domingo, setembro 21, 2008

Barrigadas adoráveis II

Segunda e última parte

Continuação do relato de aventuras e desventuras na selva amazônica, durante projeto de mapeamento geológico e prospecção geoquímica (Cérbero I), na divisa do Pará com o Amapá, no ano de 1982. Os nomes verdadeiros dos personagens foram omitidos, mas os fatos aqui narrados são reais e recriados com a maior fidelidade que o tempo e os neurônios permitiram.


Chefe não passa no teste

Não foi o que aconteceu com o geólogo da área contígua à minha, o Lula, nome fictício. Por não ter jogo de cintura, acabou angariando a antipatia da equipe. Um dia, ao voltar para o acampamento, começou a se sentir mal, com falta de ar. Ele era meio gordinho. Mesmo percebendo o cansaço do geólogo, os peões não se abalaram e continuaram em marcha avançada, deixando o chefe para trás. Este, não suportando mais, deitou-se no chão e ali ficou semi-acordado. Ao chegarem ao acampamento e relatarem o ocorrido, o cozinheiro apiedou-se e entrou na picada para resgatar o chefe, no que foi seguido pelo caçador (peão que, na equipe, tinha a incumbência de caçar).

Quando cheguei ao meu acampamento já tinha um aviso pelo rádio, de que o Lula não estava bem. Veio se arrastando na picada, amparado nos dois assistentes. Convoquei meu piloto e subimos o Ipitinga até o próximo acampamento, já noite fechada. O colega estava de fato muito debilitado, sem energia, suando em bicas com falta de ar. Avisei ao chefe do projeto e mandamos o piloto do colega adoentado descer à noite mesmo, levando o Lula para a base do Inferno. Dia seguinte, desceu para o Carecurú, de onde foi resgatado pelo “anjo” Barriga. Devolvi todos os peões, menos os dois que demonstraram solidariedade humana. O trabalho restante dessa área foi rateado entre os demais geólogos de modo que nem precisou enviar substituto. Depois, ficamos sabendo que o Lula tivera um princípio de infarto.

Malária não dá trégua

Mas a malária nos rondava, assim como a pintada e o Mandaguari, figura lendária, meio homem, meio macaco, que habita as matas amazônicas, aterrorizando os incautos. Ninguém jamais o viu, mas também ninguém tem a menor dúvida de sua existência. Bastava alguém reclamar de frio, ao final da tarde, não tinha erro: malária. Era arrumar a trouxa e descer no próximo barco. Mais de cem peões circularam pelas sete equipes, mais as bases, em rodízio, por causa da malária. Curiosamente, nenhum geólogo caiu de malária no campo, embora, ao retornar para Belém, dois deles estivessem contaminados.

Os trabalhos estavam previstos para durar um mês e meio, mas duraram exatos 69 intermináveis dias. A partir do trigésimo dia, mais ou menos, apareceu-me um caroço na coxa direita, tipo uma espinha, mas que doía muito à noite e expelia um líquido claro. Padeci com isso, em segredo, sem dizer aos peões, com medo de novo trote. Mas estava ficando insuportável e a espinha crescendo mais e mais, parecendo já um pequeno furúnculo. Porém, esse problema só será resolvido no último dia da campanha. Garanto que não será uma solução ortodoxa.

Últimas barrigadas

Finalmente, os trabalhos chegaram ao fim. Desmontados os acampamentos, todos descemos para o Inferno e de lá, em comboio, para o Carecurú. Parecia um sonho, voltar à civilização, depois de mais de dois meses. Ficamos três dias na pista, despachando o material e os peões através das “barrigadas” diárias para Macapá e aguardando o Comandante Flávio, que viria com uma aeronave um pouco maior, de Santarém, para pegar os geólogos.

Era impressionante ver o Barriga “calibrar” o peso da aeronave. Primeiro, ele testava cada saco de amostra, com suas próprias mãos, para estimar o peso. Ia separando os sacos de lado e depois determinava:

- Dá pra ir esses sacos e mais três peões.

Algumas vezes ele abortava a decolagem e pedia, de dentro do monomotor:

- Manda mais um peão!

Ou então:

- Não dá! Temos de descer um saco ou um peão!

Esse era o Barriga. Os peões confiavam cegamente nele e devo dizer que suas “barrigadas” foram todas tranqüilas e bem sucedidas, sem nenhuma ocorrência digna de relato.

Foi aí que um peão, vendo minha “espinha” na perna, diagnosticou, com aquela segurança de quem sabe das coisas: - O senhor tem um ura, doutor.

- Ura??

Um dos geólogos da região me explicou que ura é o mesmo que berne. É um bichinho minúsculo que se instala no corpo e se fixa com uma espécie de cílios. É muito comum em gado. O olhinho da espinha é por onde ele respira. Ofereceram-me duas hipóteses para me livrar do ura: tapar a espinha com fumo (isso forçaria o ura a sair para respirar), ou espremê-lo, manualmente. Essa última hipótese, me advertiram, seria muito dolorida, dado o tamanho do bicho e de suas pernas (cílios). Mas meu “médico” me tranqüilizou: - Se o senhor agüentar, eu espremo. Topei.

