sido decidido e votado:
- Confúcio, em sua sabedoria milenar, nos legou que o tudo e o nada se confundem nas mentes dos incautos. Nunca é demais ressaltar que o definitivo não existe e que tudo transita de um pólo ao outro, inexorável e imperceptivelmente, deixando em nós o vazio da incompreensão e do niilismo nefasto. Ainda ontem, numa de minhas comunicações telepáticas com as comunidades que habitam o núcleo do nosso orbe, tomei conhecimento da existência de um metal que ainda vai ser descoberto pelo soberbo e ignorante Homem e que vai revolucionar o pensamento ocidental, contaminado pelos resíduos cúpricos dessa civilização materialista e blá-blá-blá...
Todos se olhavam estupefatos. Que diabos Zanata queria dizer?
Vergílio, sangue italiano esquentado e impaciente e, como todos nós, sem entender nada daquilo e ainda, diante do pouco tempo para a pauta enorme, interrompeu o discurso, daquele seu modo Vergílio de ser:
- Zanata, por favor! Seja objetivo, porque o assunto já foi encerrado. A Mesa lhe dá 30 segundos pra encerrar sua fala.
Zanata “queimou as priquitas”, como se diz na minha terra:
- Não aceito imposições da Mesa reacionária e autoritária! Assim falou Zaratustra!
Vergílio perdeu o restinho de paciência que lhe sobrara:
- Cala a boca Zanata! Isso é coisa de pelego!
Zanata teve uma reação inesperada. Partiu pra cima do Vergílio... Tivemos que intervir para evitar uma contenda física. Enquanto ele babava, vociferando maldições eruditas, Vergílio ria, provocando ainda mais ira do agressor.
Um providencial intervalo, com cafezinho e água gelada, acalmou a situação, restabelecendo a serenidade ao ambiente.
Mas, no retorno dos trabalhos, Zanata veio com um dicionário na mão, que ninguém sabe onde ele conseguiu, e pediu uma questão de ordem, para ler aos presentes o significado etimológico da palavra pelego:
-Aquela membrana finíssima que liga a asa ao corpo do morcego...
Tivemos que segurar o Vergílio, porque agora era ele que queria partir para cima do Zanata, que ria, descontando a provocação.
Mais tarde, já quase no encerramento dos trabalhos, Vergílio fez um comentário de que havia colegas que vinham despreparados pra reunião, sem fazer as necessárias discussões prévias, trazendo apenas posições pessoais. Vestindo a carapuça, Zanata levantou-se e, ante a apreensão do plenário, avisou:
- Não se preocupem. Estou calmo.
Encaminhou-se lentamente para a Mesa, onde Vergílio se encontrava impaciente, mas contido. Com o braço direito estendido, o indicador apontando para frente, ele avançou em câmara lenta, causando expectativa geral na platéia. Ao chegar ao limite do dedo alcançar o rosto do surpreso Vergílio, parou e ficou cerca de 30 segundos encarando o opositor, que se manteve firme. No plenário, todos nos preparamos para nova intervenção, temendo um quebra-quebra no auditório. De repente, Zanata infla-se, como um sapo cururu, e dispara, cuspindo saliva no rosto do Vergílio:
- Maldito italiano, maldito, maldito! Mil vezes maldito! Enforque-se em suas próprias palavras!
E voltou-se, tranqüilo, para seu assento. Vergílio retomou a pauta e a reunião prosseguiu em paz.

