domingo, dezembro 20, 2009

Duelo de insanos

Primeiro Ato - Mexeu com meu amigo, mexeu comigo.

Naquele dia, Pepe* se desentendera fortemente com Abel*, na Empresa. Ambos eram geólogos do time titular, digamos assim. Muito conhecidos e respeitados entre seus pares. Os motivos do desentendimento? Perderam-se no tempo, mas asseguro que foi banalidade, nada que justificasse aquele tom de voz, aquelas ameaças... Coisa de ego, nada mais que isso. Mas o fato é que a discussão estava ficando fora de controle, perturbando o ambiente de trabalho.

Numa sala vizinha, Jonas*, grande amigo de Abel e conhecido estopim-curto, não se conteve e foi lá tomar partido, mesmo sem ter a menor idéia do porquê da briga. Passional como só ele mesmo, não iria permitir seu amigo-irmão ser desmoralizado assim, sem mais nem menos, debaixo de seu nariz, como ele me contou depois. Coisa de geólogo, cá pra nós. A justificativa dele:

- Porra! o cara chamou meu amigo de cagão!! Como eu poderia permitir uma coisa dessas?

A entrada teatral e furiosa de Jonas na sala pegou Pepe de surpresa e deixou-o completamente sem ação. Agora foi ele quem ouviu, pianinho, todos os impropérios que Jonas conseguiu vomitar, antes de resgatar seu amigo, não sem antes assacar seu ataque final:

- Vamos embora, que esta sala está contaminada com o virus da covardia e da filadaputice!

Assim arrematando, saiu, corredor a fora, com Abel, ainda atônito, pelo braço. Atordoado pela surpresa e pela autoridade de Jonas, Abel deixou-se levar sem mairores resistências, até mesmo com certo alívio, pelo que me disseram. Para quem conhece as coisas do futebol, Abel estava mais para Ademir da Guia do que para Edmundo.

E a tarde se foi e o expediente também e todos regressaram a seus lares na paz de todos os dias.

Peraí! Todos??

Segundo Ato - Pintou tragédia

Não foi bem assim. Naquela tarde, um coração voltou pra casa flechado pelo veneno da vingança. Pepe não se conformava. Quisera dar uma chamada de saco em Abel e acabara levando um tremendo esculacho de Jonas, no melhor estilo barraco, pra Deus e o mundo ouvir. Puta que pariu! Isso não ficaria assim!

De seu turno, Jonas, por ser do tipo que explode logo e alivia a pressão, já estava em outra. Para ele, os acontecimentos da tarde já pertenciam ao passado. Sem ressentimentos. Oito horas da noite, o Jornal Nacional já ia começar, quando o telefone toca em sua casa. Chamado pela mulher, lá foi ele atender, contrariado, pois o JN era o único programa que gostava de ver. E então deu-se esse impensável, mas impagável diálogo, entre dois geólogos da mais pura cepa:

- Alô!

- Olha aqui seu filho da puta! Você me pegou desprevenido hoje à tarde, mas não pense que isso vai ficar assim não!

Estopim-curto acendeu imediatamente:

- Vai tomar no cú, seu merda! O que você quer?

- Eu vou te ferrar, filho da puta! Tá pensando que é o bom, o valentão?

- Rarará!!! Tô me cagando de medo!

- Pra mim, você é um monte de bosta mesmo e eu vou te encher de porrada. Te desafio para um duelo na mão, hoje mesmo. Tem coragem?

- Claro babacão! Só me diga onde!!

- Daqui a uma hora, atrás do mercado, no bar da dona Jurema, sabe onde fica?

- Não se preocupe, eu encontro.

- Mas não vá faltar, viu seu cagão, senão eu vou te pegar aí mesmo na sua casa!

- Você tá morto, cara! Eu vou te matar!

Pronto, pintou tragédia!

Excitadíssimo, contou o surreal desafio para a esposa e já foi botando uma camisa para sair. A esposa, pessoa centrada, não acreditou no que ouvira.

- É uma brincadeira, né?

- Brincadeira, uma porra! Pode sair da frente que hoje eu dou uma lição naquele babaca.

E assim dizendo saiu feito um furacão, porta a fora, já com a chave do carro na mão.


Terceiro Ato - Angústia da procura


A esposa, desesperada, pois conhecia o gênio da fera, correu a vestir uma roupa, pois estava de camisola. Mas, quando voltou, o insano já tinha partido e ela nem sabia para onde. Ficou paralisada junto à porta, impotente ante tanta irresponsabilidade e sentindo o cheiro de tragédia no ar. Pensava em sua família distante e na filhinha de apenas seis meses que dormia tranquila nos braços da babá. Sem perder mais tempo, ligou para Abel, grande amigo do casal, e compartilhou sua aflição. Este, sentindo-se responsável, ligou para vários colegas e decidiram, após avaliarem todos os possíveis locais do inimaginável duelo, sair em duplas por alguns botecos selecionados, pois a única pista que a esposa capatara é que o duelo seria num bar.

Sem poder participar da busca, a esposa quedou-se ao lado da inocente filhinha, desfiando todas as orações de que se lembrava, na esperança de que seus santos trouxessem o marido de volta, são e salvo.

E o tempo passou.

Enquanto os ponteiros rompiam a noite, Abel e amigos vasculharam, uma por uma, todas as ruas, vielas e becos do bairro. Nenhuma informação. Ninguém deu a mais mínima notícia dos valentões. A cada dez minutos, Abel ligava para a esposa:

- E aí? Apareceu?

Mas, a única resposta que ouvia era um não angustiado.

