sexta-feira, dezembro 15, 2006

Baetinha, o craque da camisa 11

Essa é muito boa.
Era final dos anos 70. Desenvolvíamos um projeto na região de Cavalcante, GO. Entre geólogos, geoquímicos, técnicos, motoristas e auxiliares braçais, eram quase trinta profissionais vindos de Goiânia, uma verdadeira invasão estrangeira, naquela cidade perdida no nordeste do estado de Goiás. Para deleite das garotas e aflição dos machões daquela pacata comunidade. Entre os estrangeiros, o Baeta, grande geólogo a quem o Serviço Geológico muito deve, e que era por todos nós, chamado carinhosamente, de Baetinha. É que ele era baixinho e cheinho assim, tipo bujão de gás, sem cintura. O Mário, ex-geólogo da Superintendência de São Paulo, apelidou-o de Ursinho Panda. Uma gracinha o Baeta! Bem humorado, simpático, boa praça, aquele companheiro cuja presença era sempre motivo de alegrias para o grupo.
Hoje, já aposentado, deve estar, com muita justiça, aproveitando a melhor idade nos rincões goianos ou na sua querida Minas, que ele nunca esqueceu. Enfim, um grande e querido amigo. Axé, Baetinha!
Mas tinha um defeito, nosso amigo: nunca jogou bola na vida. Naquela altura, acho que já rondando os quarenta, era mais fácil fazer rapel nas escarpas da Serra do Araí, do que fazer três embaixadas seguidas.
O Élvio, viciado em futebol, combinou um jogo, num final de semana, contra o time do colégio da cidade. Maior frisson! Um carro de som passou o sábado circulando pela rua da metrópole anunciando o acontecimento. Do padre ao delegado, ninguém comentava outro assunto. O jogo da vida do lugar. Um comerciante, sabido, organizou logo o bingo de uma bezerra pra sortear na hora do jogo. As irmãs mandaram fazer uma quermesse ao lado do campo, para arrecadar fundos pras obras da igreja. Das fazendas vizinhas vieram peões e caboclas de todos os matizes. Todos queriam ver os cavalcantenses meterem uma goleada nos "metidinhos" da capital.
Meia hora antes do jogo, umas duzentas pessoas em volta do campo de terra batida, nossos craques se aquecendo, Baetinha, o que nunca tinha jogado bola na vida, vê aquele movimento, um mundo de gatinhas assanhadas, tem um repente e dá uma ordem que ninguém, ousou contestar:
- Eu quero jogar também!
Falou com aquela autoridade inata dos grandes líderes. Um bochicho geral percorreu o time.
- Em que posição? Perguntou o Élvio, o craque maior e técnico moral da equipe.
- Qualquer uma!
O tom incisivo e a firmeza de sua resposta eliminaram qualquer possibilidade de protesto.
O Élvio coça sua vasta cabeleira, vira-se para o Barão, que já estava suado de tanto se aquecer e determina:
-Passe a camisa 11 pro Baetinha.
Camisa 11, pra quem ainda se lembra, antigamente (não tão antigamente assim) era a camisa do ponta esquerda. Ponta esquerda, só para lembrar também, era uma posição ingrata. O cara tinha de receber a bola, passar pelo half-direito, ir para a linha de fundo e fazer o cruzamento. Mas tinha uma condição básica: o cara precisava ser canhoto e gostar de jogar avançado, meio esquecido, só esperando os lançamentos! Não era fácil achar um ponta esquerda efetivo. Geralmente essa posição sobrava para aquele que não se queria em nenhuma outra posição. Assim o Élvio olhou bem para o Baetinha e pensou lá com seus botões.
-“Esse cara nunca jogou. Não tem altura para jogar na defesa, nem fôlego para o meio-campo, muito menos estatura para centro-avante. Vou colocá-lo na ponta esquerda e pronto.” Aí o Barão dançou.
Chamando o pupilo a um canto, instruiu: - Olha aqui Baetinha, você vai jogar enfiado na esquerda, só recebendo os lançamentos e cruzando pra área, certo? Eu e o Wilson vamos subir de surpresa para área. É só receber o cruzamento e sair pro abraço! Se o Ireno subir, você faça o overlaping com ele. Alguma dúvida?”
Baetinha não entendeu porra nenhuma, mas disse que ia jogar com muita garra e determinação e essas coisas. Como não tinha chuteiras, pegou as do Barão emprestadas, de número 41. Seu número era 37, um pequenino problema que ele resolveu atufando o bico da chuteira com um meião que ele pegou de alguém.
Quatro horas em ponto, o prefeito dá o pontapé inicial, não sem antes desejar que vença o melhor e a pelota começa a rolar, para delírio da torcida. Naquela época não havia ainda o Galvão Bueno, por isso ninguém levou nenhuma faixa para o estádio.
Quando o time da capital atacava, Baetinha corria que nem um desesperado pra linha de fundo, com os braços levantados e berrando:
- Lança, porra, lança!
Mas ninguém lançava.
Não sei se por não conseguirem vê-lo atrás dos defensores, ou se por desconfiança mesmo de sua capacidade, o fato é que ninguém lançou uma única bolinha para o pobre do Baeta. Nesses avanços sem bola, levou três quedas feias, tropicando no bico da chuteirona. Seu lado esquerdo já estava todo escalavrado. Já imaginaram alguém correr com um pé-de-pato?