quarta-feira, julho 18, 2007

Juruna fez escola

Na década de 90, as empresas e organizações governamentais, no Brasil, foram tomadas de assalto pelo Programa de Qualidade Total – PQT. Foi uma verdadeira febre epidêmica. Era PQT pra lá, PQT pra cá, um inferno. Empresa que não tivesse seu comitê de PQT tava ferrada, fora do mercado. E tome executivo viajando pro Japão, e tome japonês chegando por aqui pra ensinar brasileiro a otimizar a rotina do cafezinho, essas coisas. Mas enfim, a CPRM não poderia ficar de fora dessa inovação gerencial e tivemos, também, nosso momento de glória. E foi comitê aqui, subcomitê acolá, núcleos, grupos de trabalho, coordenação nacional, supervisor de qualidade, brainstorm a torto e a direito, instrutor, consultor, cliente, parceiro, um pandemônio.
Se você reclamasse do boy, porque a correspondência fora entregue na sala errada, ele convocava o subcomitê de tramitação de documentos para um brainstorm de emergência, visando a se elaborar uma “espinha de peixe” com a solução do problema. Uma beleza! Em menos de um mês, o comitê submetia um projeto de mudança de rotina à Diretoria Executiva, após um workshop em cada regional.
E tinha o tal do 5S, que era um processo de limpar mesas, gavetas e armários de papéis velhos inservíveis. Foi um Deus nos acuda! O prejuízo que o 5S nos causou, com o desaparecimento de documentos importantes, saiu mais caro do que o que a consultoria cobrou pra implantar o PQT. PQP!
Seus documentos de estimação, você tinha de manter trancafiados, porque se um fiscal do PQT os visse dando bobeira sobre a mesa, caía babando em cima e jogava no lixo, como se fosse papel contaminado com lepra. Numa dessas, jogaram fora todos os mapas de afloramentos, feitos a mão, de um dos mais importantes projetos da Superintendência de Recife. Um horror!
E tinha também a avaliação do cumprimento de metas, GDP, feita ao vivo pelo seu chefe, na sua cara. Maior barato! Depois do discurso, o chefe dizia que você, apesar de todas aquelas qualidades que ele ressaltou, precisava se esforçar um pouco mais, em prol da equipe e que somos um time e que tinha certeza de que você iria melhorar e etc e tal. E você podia discordar à vontade, desde que concordasse com tudo o que ele dissera.
Aí o gerente marcou com Zanata (nome fictício):
- Amanhã, às 8h00, venha à minha sala para seu GDP.
Extremamente desconfiado e ressabiado com o andar da carruagem, o geofísico Zanata se apresenta, com pontualidade britânica, a seu amado chefe. Após os cordiais cumprimentos e o cafezinho especial, o chefe chama pro serviço:
- Então? Podemos começar?
- Pois não! Só um momentinho...
Pra espanto do chefe, Zanata tira da capanga de couro um pequeno gravador, a pilha, liga o dito cujo e o posiciona sobre a mesa, voltado para o gerente, em tom decidido:
- Atenção! Gravando! Ok, vamos lá...
O chefe se indigna e do alto de sua autoridade, aperta o botão stop:
- O que é isso Zanata? Uma brincadeira?
- Não doutor. É que eu quero usar o que vou ouvir aqui hoje, como fonte de reflexão, pensando em minha melhoria futura.
- Negativo! Recuso-me a ser gravado. Isso é um desrespeito!
Zanata, calmamente, levantou-se, recolheu o gravador para a capanga, de onde nunca deveria ter saído, olhou fixamente nos olhos do chefe e disse, as palavras lhe saindo quase das pontas dos dedos em riste:
- Pois se o senhor tem medo de suas próprias palavras, quanto mais eu, doutor! Hasta la vista baby!
E saiu, tranqüilo e calmo, para estupefação do chefe, engasgado num silêncio embaraçoso.
Se ele foi avaliado, em outra oportunidade? Não sei. Sei que ele espalhou pra todo mundo que o chefe era medroso e o chefe espalhou que ele era doido e no fim ficaram todos felizes.