Por volta de uma da manhã, todos reunidos na casa de Jonas e sem outra alternativa, resolveram ligar para a casa de Pepe. A outra esposa atendeu sonolenta:

- Não, Pepe saiu desde cedo e até agora não voltou. Aconteceu alguma coisa? Que horas são? Nossa! Aquele safado me paga!
Foi então que alguém se lembrou do irmão do chefe local da Empresa, delegado de polícia e contumaz quebra-galho da geologada descuidada da vida. No desespero, era um fio de esperança concreto, experiente e com a frieza necessária para tomar decisões nesses momentos. Afinal o silêncio deixava a todos com os nervos à flor da pele, olhando-se com medo de seus próprios medos, segurando as palavras. Teria a tragédia se consumado?

Por fim acionado, o prestimoso chefe acionou o irmão, que acionou seus pares delegados, que acionaram toda a frota de viaturas em serviço naquela noite calorenta tropical. Às duas horas da manhã, todos os policiais acordados da cidade procuravam os dois brigões, dando batida na periferia, checando com informantes e vasculhando pontos, bocas, casas de luzes vermelhas... Nenhuma possibilidade poderia ser descartada àquela altura.

De repente, o telefone toca na casa de Jonas. Todos correram ao mesmo tempo, mas foi a esposa quem atendeu, aflita. Era a segunda esposa que, extremamente preocupada, reslovera engrossar o time de buscas e deu a pista:

- Olha, se eles foram para algum bar, deve ser a birosca de dona Jurema, um pega-bêbo atrás do mercado... Não tem placa, é uma casa com um balcão nos fundos.

Quarto Ato - A birosca de Dona Jurema

Com as coordenadas fornecidas, partiram em comboio, com o coração apertado. Que cena os aguardaria? Em menos de 20 minutos o esquadrão de busca alcançou a malfadada rua, na verdade um beco. Pensem num lugar sinistro! Era o tal local. Sem iluminação e sem asfalto e cheio de vira-latas virando latas literalmente. Seguindo as indicações da segunda esposa, deram com uma casa-barraco de portas semi-abertas, uma minúscula sala com mesas da Antártica fechadas e encostadas na parede, indicando fim de expediente. Um corredor escuro, vazio, dando noutro salão à meia-luz, vazio, onde havia um balcão ensebado de madeira. No ar, um cheiro esquisito de salmoura.

Atrás do balcão, cochilando ao lado de uma dose não tomada, um velho esquelético, camisa aberta, bigode engraçado, que quase sai em disparada, quando viu a troupe invasora. Parece ter visto um bando de ETs.

Finalmente, lá no canto mais escuro do salão, a cena que até hoje ninguém consegue esquecer.

Na verdade, por mais que todos tivessem, cada um a seu modo, imaginado o final daquele duelo tresloucado, ninguém, nem de longe, se preparou para o quadro que, naquele momento, presenciaram, boquiabertos.

Seu Joca, o barista assustado, foi quem relatou, com os devidos detalhes, o que viu, com os olhos que a terra comeu, pouco tempo depois. E então ouviu-se a mais espantosa história de duelo que já se deu sob esse mundão de meu Deus.

Último Ato: O Gran finale

Com a palavra, seu Joca.

Era por volta de 9hs da noite, quando Pepe, velho conhecido, apareceu, para sua surpresa, vez que não fazia parte de sua clientela de meio de semana. Costumava, sim, frequentar sua modesta birosca, mas apenas aos sábados, quando vinha comprar coisas do Nordeste, no velho mercado, em frente e então aproveitava para umas rodadas de sinuca, ao embalo de uma cachacinha de rolha e suas tradicionais carne de sol e linguiça de bode, artesanais, as melhores da cidade, modéstia às favas!

Mas, como dizia, foi com surpresa que viu Pepe surgir de repente, naquela noite, pedir uma cerveja e se aboletar sozinho, na mesa mais isolada, aos fundos da casa, bem na entrada de uma sala lateral, onde ficava a mesa de sinuca. Depois da segunda cerveja, nitidamente esperando alguém que não vinha, resolvera aceitar o desafio do velho Quinca, um fanfarrão do taco, para uma rápida partidinha.

Mais ou menos 30 minutos depois, enquanto Pepe levava uma sova do velhote, chega Jonas, esbaforido, assustado, olhando para os lados, aparentemente procurando alguém. Perguntou se ali era mesmo o bar de dona Jurema. Sim, minha falecida esposa. Eu sou Joca, às suas ordens. Sentiu cheiro de encrenca no ar, primeiro porque tinha a presença estranha de Pepe em plena quarta-feira. Segundo, aquele cliente novo, bem vestido, não tinha o perfil dos frequentadores de sua humilde birosca. Que diabos estava acontecendo? Se é uma coisa que não tolerava era confusão em sua casa. Polícia?? Nem pensar!

Bom, mas o fato é que, com com ar de desapontado, talvez por não ver quem esperava, Jonas pediu uma cerveja e se postou, solitário no salão da frente. Fora do alcance, portanto, da vista de Pepe. No sala dos fundos o velho Quinca deitava e rolava em cima do nervoso oponente.

E o tempo passou.

No salão da frente, Jonas tomava uma cerveja, uma pinga, olhava no relógio e pedia mais outra, impaciente e agitado. Por várias e várias vezes esse ciclo etílico foi reiniciado.

