segunda-feira, setembro 03, 2007

Ninha e as "libera"

No nordeste de Goiás, em sua configuração antiga, entre as cidades de Natividade e Dianópolis, havia um povoado quase fantasma, aglomerado de velhas construções de adobe, sem reboco, caindo aos pedaços, com o sugestivo nome de Almas. Foi o que restara de antigo Quilombo, diziam, erguido ao redor do cemitério, daí o nome. De fato, a população local era 99% de negros, salvo raros sararás de cabelos feito piaçava.
Bem, o amigo ou amiga faça idéia do que era essa região em 1976. Um bando de homens indolentes - jovens e velhos - o dia inteiro a jogar dominó, damas e truco, sob imensas mangueiras no pátio da velha capela em ruínas. A intervalos regulares, circulava a indefectível garrafa de cachaça, a pinga da terra, como eles orgulhosamente a apresentavam. As mulheres, em geral gordas e roliças, levavam a lavar roupas no rio, às margens da comunidade, em grande algazarra e cantorias esquisitas, também sob o embalo discreto da aguardente que mantinham dentro das imensas trouxas. Era comum vê-las, ao final dos trabalhos, banharem-se nuas, sem a menor preocupação com eventuais voyeurs. Enquanto isso, os meninos, seminus, jogavam bola (bexigas de gado) na praça de terra, enquanto as meninas, aos bandos, se divertiam nos calçadões das casas e as moças namoradeiras se punham nas janelas, sonhadoras, à espera do príncipe encantado.
No único comércio do local, o velho Nestor, um negro alto e magro, de idade indefinida e fala mansa, vendia desde fumo de rolo a calça curinga; de cibalena a platinado de fusca; de enxada e enxó a goiabada e sardinha em lata. Enfim, ali o povoado se abastecia do necessário e do supérfluo. Atrás do balcão encardido de madeira, o comerciante passava a maior parte do tempo numa velha rede, quase rente ao chão, abanando, com o caderno de fiados, as moscas que insistiam em pousar em seu rosto suarento.
Pois bem, recebi a incumbência de fazer follow up em uma área, a cerca de 20 km de Almas, sertão a dentro, por caminhos onde, antes, só passara carros de bois e animais de carga e montaria. Contratei alguns braçais no povoado, fiz compras e abri conta em seu Nestor e caímos no mato. Levamos dois dias pra atingir o centro das áreas, tendo de improvisar pontes e abrir estradas, nos trechos mais ínvios. Mas, enfim, nos instalamos numa campina aplainada, ao lado de um córrego de águas límpidas. Seis barracas de lona, cozinha de palha, escritório sob lona e um sanitário sobre fossa séptica. Duas rurais Willys e uma picape F-100. À nossa disposição, cajuís, pequis e mangabas à mancheia. Um pequeno Éden.
E os dias correram, sem maiores contratempos, fora aqueles normais do tipo de atividade que fazíamos. Certo sábado, já cerca de um mês de acampado, precisei ir até Almas levar um peão que pedira demissão, aproveitando para repor a equipe e o estoque de víveres. Dormi no povoado, ao lado da igreja, dentro da picape e no domingo cedinho, com o novo peão e um técnico que tinha ido junto, bati em retirada, após dar um "tapa no beiço" lá em seu Nestor, que ninguém é de ferro. Era meado de setembro e à noite caíra uma chuva forte, chamada pelos locais de "chuva dos cajus". O dia amanhecera fechado, prenunciando início de inverno. Impressionou-me observar que as grotas secas por onde passara na véspera, levantando poeira, agora eram cursos d'água, alguns caudalosos, exigindo grande perícia do condutor, para não ficarmos presos nos leitos arenosos. E o dia foi fechando cada vez mais. Ao meio-dia, tínhamos a impressão de que já eram 18 horas, tal a escuridão. Às 13 horas, as nuvens de chumbo por fim se derreteram e toda a água do universo deu de cair ali, naquele pedaço de sertão de meu Deus. Avançávamos muito lentamente pelos riscos de estrada, que agora eram leitos aquosos, cheios de armadilhas.
Eu já sabia que teria de pernoitar na estrada, mas nunca da maneira como se deu. Mais ou menos 15 horas, chegamos ao barranco de um verdadeiro rio, inexistente no dia anterior. Se eu tivesse tido a sagacidade de bater fotos para ilustrar o antes e do depois, o amigo ou amiga diria que era montagem. De sã consciência, ninguém poderia admitir o surgimento de um rio, de um dia para o outro, com uma simples noite de chuva. Mas o fato estava ali, diante de nós, a exigir decisão: arriscamos atravessar, ou não? Reinaldo, o técnico que estava comigo, entrou no córrego, com uma vara na mão, explorou todo o leito e voltou com uma avaliação:
- Temos de fazer um "Z". Entramos aqui, contra a correnteza, até o meio do leito. Ali, descemos a favor da corrente até onde o Lico (o peão) vai ficar de pé, sinalizando. Naquele ponto, temos de dar uma guinada pra cima e sair, onde o leito é mais pedregoso. Mas dá pra atravessar tranquilo, bobo, disse ele, com seu sotaque mineiro.
O detalhe é que o Reinaldo tinha 1,75 m de altura e a água, no centro do canal, chegava acima de sua cintura. Negligenciei essa observação e isso me foi fatal.
A decisão cabia a mim e eu, normalmente muito ponderado e cauteloso, abdiquei de minha natureza e segui o impulso do técnico açodado. É evidente que a prudência recomendava pernoitar ali, já que, mesmo atravessando com sucesso, iríamos ter de dormir na estrada, de qualquer forma, só um pouco mais adiante.
- Vamos lá! Disse eu, você dirige então...
Reinaldo topou, entusiasmado. Eu fiquei na margem, torcendo pra tudo dar certo e o Lico, coitado, ficou no local onde o Reinaldo indicou, para sinalizar o ponto exato da inflexão para a esquerda.
Quando o carro percorreu meros três metros, contra corrente, vi o erro que cometera, mas aí já nada mais podia ser feito. Muito antes do Reinaldo atingir o meio, conforme planejado, a força da correnteza embicou a picape para jusante, deixando-a sem freios e completamente fora de controle do condutor, descendo quase a flutuar. E o pior é que a água inundou a cabine, o motor apagou e o Reinaldo teve de abandonar o veículo, pelo espaço do vidro da porta, no maior sufoco, já que não conseguia abri-la, em função da pressa e da pressão da água. Por muito pouco, o Lico não ficou sob o veículo, em sua desesperada tentativa de contê-lo com as mãos. E o carro descendo, como se fora uma tora de pau, desgovernado. Cerca de 10 metros adiante, graças a uma árvore caída, num estreitamento do canal, a picape se enganchou e parou, adernada perigosamente.
E agora? Ao relento, já praticamente noite fechada, sob chuva incessante e sem nada para nos proteger. Que merda eu tinha feito!
Com muito cuidado descemos até o carro, pelas margens e resgatamos algumas mochilas, com pacotes de bolacha, enlatados, lanternas e, naturalmente, a pinga da terra, para o frio da noite encharcada. Utilizando cordas, prendemos o carro em árvores, dos dois lados, para prevenir novo arrasto e nos batemos a pé, em busca de lugar para pouso. O mundo virou um breu e a chuva não dava tréguas, vez por outra acompanhada por trovões e relâmpagos. Se não fosse a pinga da terra, não teríamos agüentado andar na escuridão, na chuva e no frio. Um pouco mais de 21 horas, ouvimos latidos de cachorro e aquilo soou como benção de Deus aos nossos ouvidos, pois indicava morador por perto. De fato, mais adiante nossas lanternas apontaram a silhueta de um rancho de palha, dentro de uma mandiocal, 10 metros afastado da estrada. Não havia saída. Era acorrer pra lá e pedir pouso ao morador, pelo menos pra secar os corpos, até o socorro que certamente viria no dia seguinte, quando o pessoal do acampamento desse por nossa demora.
Ao nos aproximar, o vira-lata se mandou, mato a dentro. Antes mesmo de batermos palmas, uma voz gritou, ainda no escuro:
- Quem é oceis? O que oceis quer?
Com muito cuidado, medindo as palavras, nos apresentamos, relatamos o ocorrido e pedimos guarida por uma noite.
Após breve silêncio, um candeeiro se acendeu e uma figura idêntica à dos pretos velhos se nos apresentou, nu da cintura pra cima, um cigarro imenso na boca, nos acolhendo com a maior hospitalidade. Somente ao entrar, avaliamos a extensão da pobreza que nos abrigava. Um vão, de não mais que nove metros quadrados, paredes e teto de palha, no qual havia um catre, quase rente ao chão; uma espingarda enfiada nas palhas, ao alcance da mão, sobre o catre; uma trempe de pedra, certamente o fogão do morador; uns trapos numa espécie de varal de cipó; umas latas de querosene, que deveriam conter os estoques de comida; um pote de barro sobre forquilhas toscas e uns tocos, que serviam de cadeira e mesa, além de terçados, enxadas e outras ferramentas espalhadas no chão batido.
Quase se desculpando, o velho nos informou que aquele rancho era temporário, somente para a colheita da mandioca e por isso, não tinha nenhum conforto. Ofereceu-se para cozinhar umas mandiocas novinhas, tudo o que dispunha naquele momento. No dia seguinte provaríamos de seu feijãozinho. Claro que recusamos. Tudo que queríamos era nos secar e descansar, mesmo que sentados no chão.