domingo, julho 08, 2007

Maurinha Escandalosa

Conceição do Araguaia, na época, 1976, era um aglomerado de não mais de 5.000 habitantes, mas era o centro civilizado mais avançado naquele sul do Pará, ainda tranqüilo, sem as disputas fundiárias que viriam incendiar a região tempos depois. Ali nos despedíamos da civilização, antes de embrenhar nas matas para as pesquisas que então desenvolvíamos, quais bandeirantes modernos, meses a fio entre Txucarramães, caboclos, garimpeiros, guaribas, mutuns, jacamins e o mistério da selva silenciosa e traiçoeira.
Pois bem, voltemos a Conceição do Araguaia. No comércio local, adquiri víveres para 30 dias de campanha e divulguei na cidade que precisava de peões e cozinheiro. Rapidamente, selecionei os candidatos, entre os muitos que se apresentaram e partimos para os cafundós da serra do Quatipuru, em algum local no coração do Brasil. Causou-me muito boa impressão o cozinheiro Mauro, pela experiência em vários garimpos, pela surpreendente desenvoltura e conhecimento de culinária, inclusive demonstrando grande capacidade de previsão de consumo, por cada item da dispensa, um diferencial que o distinguiu de imediato. Tinha 19 anos. Nada, então, me faria imaginar que o Mauro entrevistado, se transformaria na Maurinha Escandalosa, de poucos dias depois. Mas, deixemos a história seguir seu curso, sem antecipações precipitadas.
Esqueci de dizer que nossa equipe era de dez pessoas, além de alguns guias e índios que fomos arrebanhando pelo caminho. Nossa tropa se movia no lombo de duas Rurais Willys e uma picape Ford F-100. Enfim, uma caravana preparada para o que desse e viesse. De modo que uma semana depois, instalávamos o primeiro acampamento fixo, no terreiro de uma fazenda abandonada, ao lado de antiga roda d’água e os trabalhos deslancharam.
Mauro, o protagonista do nosso causo, se levantava às 4h00 da manhã e preparava um laudo almoço, com tudo o que as condições permitiam, além de aprontar os alforjes para a dura jornada das equipes. Ágil, criativo, bem humorado, logo cativou todos. Passava o dia só no acampamento e se virava bem com os índios curiosos que costumavam aparecer por lá, furtivamente, vez em quando. Por volta de 16h00, quando as equipes começavam a regressar, ele recepcionava os trabalhadores com uma indefectível saudação:
- Olá meus rapazes! Sejam bem vindos!
Bom, os dias foram passando e o Mauro, cada vez mais foi se desinibindo, ficando mais falante e começou a desmunhecar. A princípio, de forma discreta, mas 20 dias depois ele já era a Maurinha, apelido colocado pelo Reinaldo, um técnico muito gaiato, por quem o cozinheiro denotou irresistível queda. E perdeu a moral, digamos assim. Passou a ser alvo de brincadeiras grosseiras e piadas preconceituosas, mas ele parecia gostar, pois cada vez mais ficava à vontade entre “seus rapazes”. Quando terminava o jantar, ali pelas 18h00, começava a sessão das gozações, que se estendiam até as 20h00, quando finalmente nos recolhíamos da lide diária. Ninguém mais o chamava pelo nome masculino, exceto eu, claro, e Antonio, um técnico muito conservador, que não admitia essas “perversões”, como ele dizia. Para os demais, passou a ser a Maurinha e ponto final.
Quando percebi o rumo das coisas, compreendi que tinha de acabar com o clima, antes de perder o controle da situação. Eu sabia que, até ali, tudo se resumia a brincadeiras, embora eu tivesse certeza de sua paixão pelo Reinaldo. Mas era só questão de tempo para uma investida mais objetiva. Tinha de agir rápido. Por experiência, nunca deixava a rapaziada mais de 30 dias sem “descarregar as energias”. O ideal eram 20 dias, quando as circunstâncias permitiam, mas ali, não tinha jeito. Já fazia quase um mês que estávamos todos a “pão e água”.
Anunciei que dali a dois dias iria com o Mauro e Antonio à cidade, repor os mantimentos e que no próximo final de semana, Reinaldo levaria todos para o Entroncamento. Falo de um point de beira de estrada, 20 km do acampamento, onde os garimpeiros da região iam vender ouro e namorar as “meninas do trecho”, garotas nômades que transitavam pelos garimpos da floresta, trocando o vil metal por uns minutos de companhia. A satisfação foi geral, inclusive do Mauro, que se dizia muito saudoso da mãe. Mal sabia ele que não voltaria mais ao acampamento.
Pois bem, no dia seguinte, a equipe do Reinaldo, talvez pressentindo meus planos, resolveu fazer uma despedida do cozinheiro. Bolaram a pegadinha mais sádica que se pode aprontar com um ser humano.
Mataram uma sucuri de 1,70 m, na picada (normalmente, nunca matávamos cobra nas picadas, apenas nos desviávamos delas), puseram a dita cuja numa mochila e trouxeram para o acampamento. Eu não sabia de nada, foi tudo armação do Reinaldo. Mas desconfiei quando, logo depois do jantar, ao invés da costumeira rodinha de brincadeiras maliciosas com o Mauro, todos alegaram sono e se recolheram mais cedo. O próprio Mauro estranhou a moleza dos seus rapazes. Mas o pobre nem desconfiava que sua paixão, Reinaldo, tinha entrado furtivamente na barraca ao lado da cozinha e colocado a sucuri enrolada, no seu saco de dormir.