Perto das 23hs, quando normalmente o boteco já estaria fechado, Pepe sai da sala de sinuca para mijar e só então vê Jonas na mesa cheia de garrafas vazias, na sala da frente. Àquelas alturas, ambos já estavam mais pra lá do que pra cá. Pepe, sem conseguir ganhar umazinha sequer de Quinca, tanto se concentrara no jogo, que até tinha esquecido do porquê estava ali naquele buraco imundo, plena quarta-feira. Ao ver Jonas, colega de mais de 20 anos de empresa, sua primeira reação foi a de quem viu um velho companheiro e não o adversário desafiado para duelar. Meio zonzo de tanta cerveja, caminha lentamente para o colega desafiado, que ainda não o tinha visto. A meio caminho foi pensando na merda que tinha feito.

Jonas, que já estava quase dormindo sobre a mesa, ao ver o desafiante em sua frente, levou um susto e tentou se postar de pé, com os punhos em guarda. Tentou, porque na tentativa, desequilibrou-se e se esborrachou no chão imundo da birosca. Ajudado por Pepe, recompõe-se e fica sem saber se parte pra cima ou agradece a solicitude. Um drama kafkiano vivido em frações de segundo, pois o que ouviu em seguida o deixou sem jeito:

- Faz tempo que está aqui?

Abobalhado, apenas respondeu, educadamente:

- É... E você? Chegou agora?

- Não cara, já faz um tempão! É que estou lá nos fundos, na sala de sinuca... Vamos pra lá!

Sem entender o que aquele convite significava, Jonas seguiu Pepe até a salinha escura, onde Quinca, inteiraço e todo pavão, aguardava com um copo de cachaça na mão. Pepe foi logo apresentando:

- Esse aqui é um colega de trabalho.

- Prazer, Quinca.

Querendo resolver logo a situação embaraçosa, Jonas perguntou a Pepe:

- E aí, como é que vai ser?

O velho Quinca, papudo e considerado o melhor taco da vizinhança, respondeu antes do indeciso Pepe:

- Podem vir os dois contra mim, que eu dou conta. Hoje estou com o diabo no couro!

- Nada disso! Eu sozinho vou lhe dar uma surra agora, seu convencido de uma figa. Se prepare!

- O que? Você sozinho? Olha rapaz, em você eu vou dar é com um braço só. Assim dizendo, escondeu um braço atrás do corpo e levantou o taco com o outro.

Nesse momento, Jonas tomou-se de um sentimento corporativo e postou-se, cambaleante, frente a Quinca, braços abertos:

- Só passando sobre o meu cadáver!

- Ah, é? Então tá bom, venham os dois!

Foi o que bastou. Como se fora o fecho de ouro  daquele diálogo do crioulo doido, Jonas deu um murro tão grande na cabeça do aparvalhado Quinca, que o velhote saiu catando cavaco até se esborrachar contra o quadro de tacos, na parede dos fundos, antes de cair em meio à avalanche de tacos esparramados pelo chão, uma cena típica de faroeste barato, do tempo do cinema preto e branco. Um corpo caído, dois bêbados, uma luz mortiça no meio da madrugada e um dono de boteco com as mãos na cabeça exigindo explicações, como se isso fosse possível naquele ambiente surreal.

Vendo o velhote semi-desmaiado, Pepe sensibilizado pela inesperada atitude de Jonas, pegou-o pelo braço:

- Vamos tomar uma saideira, enquanto esse velho fanfarrão acorda.

Mas o Joca não tinha gostado nadinha da agressão a um de seus mais antigos e constantes fregueses:

- Olha aqui, acho melhor vocês pagarem a conta e ir embora. Não deveriam ter feito isso com o pobre.

Aí, quem se queimou foi Pepe, que partiu para a defesa do amigo:

- Bota uma saideira sim! E quer saber de mais? Esse velho safado mereceu.

Sem esperar pela resposta, ele próprio dirigiu-se à geladeira, tirando uma garrafa vestida de véu de noiva.

Para não piorar a situação o rabugento, mas covarde Joca, voltou para o balcão e tratou de servir intermináveis saideiras.

O velho Quinca logo logo aprumou-se e ainda tomou umas duas por conta dos amigos valentões, sem ressentimentos.

E o tempo passou. E a bebida passou dos limites. E os adversários que deveriam se bater em duelo, passaram a contar histórias de campo, dos projetos em que trabalharam juntos e a noite tornou-se uma criança. Lembra daquela? Ih! Já tinha me esquecido, e aquela? Puxa, sabe que tenho saudades daquele tempo!?

E tomaram mil saideiras e se desculparam mil vezes e se abraçaram mil vezes e juraram mil juras de amizade eterna e desabaram sobre a mesa, um no ombro do outro.

E foi assim, nesse estado rocambolesco, dantesco, romanesco, mas, sobretudo, grotesco, que a dupla de duelantes foi encontrada e resgatada pela turma de Abel, para espanto e alívio geral.

É certo que as gozações depois foram terríveis, mas o assunto finalmente foi sepultado no cemitério do folclore geológico, exumado agora, para deleite de nossa inquieta memória. Afinal, que seria a vida sem essas deliciosas histórias? Uma chatice! Uma coisa porém é certa: nunca, em momento algum, aqui ou alhures, ninguém jamais verá um duelo como esse. Coisas de geólogo.

Bsb, 30/05/2010, dia do geólogo

sábado, julho 18, 2009

Nada foi em vão

Mas, nada foi em vão!
Pelo contrário,
Tudo foi preciso e bom
E necessário.
E, afinal, ficou o aprendizado.
A alma humana é tão pequena
Quão complexa,
E a dor que nos embota o entendimento
E humilha a razão e a faz perplexa
É, de fato, o grande ensinamento.
E os acessos de paixão,
Com suas chamas e brilhos de salão,
São raios que enceguessem a alma.
E a alma cega é como um vôo sem plano,
A descampar imensidões... Desertos...
É grito débil de pulmões vazios,
Sob o pulsar de um coração insano...
Canoa frágil, contra o mar bravio.

