terça-feira, maio 13, 2014

Serena partida


Não sei se as linhas abaixo compõem um poema. Nem sei bem que intenção tive ao verter para o papel o que intuía do definhamento paulatino de meu pai. Mas sei que me custou muito escrevê-las.

Os primeiros versos, quando me ficou claro que ele já iniciara a Transição, são de 2011.

Como moro fora de Paramirim, a cada visita espaçada de meses, desde então, acompanhei o parto ao contrário de Seu Antônio, ou seja, sua gestação para o renascimento no mundo de onde ele veio. Ao contrário do feto, que mês a mês se prepara e se adéqua para a vida na matéria, vi o adulto, pouco a pouco ir se desmaterializando, se desligando das coisas terrenas. O tormento da carne, que nos enchia de compaixão, era compensado pela serenidade do Espírito em regozijo pelo retorno ao Lar, após a missão cumprida. Eis a grande lição que seu silêncio e sua paciência nos legaram. Quem teve olhos de ver, muito aprendeu.
Foi assim, nesse conflito entre a convicção e as minhas fragilidades que fui registrando, como um jornalista parcial, as impressões de seus derradeiros instantes entre nós. Mas, a ambição foi muito maior que a capacidade.
A cada viagem, não mais que umas poucas linhas eram escritas. Quem tiver a paciência de ler a obra vai perceber com nitidez as quebras, as linhas do tempo. Mas não tem problemas. O valor do texto não está propriamente em seu conteúdo, mas nas emoções que acompanharam sua feitura. Não é uma obra de inspiração. É como as sangrias que se faziam antigamente, para aliviar os males do corpo e da alma.
Fechar a última estrofe, em maio de 2014, foi como tragar um copo de fel, mas tinha que fazê-lo para aliviar um fardo que carreguei por três longos anos.


Eis ali Meu Velho, em seu canto,

Mudo.

Olhar que já não foca, distante,

Surdo.

Eis ali Meu Velho inerte,

Estático...

Sol a pino, céu azul e o Velho triste,

Apático.

Ele, que acordava o dia, manhãzinha,

E ninava a noite, tardezinha,

E flertava, às vezes, com o luar,

Nas caatingas do sertão em brasa.


Eis ali Meu Velho em casa:

Preguiçoso, dorminhoco,

Entregue ao sem-fim das horas

No seu túnel de lembranças;

Polindo as asperezas d’alma,

Mofando a decrepitude aguda,

A falência lenta e gradual do corpo:

A canseira do pulmão,

A prisão do intestino,

A incontinência urinária,

A névoa no olhar,

E as pernas traidoras.

As armadilhas da consciência

Fazem do Velho um menino,

Um moleque levado.


Eis ali Meu Velho... Indo

Sereno na partida e amado,

Esperando o fim da espera

E, enquanto isso, ensinando

Derradeiras lições

De silêncio,

De paciência,

De dignidade,

De sabedoria.

Suas últimas palavras foram ditas,

Não as ouviu quem não quis...

Trago-as em mim para sempre,

Como o cheiro da rosa que murchou,

A letra da canção que tocou,

O sorriso que a foto apreendeu...


Eia ali Meu Velho... Pronto.

Há o tempo de chegar e o tempo de partir:

Foste sempre claro quanto a isso.

Portanto, não é por ti essa dor,


É por mim, por minha fraqueza.
Sei que estás de regresso

Aos campos verdes celestes,

Onde não faltam chuvas;

Aguardam-te os velhos vaqueiros

Das jornadas encouradas no sertão,

Dos dias de tua mocidade.

E ouvirás na chegada um coro,

O mesmo aboio antigo...

O mesmo canto triste

Que encantava a caatinga,

Nas tardes mornas nas largas,

Do Riachão ao Cristal,

Do Pajeú à Baixinha,

Da Varginha ao Arraial,

Do Tabual ao Fundão:

Êh Palmeira! Êh Rio Branco!

Êh boiada!

Êh saudade!


Floriste nossa infância em primaveras maravilhosas.

E quando caímos nos charcos imundos

Dos nossos caminhos tortos,

Buscamos força e energia

Nessa fragrância querida,

Nunca... Jamais esquecida.


Mas, a Lei da Travessia

Te trouxe ao Grande Porto.

Já se ouvem os sons das correntes

Do Timoneiro Maior,

Abrindo os portões do céu...

Já não nos pertences mais.


Eis ali Meu Velho rindo...


Feliz, 

Na fotografia antiga

Que ficou na sala.

Que ficou vazia.


Eis que Meu Velho, afinal,

Numa madrugada fria

Fez-se Verbo e se encantou,

E se tornou abstrato... Uma lenda,

Última página de uma história linda

De um livro de Deus que se fechou

Sobre a Terra de homens cegos.

Última nota de um Concerto mágico,

Que não se ouvirá jamais

Sobre a Terra de homens surdos.

Dele, agora, as lembranças,

Os exemplos e as histórias

De uma vida digna,

Vivida em amor,

Forjada em trabalho

E construída em paz.

Paramirim, junho de 2011


Salvador, maio de 2014

4 comentários:

Leila disse...

DEUS! Que capacidade linda, meu irmão, de transformar em poema as verdades sobre a vida deste nosso saudoso herói!
o se texto reflete exatamente a realidade do nosso pai e do seu grande legado á todos nós, mesmo depóis de um corpo já cansado e entregues as dores da carne...
Nado, sua intelectualidade, sua capacidade de enxergar com as lentes do coração e este dom de expressar- se com tanta simplisidade e sutileza a vida como ela é, não pode ficar recolhida a tanta humildade e modestia.
Muitos precisam ter a oportunidade de conhecer esta sua senssibilidade tão rara e divina.
Comece já, a prepara-se para divulgar os seus escritos!!!
Como filha estou pra lá de emocionada... Como leitora, me sinto alimentada pela farta expressão de intelectualidade e poesia...

Quanto orgulho poder chamá-lo de irmão!!

Fernanda Leão disse...

Fiquei emocionada!!!

Mauricio Bressan Junioir disse...

Meu caro Reginaldo, fico grato por poder ler as coisas que você escreve. Fico maravilhado com a capacidade de materializar (no papel) sentimentos e emoções. "Serena partida" é algo fantástico, saído da mente, do coração e das mãos de um ser humano, que não conheço pessoalmente, mas que admiro. Admiro o poeta, o contador de "causos", que transmuta pedras em poesias, numa maravilhosa alquimia. Abraço.

Mauricio Bressan Junior

Unknown disse...

Nado, Tõe da Máquina é uma epopéia da caatinga, do sertão. Eu o vi também chegar de gibão de couro. Ali, a duas casas da casa de meu pai, eu o vi com Da. Nice, construir um clã que robustece a nossa história. Emocionante ver o seu poema, panegírico. Justo.Deixe essa veia poética fluir em cornucópia! Um grande abraço!