Ficamos todos de cuecas, tremendo de frio e estendemos as roupas no cipó-varal, enquanto o bondoso anfitrião sacou de sob seu catre duas redes imundas e mal-cheirosas, que lhe serviam de colchão e nos ofertou. Apenas um dormiria no chão. Sobrou pro Lico, sem nenhuma disputa. Mas tivemos de tomar várias doses pra enfrentar as redes e o frio. E quando já nos ajeitávamos, para o merecido repouso, o velho nos alertou:
- Quando apagar a luz, oceis não liga pro baruinho nas paias, não, viu? É as libera... Faiz um baruinho esquisito nas paias quando fica escuro.
Libera??? Que diabo seria? Imaginei ser uma corruptela de libélula e, sem maiores temores, me preparei para o sono dos justos. Mas, antes de assoprar o pavio do candeeiro, uma última perguntinha do anfitrião:
- Oceis viu a Ninha?
-Ninha??? Perguntamos a uma só voz.
-Óia! Bota a lanterna doceis na cumieira que oceis vai ver ela, mas não carece ter medo, não, sô. É mansinha que faiz dó! É minha companheira, hahahaha!
Deu uma risada que era, ao mesmo tempo, uma satisfação e um antegozo da nossa reação.
Quando nossas lanternas focaram aquela jibóia imensa, quase da grossura do caibro da cumeeira, 1,50 m de comprimento, instintivamente nos pusemos de pé, como se fôssemos iniciar uma carreira, porta a fora. O velho ria de dobrar a risada, tentando nos acalmar, explicando que Ninha já morava ali, quando ele chegara e que só fazia se alimentar das libera e não mexia com ninguém. Durante o dia sumia e só voltava à noite. Mas não teve jeito. Diante da nossa súplica, ele puxou Ninha de lá de cima, com a enxada, e a arrastou para fora de casa, sem nenhuma resistência da coitada, mas prevendo que ela certamente voltaria. De qualquer forma, tomamos mais uma e, agora sim, o candeeiro foi apagado.
Menos de cinco minutos, após, conforme previra o velho, começou um zum zum nas palhas. Era um barulho incessante, a indicar que algo muito pequeno se movia, provocando o ruído das palhas secas. Tão intrigante era o chiado que não resisti. De lanterna em punho, fucei até conseguir ver a famosa libera. Me arrepiei todo, pois me lembrei da minha mãe botando fogo nos colchões, quando aprecia apenas uma libera. Imagine aquele exército! Na verdade, eram percevejos, um inseto negro, de pinça afiada, cerca de meio centímetro de comprimento, roliço, tipo um mini-besouro. Só que é um transmissor de doenças e uma praga de difícil extermínio. Dá muito em colchões artesanais, do interior, preenchidos com paina ou macela.
Resultado: não consegui engatar um sono profundo, nem a custa de mais umas lapadas de pinga. A qualquer barulhinho, acendia a lanterna, pois não sabia se era um percevejo ou Ninha revoltada, querendo vingança. E ainda tinha o frio. Enfim, foi uma noite dos diabos, digna do dia de sobressaltos e surpresas.
Muito antes de clarear, já o bondoso anfitrião acendeu a trempe e botou a cozinhar seu feijãozinho com mandioca, criando um calor e um cheirinho delicioso no barraco. Aí fomos nos dar conta da fome que tínhamos. Rapidamente, levamos nossas roupas para perto do fogo, para acabar de secar e, por volta das seis horas, nos empanturramos de feijão com torresmo e mandioca, acrescentando ainda as bolachas que levávamos e umas latas de sardinha. Enfim, um verdadeiro banquete, saboreado diretamente nas panelas e frigideiras, e usando colheres de pau como talher. E devo dizer que foi um desjejum inesquecível.
Como a chuva amainou, mas não parou, ali ficamos até que por volta do meio-dia, chegou o Antonio, outro técnico, com uma Rural repleta de provisões, roupas e ferramentas, para o devido socorro.
Levamos mais três dias para retirar o carro e rebocá-lo até Almas. Depois, mais um dia para ir a Dianópolis trazer um mecânico com reboque profissional. Somente após 15 dias é que a picape adquiriu condições de uso.
Não me lembro mais o nome do bondoso preto velho que dividiu conosco sua pobreza. Sei que guardo para sempre sua lição de hospitalidade. Ao voltar para o acampamento, deixei com ele algo como uma cesta básica, que comprara em Almas. Fazia gosto ver o brilho de seus olhos, ante tanta fartura. Quando, por fim, terminamos os trabalhos, o rancho estava abandonado. O velho já se tinha mudado para outra roça. Certamente, Ninha agora fazia a festa, sem visitantes incômodos. Não quisemos pagar pra ver
Já pendurei o martelo, hoje sou burocrata. Mas esse contato direto com o Brasil desconhecido das estatísticas me amadureceu cedo, me fez mais gente e, certamente, muito mais brasileiro. É o lado humano da profissão. Isso para mim, não foi sofrimento. Foi experiência, que me mata de saudade e que repetiria com prazer, se a roda do tempo pudesse girar para trás.

Um comentário:

Unknown disse...

Que lindo!