Não, repito, nada foi em vão!
Nem mesmo a dor,
Nem mesmo a traição covarde,
Pois, se afinal, o peito ainda arde,
Tenho a visão mais clara
E os olhos secos,
E a voz mais firme,
E o andar mais calmo...
E serenada a alma,
Agora sou mais forte
E as canções, mais doces
E os versos, mais sutis
E os dias, mais azuis.

Não, amigo, nada foi em vão!
Tudo foi apenas como havia de ser.
Se doeu? Não vou negar, doeu.
Mas já passou, já perdoei
E agora sou mais livre,
Agora sou mais eu.
Por isso não se engane:
Seja na aurora, ou no ocaso,
Na subida, ou no declive,
Sejas tu granfa, ou povão,
Tudo o que a gente vive,
Nada! Nada é por acaso,
Nada acontece em vão!


Rio, 18/07/2009

quinta-feira, maio 28, 2009

Geólogo beleza


Quem é esse louco que fita a barranca
E depois de contemplá-la em êxtase
Cai-lhe em cima, em fúria bruta
E a esburaca e a atormenta e a espanca?

Que faz aquele bando, no corte da estrada,
Em discussões febris, ao pé do mestre?
Por que o ataque rude, a marteladas,
A espantar o motorista e o pedestre?

Quem é aquele doido, que alisa a pedra,
Que lhe examina com lupa, os detalhes,
Que a tudo registra, com sutil presteza,
E, com afiada lâmina, lhe assesta um talhe?

Que faz aquele tonto, de aparelho em punho,
A medir, quem sabe lá, que estruturas
De planos surreais, imaginários?
Decifrando, da terra, suas santas escrituras??

E aquele outro ali que, insatisfeito,
Ainda cheira a pedra e a leva à boca!?
Que o recolham às grades, sob algemas,
Antes que saia por aí, de meia e touca!

Mas... Eis ali um jovem, na planície,
A contemplar a serra, inebriado e mudo,
Tecendo mil teorias, explicando tudo
Sobre a ascensão do magma à superfície.
A princípio, julguei ser um astrólogo,
Mas, agora, bem de perto... É um geólogo!
E o sei pelo martelo e a imundície.

Bípede falante, corpo ereto,
Dos gêneros humanos, o mais louco,
De tudo, tudo mesmo, ele é um pouco:
Meio médico, biólogo, arquiteto,
Meio poeta, meio vilão, meio artista.
Escrivão da Natureza e jornalista,
No chão imundo do mundo sem teto,
Bisbilhotando os fósseis escondidos,
Seus ventres estuprados, seus partos perdidos,

Rebentos da Terra... Seu filhos, seu fetos.

Bsb, 29/05/2009 - Homenagem bem humorada ao profissional geólogo, pelo seu dia, 30/05.

terça-feira, abril 21, 2009

Estou no quintal da casa do Amaro

Segundo Zoraide*, sua companheira, naquela sexta-feira fatídica do suicídio, ele não fez nada diferente. Pelo menos, nada que indicasse a tragédia que estava por vir. Mal o sol despontou, saltou da cama com seu corpanzil de 1,90m, tomou um copo d’água e se mandou para a cava da Irenã. Era assim que chamavam aquela escavação imensa, onde cerca de meia dúzia de homens trabalhavam 24 horas por dia, perseguindo um fugidio veio aurífero, no Garimpo do Saci. Ali, como fazia há dois anos, ouviu o relato da produção noturna, recebeu o saquinho com os gramas de ouro apurado, tomou café com os trabalhadores e orientou as próximas detonações, com seu faro de velho lobo dos garimpos amazônicos.

Por volta de dez horas, sob um sol de brasa viva, voltou ao barraco, com um envelope na mão, acompanhado por Amaro*, um mulato esquisitão, que morava sozinho, ali perto. Não era de muitos amigos, calado e arredio. Os maledicentes diziam que era fugido do Garimpo do Taioba, onde matara dois desafetos, por questões menores, coisas de ciúmes.

Uma das poucas pessoas que freqüentava seu barraco era exatamente o Paraná, o garimpeiro que vai se suicidar nessa sexta-feira. Zoraide nunca soube o porquê daquela aproximação. Ficavam semanas e até meses sem se falarem, mas, de repente, num belo dia, Amaro dava sinal de vida e os dois sumiam, barraco adentro, às vezes por uma tarde inteira. Ele nunca lhe disse o que tanto conversavam. Ela achava que eram questões de negócios e pronto.

Depois do acontecido, Amaro desapareceu e Zoraide começou a ligar alguns fatos... Hoje, ela tem certeza de que os dois se conheciam de muito tempo e que o Amaro era um elo entre o Paraná e algum fato tenebroso de seu passado, que ela nunca vai saber. Depois desses encontros, ela agora se dá conta, ele ficava misterioso, silencioso, pensativo. Certa vez, notou seus olhos vermelhos, mas ele negou que tivesse chorado. Tomou mais uma pinga e encerrou o assunto.

Voltando ao fatídico dia, devo dizer que nosso encontro no bar da Nely*, por volta das 20h00, também ocorreu como todas as outras vezes, na maior normalidade. Ele era fanático por músicas de seresta e enquanto eu estivesse na cidade, nos reuníamos quase todas as noites ali, sob a velha Gameleira, tomando cervejas, uma que outra cachacinha e saboreando o pato que a mãe da Nely nos preparava, a gente pedindo ou não.