Na verdade, todos fingiram que foram dormir mais cedo, mas ficaram esperando o desfecho da pegadinha. De suas barracas, ficaram à espreita, esperando se apagar o lampião a gás que iluminava o acampamento. Seria o sinal do recolhimento da vítima. Na minha barraca, lia sob a luz de vela, quando vi o lampião se apagar e, em seguida, ouvi barulho do zíper da barraca do Mauro se abrindo e fechando. Seriam, no máximo, 19h30 daquela quarta-feira escura, de lua nova na floresta. Depois do zíper, um silêncio sepulcral e depois o barulho dos passos dos jacamins ao redor do acampamento e depois os gritos mais pavorosos que ouvi na minha vida.
Embora a mata seja muito quente durante o dia, a umidade faz as noites frias, de modo que o saco de dormir, além de aquecer dá uma gostosa sensação de segurança. Mauro era baixinho e por isso seus pés só tocaram a cobra, colocada estrategicamente no fundo, ao se ajeitar no saco, já depois do zíper fechado e da vela apagada. Quando percebeu do que se tratava e começou a se debater sob o impulso do terror que o assaltou, suas pernas foram se embaraçando com a cobra gelada e suas mãos não conseguiram achar o zíper para abrir o saco.
Sua voz era fina e cortante como o canto de mil carpideiras:
- Oh! Meu Deus! Me mordeu... Um cobra... Socorro! Me ajudem, a cobra me mordeu. Valhei-me meu Jesus Crucificado! Socorro! Mãezinha!
Ninguém faz idéia do que são gritos assim, no silêncio da mata. Fiquei paralisado, arrepiado da cabeça aos pés, sem a menor possibilidade de qualquer movimento, durante uns trinta segundos. Nem falar eu conseguiria, nesses segundos fatídicos, tal o pavor que me dominou. Mas, passado o torpor inicial, notei que, além dos gritos lancinantes, havia barulho de risadas desabridas nas outras barracas. Na hora, vi que havia algo errado.
Em sua agonia, Mauro rasgou o saco de dormir e, ao tentar abrir o zíper da barraca, destrambelhado e no escuro, fez com que toda a estrutura arriasse, caindo em cima dele, aumentando ainda mais seu pavor. A essa altura eu, o Antonio e mais alguns peões compadecidos, já chegávamos ao barraco do pobre, de lanternas na mão, procurando entender o acontecido. Após o resgate, ele quase desmaiado, trêmulo e balbuciante, sem dizer coisa com coisa, o Reinaldo, aos soluços de riso, explica a brincadeira. Só não o demiti ali mesmo, naquele momento, porque não tinha a menor possibilidade de substituição de sua capacidade técnica. Eu era refém de sua competência e calculei bem a situação para não fazer besteira e me arrepender depois.
Difícil foi convencer o Mauro de que a sucuri não o tinha picado. Ele jurava que sentira a mordida. Quando Reinaldo trouxe a defunta e lhe mostrou, só aí ele relaxou um pouco e começou a esboçar um sorriso amarelo que expressava grande decepção com o alvo de seus afetos. Demos a ele muita água e um chá de maracujá, que alguém colheu ali mesmo no terreiro da velha fazenda. Nessa noite e na seguinte, antes da viagem, ele dormiu na dispensa, em uma rede. Não quis mais voltar para a barraca, nem para o saco de dormir. Adverti o Reinaldo severamente. Apliquei-lhe como pena, pedir desculpas ao Mauro, que foram aceitas com lágrimas nos cantinhos dos olhos.
Bom, mantive meus planos e dispensei o Mauro, na cidade, sem maiores dramas. Ele compreendeu e ainda me arranjou um substituto que não “virava a casaca”, como ele mesmo me garantiu, sorrindo.
Quatro meses depois, quando encerramos os trabalhos na região e íamos nos mudar para Marabá, retornamos a Conceição para deixar os peões e tomar um “banho de civilização”, antes da nova campanha. Concedi três dias úteis de folga a todos.
No final da tarde do segundo dia, enquanto tomávamos cerveja num bar da praça principal da cidade, quem nos aparece? Isso mesmo! O Mauro, agora já apelidado de Maurinha Escandalosa, com um “retratista” a tiracolo. Queria, porque queria, guardar uma recordação dos amigos. E tirou dezenas de fotos com todos nós. Mas, na verdade, todos sabíamos que ele queria mesmo era tirar fotos de sua paixão. Era de se ver o brilho de seus olhos, quando Reinaldo passou os braços em seus ombros, para uma foto a sós, a nosso pedido, apenas os dois pombinhos.
Dois dias depois partimos e já se vão 30 anos. Nunca mais passei por Conceição do Araguaia. Também do Reinaldo não tenho notícias, há 25 anos. C’est la vie. Antonio, Reinaldo, Mauro, Maurinha Escandalosa... Pedaços de minha história que ficaram para trás. Que terá feito o Mauro de sua vida? Ainda conservará a foto de sua paixão? Ainda se lembrará da picada da cobra defunta? Não sei. Sei que jamais se ouviram, naquelas bandas da floresta, gritos tão lancinantes. E sei que trago comigo uma saudade imensa dos velhos companheiros. Se pudesse, reuniria todos num grande e fraternal abraço, que resgatasse tudo o que passamos naqueles dias venturosos da minha juventude geológica.