Todo o acampamento se reuniu para acompanhar a operação. Por mais que tivesse sido advertido, posso garantir que doeu muito mais do que eu esperava. E o bicho resistiu, aferrando-se a seus inúmeros cílios, que são, na verdade, minúsculas pernas. Finalmente prevaleceram a força e a perícia do meu cirurgião. Do pequeno olho da espinha, emergiu algo semelhante a um bicho de goiaba, só que cheio de pernas. O alívio foi imediato. Comemoramos com uma rodada de excelente cachaça que o Barriga tinha trazido de Macapá.

No último dia, tudo resolvido, tudo despachado, chegou o Comandante Flávio para nos resgatar. E chegou trazendo sinais da civilização que nos aguardava: um isopor cheio de cerveja em lata e sanduíches. Sabe o que significa esse reencontro, depois de 70 dias no meio da mata? Uma sensação de recompensa, de dever cumprido, de felicidade.

A cortina do tempo

Hoje, relembro esses fatos com funda nostalgia, mas com orgulho. O sofrimento que a mata e distância da família impõem se apequenam quando penso que fiz um trabalho importante para o país, que poucos teriam condições de fazer, que me engrandeceu como ser humano e como profissional e que me abriu o coração da Amazônia. Ali deixei mais do que companheiros de trabalho. Deixei amigos de verdade. Nunca mais os vi, mas tenho certeza de que se os revisse, em qualquer lugar, haveríamos de trocar aquele abraço gostoso e compartilhar um monte de histórias que não deu pra contar aqui. Como se o tempo não tivesse passado. Jorildo, Cara Azeda, Bartolo, Dias, Ganã... Brasileiros simples, peões das matas amazônicas, que temem o Mandaguari, como a Deus. Seus ensinamentos ainda estão comigo e as lembranças das nossas aventuras são um patrimônio de cultura e sabedoria, cujo privilégio de ter vivenciado muito me honra e engrandece.

(Fim)

Barrigadas adoráveis I

Primeira parte

Relato de aventuras e desventuras na selva amazônica, durante projeto de mapeamento geológico e prospecção geoquímica (Cérbero I), na divisa do Pará com o Amapá, no ano de 1982. Os nomes verdadeiros dos personagens foram omitidos, mas os fatos aqui narrados são reais e recriados com a maior fidelidade que o tempo e os neurônios permitiram.




O nome de batismo do Barriga? Sinceramente, não sei. Mas isso não tem a menor importância, pois todos que o conheceram sabem que ele será sempre o Barriga. Ponto final. Piloto de teco-teco na Amazônia, década de 80. Sua base era Macapá. Bem humorado e brincalhão, vivia zombando do perigo e onde houvesse qualquer brechinha na mata, ele pousava. Desafio era com ele mesmo. Aliás, ele dizia já ter caído várias vezes. Se é verdade, não posso garantir.

Seu volumoso abdômen dificultava abotoar a camisa e por isso ele andava mesmo era de peito nú, de bermuda, óculos Ray Ban legítimos, sandálias havaianas e um indefectível palito na boca, onde brilhavam vários dentes de ouro, fruto dos anos de trabalho nos garimpos perdidos naquela Amazônia de meu Deus.

Naquele projeto, o Cérbero I (1982), na divisa do Pará com o Amapá, área endêmica de malária, ele cumpriu um papel importantíssimo: fazia um vôo diário, no mínimo, de Macapá até a pista do Carecurú, onde tínhamos uma base. Carecurú era um antigo garimpo da região, do qual só restava a velha pista esburacada, cheia de carcaças de aviões em suas duas cabeceiras. O Barriga e o Comandante Flávio, de Santarém, eram dois dos poucos pilotos que se arriscavam nessa pista. Além de curta, ela tinha um “quebra-mola” bem no meio, que exigia, além de perícia, muita coragem do piloto.

Cada vôo do Barriga, para efeito de controle de custos, era registrado como uma “barrigada”. De Macapá, trazia provisões, correspondências, encomendas e os peões liberados pelo Hospital de Doenças Tropicais. Na volta, levava os peões caídos (que estavam com malária) e as amostras de solo e sedimento de corrente. Dentro da área do projeto, havia barcos que percorriam todas as sub-bases, diariamente, levando os peões curados e recolhendo os caídos (e as amostras), para trazer ao Carecurú. Assim era a rotina dos projetos na Amazônia naquela época. Não sei se hoje é muito diferente.

Cérbero, o guardião do inferno

Toda a logística do projeto fora montada a partir de Belém, usando fotografias aéreas da USAF, escala 1:70.000. Sete equipes se espalhariam ao longo do rio Ipitinga, afluente do rio Jarí. O acampamento-base ficaria na boca do Igarapé do Inferno e uma sub-base fixa ficaria na pista do Carecurú, nosso elo com o mundo externo. Cérbero, segundo a mitologia, era o nome dado ao cão que guardava a porta do inferno. Daí o nome do projeto. Bastante encorajador, não acham?