44 minutos, do primeiro tempo, jogo ainda no zero a zero, Baetinha mortinho de cansaço de tanto correr pra linha de fundo e sem ainda ter conseguido pegar na bola uma vez sequer, surge uma falta na entrada da grande área, pelo flanco esquerdo, a favor dos "metidinhos" da capital. Baetinha, que já tinha decidido não retornar no segundo tempo, porque já estava muito machucado, vislumbrou a oportunidade de sair carregado nos braços, vai logo ordenando, braços levantados, peito estufado, com aquela autoridade dos craques, que Deus lhe deu:
- Deixa! Deixa! Deixa que eu chuto! Essa é minha! Vai todo mundo pra área!
Quem contestaria tamanha autoridade?
E ainda como que para consolidar o poder, que naquele momento assumia, fez gestos com as mãos para que a defesa fosse toda pra frente, pra dentro da área:
- Pra frente meu time! Pra frente!!
Com muita calma, ajeitou a bola na marca do chute, sobre um montinho de terra que fez com as próprias mãos. O goleiro não quis barreira e mandou todo mundo sair da frente. Nosso craque foi se afastando da bola, passo a passo, como um contendor, num duelo dos antigos filmes de bang-bang, olhar fixo na bola e no goleiro, até atingir a linha do meio de campo. Suspense na torcida, o medo era geral. O goleiro, diante daquela cena inusitada, o cobrador a mais de 10 metros da bola, imaginou que aquela era a "arma secreta" do adversário e mudou de opinião.
- Seu juiz! Barreira por favor!
A barreira se posiciona, Baetinha encara. Todo o time da capital na área, os braços levantados, o juiz apita, empurra-empurra geral. Baetinha dá mais três passos pra trás, todos da barreira se protegem, em baixo e em cima, com medo do petardo. Suspense. Baetinha, enfim parte pra bola, como um touro raivoso pra cima do toureiro. A barreira trêmula, se virando e encolhendo. Um silêncio de “matar o Hitchcock” e Baetinha tomando impulso. Uns dizem que ele babava, de tanta gana. A uns cinco metros da bola, fechou o olho e se atirou como uma flecha humana. A sorte estava lançada.
Na hora exata e precisa do chute, naquela fração de segundo fatal em que o tudo e o nada se resumem numa bola no chão, o mundo como que entrou em câmara lenta. Todos suspenderam a respiração para acompanhar, cena a cena, quadro a quadro, aquele chute histórico. Foi então que todos viram Baetinha firmar o pé direito no chão, com as traves enterradas no terreno duro e a perna esquerda se retesar, como o dedo do atirador no instante fatal do tiro. Naquele exato átimo de segundo em que a perna ia se lançar, como um míssil, em direção à redondinha que ali jazia humilde e quieta, Baetinha se deu conta de que não era canhoto e fez um movimento desastrado, tentando trocar de pé. Tarde demais. Em câmara lenta, numa cena absolutamente inesquecível, todos viram o bicão da chuteira esquerda do exímio batedor de faltas tropicar no chão, ainda muito longe da bola. Nesse instante, o mundo voltou ao normal e a vida retomou o ritmo frenético de um jogo de futebol. Assim, numa velocidade estonteante, todos viram o Baetinha sair rodopiando como um bólido, feito uma broca tonta, cair a uns três metros de distância e dar quinze voltas sobre o próprio corpo, como se fosse um tapete humano sendo enrolado por um lençol de terra e poeira. E ali ficou, emborcado, imóvel, até que os companheiros acudissem, preocupados. Todos viram que a coisa foi séria. O médico da cidade, prestativo e aliviado, como toda a assistência, correu a examinar nosso herói e diagnosticou em menos de um minuto:
- Fratura grave na junção da tíbia com o perônio, uma costela quebrada, clavícula esquerda deslocada, sangramento no nariz, escoriações generalizadas e indícios de poeira nos pulmões. Levem pro centro de saúde, sem perda de tempo.
Não tinha maca no local, os colegas retiraram Baetinha nos braços, até o Toyota da Empresa. No trajeto para o carro, a boca cheia de terra, foi pensando, filósofo e bem humorado que era:
-Bom, perdi a única oportunidade que tive, durante todo o jogo, de tocar na bola, pelo menos uma vez, mas afinal, meu desejo realizou-se: saí carregado nos braços!
Taí o Élvio que não me deixa mentir!
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(Este é o primeiro de uma série de causos, que pretendo resgatar, do meu tempo de geólogo de campo. Histórias que são deliciosas pelas boas lembranças, pelas situações inusitadas e que retratam a vida sofrida desses modernos badeirantes a desbravarem esse Brasilzão de meu Deus, dos pampas à floresta amazônica, anonimante, esquecidos dos demais brasileiros.)

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