segunda-feira, julho 02, 2007

Retrato e espelho

Retrato meu de outros tempos...

Que é feito dos cabelos fartos,
Dos cachos negros, de piche,
Revoltos, que eram fetiche,
Que eram assim, portos e partos,
Que acendiam desejos,
Que recebiam mil beijos
Na embriaguez dos quartos?

Que é feito do riso largo
Que às mulheres seduzia?
Onde a jovial alegria
Da vida sem peso e cargo,
Dos dentes de alvo Carrara,
Dos lábios de maçã rara?!
Meu riso hoje é preso, amargo...

Que é feito do olhar feliz
Que olhava a vida de frente?
Olhos de luar, dolentes,
De azeitona, brasa e giz,
Que riam antes da boca,
Que expressavam ânsia louca,
Que encantavam a meretriz?

Que é do antigo vigor?
Daqueles anos dourados,
Daquele rio encantado,
Daquelas tardes em flor,
Daquelas noites de festa,
Daquelas tristes serestas,
Do meu fugidio amor...?

Que é dos meus verdes anos
E daqueles sonhos loucos
Da juventude que, aos poucos,
Enquanto tecia planos,
Foi passando e eu nem senti?
Que é do dia em que parti
Pra viver meus desenganos?

Retrato meu, cruel espelho,
Que saudades vêm de ti!
Da juventude a sorrir
Sem nunca pensar no velho,
Só esperanças no olhar,
O cabelo a esvoaçar,
O blusão de brim vermelho...

Da namorada querida,
Das juras de amor eterno,
Do beijo escondido e terno,
Com a alma embevecida
À sombra do tamarindo...
Daquele passado lindo!
E aquela triste partida...

Espelho meu... Cruel algoz!
O tempo, implacável juiz,
Fez cair a tarde gris,
Como um despertar atroz,
Como o pano ao fim da peça.
Não há ilusão que impeça
Ir-se o tempo assim, veloz.

Espelho meu, que fizeste?
Só vejo sulco em meu rosto!
E um olhar frio de desgosto.
Estás me fazendo um teste?
E esses vincos nus na testa?
Cadê meu riso de festa?
“Resigna-te!”, tu disseste?!

“Viveste a louca paixão
Da mocidade aloprada,
Dos desvarios, das noitadas,
Não viste, a teus pés, o chão...
Vivendo de zombarias,
Feriste tantas Marias,
Nem tiveste compaixão!”

“Resigna-te, digo agora,
Que os anos não voltam mais.
Plantaste, tempos atrás,
Colhe teu fruto e não chora
Semeaste amores vãos,
Suporta o tremor das mãos,
Ergue-as a Deus e, então, ora.”

Retrato meu, que saudade
Das manhãs ensolaradas,
Das noites enluaradas,
Dos dias da mocidade!
Pudesse o tempo voltar,
Dormir agora e acordar,
Aos quinze anos de idade!

Embaça-me já escuro véu...
Tudo é velho e tarde em mim.
Joguei um jogo chinfrim,
No qual fiz triste papel...
Já vejo o pó da ampulheta
A se extinguir na luneta
Do tempo. Só resta o fel...
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Brasília, outubro de 2005