Embora lhe chamassem Paraná, tenho convicção de que ele era mineiro ou goiano. Creio que não tinha mais de 40 anos, mas as adversidades da floresta, as agruras da lide garimpeira, os sofrimentos da vida nômade, talvez a ausência dos afetos, enfim, talvez tudo isso colocou sulcos precoces, em sua face clara, que lhe davam uma enganosa maturidade. Era do tipo bonachão, calmo, bem humorado e gostava de uma boemia como ninguém. Fazia enorme sucesso com as mulheres e, dizia-se, tivera uma fieira delas. Enfim, era um boa-praça, prestativo, desapegado, um tipo raro que deixou muitas saudades. Até hoje não me conformo com seu ato tão extremo, tão violento.

Como dizia, foi uma noitada como tantas outras. No outro dia bem cedo, viajei e só fui saber da tragédia, por telefone, dois dias depois. Confesso que me abalei, como poucas vezes me aconteceu depois. Fiquei recordando nossa última farra, a ver se entrevia algum sinal, alguma pista, uma espécie de remorso por não ter feito algo. Mas nada... A não ser... Bom, naquela noite, lá pelas tantas, ele me disse que queria ouvir uma música, mas não se lembrava do nome, nem da melodia. Estava martelando sua cabeça... Daí ele pegou um guardanapo e rabiscou dois versos:

“... Fracasso, por compreender que devo te esquecer, fracasso só por saber que não te esquecerei...”

Quando me mostrou e eu disse que conhecia, ele chamou Nely e ordenou, como um fã agradecido:

- Nely, traga a mais gelada que tiver lá dentro e duas doses de cana, porque essa merece uma!

Resultado: tive de repetir umas tantas vezes, até que ele se satisfez:

- Bom Baiano, você vale ouro!

Enquanto prossegui com outras músicas, notei que ele ficou com o olhar no vazio por alguns minutos. Parece que aquela música o fizera voltar no tempo. E foi só. Daí em diante, tudo transcorreu como dantes, até que nos despedimos, mais ou menos meia noite. Jamais imaginei que aquele abraço apertado seria o último. Já no carro, me perguntou quando eu voltaria e, ao ouvir a resposta, acelerou sua picape e sumiu para sempre, na noite amazônica.

Segundo Zoraide, ele entrou no barraco, mexeu numa maleta de documentos que ficava trancada no guarda-roupas e se demorou mais do que o normal na cozinha. Talvez tivesse chegado com fome, ela pensou, sem nem desconfiar que, na verdade, ele estava tentando rabiscar toscas explicações inexplicáveis. Quando a porta rangeu, à sua saída, ela nem ligou, pois já estava acostumada com seus fins de noite na casa da Ana Branca, como era conhecido o cabaré do garimpo. Só estranhou quando ele voltou e ficou em pé, na porta do quarto, por cerca de um minuto, olhando para ela, que fingia dormir. Sob o lençol, no lusco-fusco da madrugada, ela o viu suspirar e sair rapidamente, com passos decididos.

A casa do Amaro ficava lá no fim do garimpo, um barraco antigo, dos poucos com paredes de alvenaria no local. Ao fundo, seus donos primitivos cultivaram um extenso pomar de mangueiras, jaqueiras, laranjas, pinha e até uns coqueiros que não se desenvolveram, mas ali estavam resistindo ao tempo. Naquela noite, em torno de duas horas da manhã, as corujas que tinham ninho no coqueiro viram um vulto abrir o colchete da cerca do quintal. Espantadas, elas fizeram estardalhaço e deram vôos rasantes, no afã de afastar o intruso da ninhada de corujinhas recém-nascidas. Mas, nem mesmo seu pio agourento fez o vulto retroceder.

Do alto das estacas da cerca, elas viram o vulto andar meio cambaleante até o tronco da mangueira mais baixa. Viram, curiosas, o vulto sentar-se no chão e ficar manuseando uma corda que trouxera pendurada nos ombros. A operação demorou bastante. O vulto, evidentemente, não tinha pressa. De vez em quando ele levava à boca uma garrafa. Depois retomava o ofício de preparar a corda, quase em câmara lenta.

Depois, as corujas viram o vulto se levantar, dirigir-se até a cerca, contemplar o céu estrelado por um minuto e dar um suspiro. E acharam graça, quando aquele corpanzil pesado subiu na mangueira, pelos galhos baixos e se acomodou à meia altura, para desassossego das rolinhas que ali tinham seus ninhos. No meio da folhagem espessa, elas nem o viram prender uma ponta da corda no galho mais robusto e passar a outra ponta, em forma de laçada, em torno do pescoço. Mas ouviram, perfeitamente, o ruído de uma garrafa vazia lançada ao chão. E, logo em seguida, um barulho terrível... Algo enorme se desprendeu dos galhos e caiu da folhagem, numa confusão medonha de galhos se partindo e muitos sacolejos, terminando num baque que abalou toda a copa da mangueira e fez as rolinhas apavoradas deixarem seus ninhos. Tudo não durou mais que um minuto. Aos poucos o silêncio retornou, a noite seguiu seu curso e todos voltaram a dormir em paz.