Do Carecurú ao Inferno era um dia de barco, com vários obstáculos terríveis de corredeiras (pedras no leito do rio). Conseguimos contratar um índio, nas proximidades, que era o único piloto que se arriscava com os barcos pelas corredeiras. Ele tinha de passar todos os barcos, pois conhecia os canais e as pedras, como se fosse a cozinha de sua choça. Mesmo, assim, no primeiro dia, um dos barcos virou e perdemos todos os mantimentos. Por segurança, os equipamentos eram transportados a pé pelas margens.

No Inferno, ficamos dois dias montando o acampamento, refinando a programação, separando o material e os peões. Éramos sete geólogos, mais o chefe do projeto. Quando o acampamento ficou pronto e instalamos a estação-base de rádio, me lembro que o chefe do projeto mandou fincar um mastro bem alto, no centro da praça e promoveu uma inusitada solenidade de hasteamento da bandeira, ao som de improvisado e desafinado Hino Nacional. Com direito a perfilagem geral e mãos sobre o peito. Mas que foi emocionante ver nossa bandeira tremulando naqueles cafundós, isso foi!

No dia da partida das equipes, o primeiro acidente. Ao tentar fazer pegar um dos motores de popa, um peão teve o dedo polegar decepado pela hélice, bem no meio do rio Ipitinga. Aí eu pude constatar a utilidade dos rádios que levávamos. Ali mesmo, no leito do rio, estendemos a antena (dois barcos, cada um puxando para um lado) e ligamos o rádio Telefunken portátil. Em minutos, o Barriga foi acionado e dali mesmo um dos barcos desceu para o Carecurú, com a primeira baixa das dezenas que teríamos nos próximos 70 dias que durou aquela aventura.

Chefe passa no teste

Já haviam me prevenido que não é fácil trabalhar com os peões na Amazônia. Eles costumam testar sua competência e liderança e se você não despertar confiança, fica acuado e sujeito a chantagens de todos os tipos. O meu teste se deu logo no segundo dia, quando a equipe da picada regressou dizendo que havia encontrado aviso de índios, e que era perigoso prosseguir dali para frente. Para dar maior dramaticidade, disseram que os índios tinham tocado fogo na picada. Na verdade, notei que um dos peões parecia incomodado, ficando sempre calado e não me encarando.

Bom, confesso que me deu um friozinho na barriga, mas lá em Belém, tínhamos feito contato com a FUNAI, mostrando a área de trabalho e nos foi declarado, com documentos, tratar-se de área livre de qualquer presença indígena. Mesmo assim, pelo rádio, fiz contato com o chefe do projeto que me recomendou ir pessoalmente ver os “avisos” antes de qualquer decisão.

Dia seguinte, lá fui, cheio de cautelas, fazer o reconhecimento. Importante frisar que quando determinei a volta ao local, senti certo nervosismo na equipe. Percebi certos cochichos e trocas de olhares suspeitos. Quando chegamos ao local do incêndio, não vi as tais palmeiras cruzadas, os avisos, segundo disseram. Mais ainda, bastou andar um pouco ao redor e encontrei uma caixa de fósforos vazia, ao lado de embalagens de cigarros. Mais algumas perguntas e logo me confessaram que foi um incêndio involuntário e, com medo de punições, inventaram a história toda. Apenas um peão não concordara com a lorota, por isso ficara incomodado, mas não entregara os colegas.

Ali na picada mesmo, disse que não haveria punições, por ser a primeira vez, mas determinei que contornassem a área incendiada e continuassem a picada. Retornando ao acampamento, contatei o chefe do projeto, na base do Inferno e pedi para me mandar três peões de picada. À tardinha, quando a equipe voltou, devolvi os três mentirosos e preservei o que não entregara os colegas, apesar de não fazer parte da trama. Foi meu teste de fogo e serviu para deixar claro que eu não era um bocó da capital.

Mas adquiri o respeito inconteste da equipe, alguns dias depois, quando, ao fim de um dia complicado, ao longo de drenagens, para coleta de amostras geoquímicas, ao invés de voltarmos pelo mesmo caminho por onde tínhamos vindo, propus voltar por outro caminho, sob meu comando na bússola. Garanti para eles que, se seguíssemos exatamente por onde eu indicasse, sairíamos bem perto do acampamento, em muito menos tempo. Vi a dúvida estampada nos rostos e até certa torcida para que as coisas não dessem certo e assim, me desmoralizar. Mas, o resultado é que tudo saiu conforme eu prometera e isso me deu a liderança inconteste da equipe. Todos me cumprimentaram e queriam saber como funcionava a bússola. A partir dali, minha palavra era sagrada e nunca mais tive problemas de comportamento entre os peões. Aliás, ficamos grandes amigos e acabei, com o tempo, tornando-me confidente e conselheiro de todos eles.

(Continua... Veja sequência do relato na próxima postagem)