Quando acordou no sábado e viu que o Paraná não voltara, Zoraide me disse que seu primeiro sentimento fora de raiva e ciúmes. Pensara mesmo que estava na hora de voltar pra sua cidade, pois o Paraná, que lhe prometera vida de rainha, só lhe dera abandono, trabalho e decepções. E foi assim, muito triste, que viu aqueles papéis amassados pelo chão da cozinha. E, sobre a mesa tosca, duas folhas abertas, com uma caneta sobre elas. Numa se lia, com letra trêmula: “Ninguém tem culpa”. Na outra: “Estou no quintal da casa do Amaro”. Embora, à primeira vista, não entendesse ao certo o que aquilo significava, um arrepio lhe percorreu o corpo. Algo, lá em seu íntimo lhe prenunciara a tragédia. Pegou os bilhetes no chão e ali se via como fora difícil ao seu homem escrever aquelas poucas palavras. Quanto desespero! Um temor imenso lhe invadiu, como se fora uma saudade antiga despertada. Sem nem preparar o café saiu como uma louca pra casa do Amaro. À medida que caminhava, uma certeza começou a lhe tomar e ela acelerava o passo. Agora já corria e não tinha mais dúvidas. Quando finalmente, abriu o colchete da cerca do quintal do Amaro, já estava preparada para a cena que a esperava. Foi com a mais doída calma que ela sozinha cortou a corda e estendeu seu desfigurado amor no chão, soluçando a pergunta que nunca encontrou resposta:

- Por que? Por que? Porque, meu nego?

No alto do coqueiro, duas corujas tristes amortalhavam a manhã de sábado com seus pios chorosos.

O Amaro já tinha sumido desde a noite anterior. O envelope que o Paraná recebera de manhã e que talvez pudesse esclarecer alguma coisa, esse envelope nunca foi achado. A única coisa que se soube é que, quando os dois saíram de casa, antes do almoço, foram ao posto telefônico do garimpo e ali o Paraná deu um telefonema de uns 20 minutos ao posto telefônico de outra cidade, onde alguém o esperava. Segundo a telefonista, ele saiu choroso da cabine. Mas isso não ajudou muito, porque a pessoa não foi localizada, de modo que meu amigo Paraná enforcou junto com ele seu segredo... Certamente um segredo terrível... E deixou-nos assim perplexos e saudosos.

Dois anos após esses fatos, retornei ao garimpo do Saci, em novas atividades. Nely tinha vendido o bar e se fora pra capital. Zoraide se mudara, logo após a morte do companheiro, com o que havia de ouro apurado sob o colchão e os trabalhadores assumiram a cava da Irenã e depois a venderam. Agora estava paralisada. Apenas o quintal sinistro da ex-casa do Amaro ainda permanecia intacto. Amaro?! Ninguém soube dar informações. Com grande dificuldade localizei o túmulo do meu amigo num arremedo de cemitério e fiquei sabendo que nenhum parente apareceu ou fez contato para reclamar o corpo. Dois anos somente e o Paraná já era apenas uma lembrança.

Pois é... Nessa minha vida de geólogo e seresteiro, de vez em quando alguém me pede pra cantar “Fracasso”. Então, essa tragédia me vem à lembrança e eu às vezes brinco: - Por acaso, você não está pensando em se suicidar, está?

Certo mesmo está o mestre Paulinho da Viola, que sabe das coisas:

“... E a vida continua... Esse é um dito que todo mundo proclama,

O consolo dos aflitos e a desilusão de quem ama...”

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* Nomes fictícios

terça-feira, abril 07, 2009

Conto mal acabado

Não!

Não me venhas com essa conversa mole,

De clichês e frases feitas de bordões!

Não quero que me consoles.

Não!

Não me venha com teu abraço frio!

Esse abraço que não aperta... Mas aparta.

Que não creio em afetos que não crio.

Não!

Não me olhes com esse olhar que não me vê!

Libero-te do gesto constrangido...

Não estamos em programa de TV.

Não!

Poupemo-nos dos risos maquinais, por hábito.

Pra bem longe com teus dentes de alcatrão,

Que tua boca exala cinismo e mau hálito!

Vai!

E quando passares por aquela porta,

Esquece que existi, despe o passado!

E vive em paz a tua vida torta.

Vai!

Apaga a luz, deixa o portão fechado,

Já te risquei do livro, és letra morta,

Um conto que escrevi, mal acabado.

Bsb, mar/2009

domingo, março 22, 2009

Milagre da pororoca

É senso da tradição popular que milagre é obra apenas de santo. Sem pretender criar polêmica em torno dessa assertiva secular - há quem torça o nariz para essas coisas de milagres – quero apenas dar meu modesto testemunho de que, no causo de que aqui se trata, a tradição revela a mais pura e sacrossanta verdade.
Prepare-se, amigo ou amiga, para tomar conhecimento de curioso e secretíssimo milagre, operado por um Santo... Mas daqui mesmo, dessa terra velha de guerra. Dado e passado no ano de 1980, lá pelas bandas do rio Oiapoque, nos confins da Mãe Gentil, numa tarde morna de verão, sob as vistas incrédulas de duas testemunhas que juraram levar o segredo consigo para o túmulo.
O fato é que o fato, em seus mínimos e fiéis detalhes, a mim chegou e eu os guardei, por mais de duas décadas, sob força de inquebrantável compromisso moral. Mas é chegada a hora de levantar o véu do tempo e deixar vir ao palco a Verdade... Inteira... Nua... E espantosa.
Que a minha fonte descanse em paz, à sombra do salgueiro eterno, em algum bosque tranqüilo do sétimo céu, onde agora reside! E que me perdoe a incontinência escrita! Mas pesou-me demasiado ser o último portador desse mistério. Que unicamente a força da Verdade guie minhas mãos trêmulas! E que me sequem as veias e enrijeçam os dedos, se uma única vírgula do aqui registro, expressar a mais mínima mentira! Por testemunhas insuspeitas, invoco as sumaúmas silentes, os inquietos pirarucus e as hordas de carapanãs, senhoras insaciáveis das vaporosas tardes amazônicas.
Desde o nascimento, carregou o estigma de ser Santo*. Santo de nome. Na escola, nas brincadeiras de rua, no ginásio, na faculdade... O trocadilho infame com as referências da igreja católica o haveria de perseguir pela vida a fora. Apesar disso, forçoso é dizer que o Santo nunca foi um santo. Entendam-me! Não que ele tenha sido um demônio. Longe disso! Mas, também, um pecadinho aqui, outro ali, coisinha assim, de mineirinho come-quieto, isso ele sempre espalhou, por esse Brasil de meu Deus, onde exerceu o mister de geólogo desbravador de nossos mais recônditos segredos minerais.
Até que um dia aportou no Oiapoque, em campanha de amostragem geoquímica. Antes de empreender viagem, nosso protagonista, espírito pesquisador nato, buscou se inteirar sobre a região. E foi aí que tomou ciência do fenômeno da pororoca, algo que remontava, vagamente, às longínquas aulas de geografia primária. Afora a lírica lembrança da professora Dalila (que pernas!), o fenômeno não lhe despertou mais que displicente curiosidade.
Mas, além de Santo, nosso personagem, por precoce fatalidade, sofria de esquisita tremedeira nas mãos, incômodo que se acentuava dramaticamente, ante situações de estresse emocional. Tipo assim ser chamado à sala do chefe. Ou enfrentar turbulência, em viagens aéreas, seu maior suplício. Nessas circunstâncias, o mal se agravava e ele, constrangido, fazia coisas precipitadas, no afã de fugir ao vexame da tremedeira pública.
Sem mais delongas, entretanto, voltemos ao causo! Mas não julque, amigo ou amiga, que me alonguei desnecessariamente. Todo esse intróito é absolutamente importante para a cabal compreensão dos fatos que se passaram naquele bucólico fim de tarde. A estatura psicológica do nosso Santo, digamos assim, é que vai determinar o desfecho inesperado desse causo, sem nenhuma sombra de dúvida, um dos mais autênticos milagres já ocorridos nessa Terra voraz, desde que por aqui passou o Filho do Homem.
E note, amigo ou amiga, que o Filho, além do Homem, contava com doze fervorosos apóstolos aqui embaixo, para qualquer eventualidade. Quanto ao nosso Santo – coitado! - contava apenas com o nervosismo de um técnico descrente, cheio de pecados, e a quase-indiferença de um barqueiro bocó que, no afã de manter o barco a salvo, nem se apercebeu direito do que se passou bem diante de seu nariz.
Apois bem! Corria a tarde modorrenta e úmida. Perdido na vastidão do Oiapoque, singrava sereno, o barquinho de alumínio, no rumo da margem esquerda, para a coleta da última amostra do dia. Tudo era tepidez tropical e calma e mormaço, sob o enlevo sonolento do valente motor de popa.
De repente, assim... Muito sorrateiramente, um vago barulho começa a se ouvir. Distante. Grave. A princípio, ninguém liga. O barqueiro parece alheio ao mundo, em sua luta com as vagas. Mas, eis que o zumbido torna-se ronco... Algo assim, como o urro de uma fera. A superfície tranqüila entra em crispações rebeldes, marolas persistentes, pequenas ondas... Como que despertando da tediosa modorra, o barqueiro nota cardumes compactos a subir o rio... Estouro de boiada subaquática. Bandos barulhentos de aves em alvoroço pareciam exércitos em retirada: desordenados, excitados. O ar adensa-se. A tensão se instala.
Ninguém diz palavra. Os olhos buscam respostas, mas são os ouvidos que vão registrando, segundo a segundo, o aumento do barulho, como o troar terrível de tambores de guerra, assombrando a floresta. Trovão ricocheteando nas serranias. Sei lá!
Dentro do Santo, algo lhe dizia do perigo iminente, mas quando as ondas começaram a empinar o barco, tentando empurrá-lo de volta, nesse momento seus instintos aguçados liberaram toda a tremedeira represada, como se fosse o acionamento de escudo automático. Agora, já se ouviam barulho de árvores caindo. Num sonho surreal, o Santo reviu, enquanto avaliava o ambiente, a professora Dalila de pernas cruzadas, atazanando os alunos, nas aulas de geografia... O que mesmo ela disse sobre a pororoca? As lembranças eram muito imprecisas, menos as pernas roliças da professora.
Então se ouviu um estouro medonho, rio abaixo. Funcionou como um despertador. Pois, num piscar de olhos, todos gritaram, ao mesmo tempo:
- A pororoca!!!!
Bastou. A tremedeira do Santo passou a abalo sísmico. Dominado por um nervosismo indescritível, ele já se via tragado pela maré lamacenta que daqui a pouco engoliria tudo o que encontrasse pela frente.
Ninguém sabia o que fazer direito. O Santo entrou em cataclismo. O técnico descrente rezava baixinho, jurando converter-se, se escapasse daquela. O barqueiro tentava desesperadamente atingir a margem, que estava a não mais de 20 metros, mas a força das ondas era bem maior que a potência do pequeno motor. Com rara perícia, ditada pelo instinto de sobrevivência, ele postou o barco em posição enviesada, usando a energia das ondas a seu favor, o que lhe permitiu redirecionar o veículo no rumo da margem, embora de forma bem esquisita e para longe do alvo geoquímico. A margem estava ali diante dos olhos, mas a pororoca já lambia o barco. Era questão de segundos. Em manobra arriscadíssima, o barqueiro conseguiu “surfar” numa onda, esperando ser lançado contra a margem. Agora, era tudo ou nada, pois a onda principal já apontara na curva, num cenário de filme de terror. O barco já perdera a estabilidade e o naufrágio viria em seguida. E a terra firme, agora, estava a menos de dez metros.
Pois bem, meu amigo e minha amiga, foi aí, exatamente nesse momento, que o milagre se fez. Desafiando todas as normas de segurança e pegando todos de surpresa, o Santo levantou-se, postou-se na borda do barco, inspirou todo o ar que havia naquele momento nos céus do Oiapoque e... Saiu em disparada. Isso mesmo! O Santo, talvez impulsionado pelo vai-e-vem descontrolado das pernas, desembestou-se por SOBRE a superfície encrespada das águas, sem afundar um só milímetro, inclusive desviando-se do emaranhado de cipós, com inusitada maestria. Pousou em terra firme bem antes dos companheiros e ainda os ajudou no desembarque apressado, a tempo exato de se livrarem da onda assassina. Não sei se o leitor ou leitora se deu conta do que se passou: nosso Santo andou por SOBRE as águas, como São Pedro, como Jesus, como os santos da tradição. "O homem parecia de isopor!", foi a observação final feita por minha fonte, ao me contar esse causo.
Foi somente quando a adrenalina baixou e o vermelho dos lábios se refez, que os olhos das duas incrédulas testemunhas cravaram no Santo a pergunta que as bocas se recusaram a fazer:
- Como você conseguiu isso?
Mas ninguém ousou perturbar o silêncio pós-pororoca. Na verdade, havia mesmo certo medo, como se as palavras pudessem subtrair o encanto daquele milagre. A figura do colega, agora , emanava uma auréola respeitosa, que infundia silenciosa reverência, apenas isso.
E então, mais uma vez surpreendendo, foi ele mesmo que quebrou o silêncio, ao convocar os colegas, como se nada tivesse acontecido:
- Vamos lá minha gente, que ainda falta uma amostra!
E mais não disse e mais nada se lhe perguntou. E os anos voaram tão rápido como aquela pororoca. E as duas únicas testemunhas oculares deixaram de contar o ocorrido, por não suportarem as chacotas e a falta de crença das pessoas. E o milagre foi se desvanecendo sob o véu do tempo.
De minha parte, quando dele tomei conhecimento, não duvidei. Pelo contrário. Dele tenho a mais cristalina certeza e aposto que as coisas aconteceram exatamente assim. E inda digo mais, esses milagres não eram raros na vida do Santo.
Certa vez, a pequena aeronave em que viajava entrou numa turbulência amazônica, daquelas em que a gente acha que chegou o fim. As rajadas de vento faziam o avião subir e descer, como se fosse de papel. Então, um amigo viu com aqueles olhos que a terra há de comer. Ele jura que viu o Santo flutuar, 20 centímetros acima da poltrona, em transe, paradinho da silva, enquanto todos pareciam surfistas sem prancha. E meu amigo me disse que ficou tão espantado, que nem ousou lhe fazer pergunta alguma. Até porque, quando se restaurou a tranquilidade, ele só se preocupou mesmo foi em tomar uma dose de uísque.
Pois é...
Hoje, aqui no bem-bom de um quarto de hotel, lembrei-me dessas coisas passadas há mais de 20 anos! Inda bem que as registrei a tempo de salvá-las do esquecimento total. E constato, então que outro verdadeiro milagre se fez, pois meus neurônios não me traíram, permitindo que eu não perdesse o fio dos acontecimentos, reproduzindo-os, tintim por tintim. Como dizia o velho Bobôco, dá-se o causo e depois acontece.

quinta-feira, janeiro 29, 2009

Ao anjo da tribo

Disseste que não sabes mais quem sou...

Nem eu, minha querida, tudo bem.

Compreendo esse conflito que te estressa;

Mas, revendo o filme antigo que passou,

Não sou nada meu amor... Sou só alguém

Que hoje abre o coração e te confessa:

 

Sou o que sou:

 - o que vi,

 - o que fiz,

 - o que sei.

 

Sou o que vivi:

 - o que li,

 - o que escrevi,

 - o que calei.

 

Sou a dor das despedidas:

 - as saudades,

 - as ausências,

 - as mãos partidas.

 

Sou os risos das chegadas:

 - os abraços,

 - os olhares,

 - as mãos crispadas.

 

Sou as feridas dos meus amores:

 - os cortes,

 - minhas culpas,

 - suas dores.

 

Sou os prantos que ajudei secar:

 - o ombro amigo,

 - o silêncio,

 - um teto, um lar.

 

Sou as estradas que andei, inglórias:

 - as pessoas,

 - as paisagens,

 - as histórias.

 

Sou as cantigas que cantei na rua:

 - os poemas,

 - as serestas,

 - as noites frias, sem lua.

 

Sou os desenganos dos atalhos:

 - vãs paixões,

 - amores breves,

 - inúteis retalhos.

 

Sou uma história, enfim, movimentada:

 - ora reta,

 - ora em círculo,

 - nunca parada.

 

E, assim, cheguei ao que sou:

 - nem tudo foi bom,

 - nem tudo foi mau,

 - mas tudo me ensinou.

 

Mas, é preciso que agora saibam, todos,

Que eu sempre tive o amor de um anjo,

E esse anjo decretou-me a sensatez,

E eu sou, na verdade, o que esse amor me fez.

Qual produto de celeste arranjo,

De flores e adornos desse amor-criança,

E sob a força motriz do seu perdão,

Hoje já não sou... Agora somos:

 - olhos na mesma estrada,

 - bocas na mesma oração,

 - mãos na mesma esperança.

Jan/2009