Eu poderia chamar esse causo de "causo de um acidente anunciado", pegando carona no célebre conto de Garcia Marques (crônica de uma morte anunciada). Sim, porque desde que o Departamento de Estradas e Rodagens do Estado do Pará - DERPA, colocou a placa "DESVIO A 100 METROS", mas não derrubou a velha ponte de madeira sobre o igarapé Jarinã, era previsível que um dia alguém iria se dar mal. E se deu.
A idéia era substituir a ponte precária por uma estrutura moderna de cimento. Muito louvável, até porque o movimento local já justificava plenamente a iniciativa. Além da febre garimperia e mineral que tomava conta da região, havia intensa atividade agropastoril ali se instalando. Praticamente, todos os grandes grupos econômicos do país tinham adquirido latifúndios no sul do Pará e em meio ao ambiente de tensão agrária, o progresso ia modificando a paisagem natural, criando suntuosas sedes de fazendas, abrindo estradas, trazendo aviões, derrubando a floresta e atraindo levas e levas de aventureiros. Estou tergiversando, mas apenas para dizer que o movimento de carros na poeirenta rodovia Marabá - Conceição do Araguaia era tal, que impôs ao DERPA a urgência de mantê-la minimamente transitável, encascalhando os trechos mais baixos, alargando sua bitola e construindo pontes que não se desmanchassem no próximo inverno.
Nos primeiros dias da placa de desvio, todo mundo obedecia sua indicação, deixando a estrada à direita e embicando o carro na direção do leito seco do igarapé. Ocorre que a burocracia estatal emperrou a liberação dos recursos financeiros e a empresa não pôde iniciar a obra conforme previsto. Apesar do desvio, a velha ponte permaneceu lá, inteirinha da silva. E assim, os dias foram se passando e como a travessia do leito arenoso não era, assim, uma operação muito convidativa, os motoristas retomaram a passagem pela ponte, abandonando o desvio. Menos esse que vos escreve, claro. Velho instinto de preservação me dizia para não desdenhar do aviso. Não desdenhei. Rigorosamente, dia após dia, enfiava a cara da valente F-100 no areial e, lá de baixo, contemplava as táubas tortas de madeira, mal aprumadas e irregulares, a cerca de três metros de altura, rangendo ao passar dos carros.
Corria o ano de 1976 e, juntamente com uma colega argentina, a Mag, fazíamos follow-up de campo em alvarás da empresa canadense que nos empregava. Havia mais de um mês que atuávamos na região, adotando a cidade de Marabá como sede, deslocando-nos todos os dias para as áreas, fazendo reconhecimento geológico e amostragem geoquímica.
Naquele dia, ao tomar o desvio, vi o pessoal da empreiteira se preparando para atear fogo à ponte. Na verdade, montaram algumas fogueiras sobre e sob o madeirame e já se podia sentir o fumaceiro de longe. Confesso que tive um desagradável pressentimento, comentado com minha colega, mas imaginávamos que os funcionários ali permaneceriam, orientando o trânsito. E, assim, tranquilizados, seguimos para mais um dia de rotina geológica, campo a fora. O assunto saiu completamente de nossa pauta de preocupações, até aquele momento em que a Brasília branca nos ultrapassou, cerca de 300 metros da ponte, quando retornávamos a Marabá, 17h00, mais ou menos, cansados, suados e sonhando com a cerva que nos aguardava na cidade. Estranhou-me a velocidade da ultrapassagem, uma imprudência que só poderia indicar uma coisa: O motorista da Brasília não sabia do fogo na ponte logo ali na curva. Acreditem em mim: Mesmo supondo que os funcionários da empreiteira estariam no local, antevi a tragédia que nos aguardava adiante. O pressentimento da manhã voltara, agora com força toltal, me dizendo: - Te prepara, vais precisar ser forte. Mag me olhou com olhar cúmplice. Pensamos a mesma coisa, mas não ousamos dizer palavra. No fundo, torcíamos para estarmos errados. Mas, infelizmente, não estávamos.
Ao entrar na curva que levava ao desvio, uma mistura de fumaça e poeira me confirmou que o pior acontecera. Quando pude enxergar com nitidez, vi um homem desesperado, as roupas ensanguentadas e as mãos sobre a cabeça, andando na areia, apontando para o carro sob a ponte. Estacionei como pude e me deparei com uma cena terrível: o carro sobre os restos do fogo que derrubara a ponte, com o risco de explosão iminente e, preso às ferragens, no banco do passageiro, um rapaz obeso, uivando de dor, que dizia ter as pernas esmagadas, implorando para que o tirássemos dali. Embora meu instinto me dissesse que a primeira coisa a fazer seria garantir a extinção completa do fogo, a compaixão pelo sofrimento do rapaz dentro do carro e de seu pai (depois fiquei sabendo que eram pai e filho), desmaiando na areia me levou a inverter a prioridade de ação, mesmo sabendo do risco que corríamos. Fui ao carro pegar ferramentas para abrir a porta da Brasília que estava emperrada e só então me dei conta de outra tragédia: A Mag tinha desaparecido. Por não suportar ver sangue, saiu correndo pela estrada e sumiu de vista. Resumo da ópera: eu ficara sozinho para tentar fazer o que fosse possível. O rapaz dentro do carro pesava cerca de 150 quilos. Mesmo com a porta aberta, como eu ira tirá-lo? Com a adrenalina a mil, adiei esse problema e me concentrei em como abrir a porta emperrada. Um problema de cada vez. Como tinha bastante ferramentas no carro, levei alavanca, picareta, marretas de vários tamanhos, martelos, o diabo. Aquela porta abriria por bem ou por mal.
Deitei o pai, que vomitava e ameaçava desmaiar, na areia, e iniciei a tarefa "arrebenta-porta" com toda a força que possuía, mas também com o cuidado de não causar mais uma fratura na perna do pobre. Mas não teve força, nem porrada que fizesse a danada da porta abrir. Cheguei a fazer um rombo na lataria, mas inútil... A noite começou a descer e agora era eu que estava ficando desesperado.
Quando estava tentando passar uma corda na porta, para puxá-la, com a F-100, um caminhão apontou no desvio, com vários peões na carroceria... Eram madeireiros. Com uma serra elétrica, rapidamente abrimos a porta, enquanto uma turma limpou a área ao redor do carro, tirando todos os focos de fogo ainda restantes. Aí teve início outro drama: Tirar o rapaz obeso do carro. Ao primeiro movimento de tentativa, ele gritou tanto que nos assustou e desistimos. Mas, ao mesmo tempo em que berrava, ele pedia:
- Pelo amor de Deus, não me deixem aqui, me tirem daqui, nem que eu desmaie de dor!
Então, depois de um trabalho infernal, serramos o teto da Brasília e passamos uma corda sob os dois braços do rapaz, como se fôssemos içá-lo para cima e, dessa forma, com todo mundo ajudando, o removemos, desacordado, para a areia. Ali, fizemos talas de madeira improvisadas, protegendo suas duas pernas (uma delas com fratura exposta) e o colocamos no fundo da F-100, mais confortável que o caminhão, para o trajeto de cerca de 30 km que nos separava do hospital de Marabá.
Não preciso dizer, mas di-lo-ei, que o percurso até a cidade, por aquela estrada esburacada, em noite de breu, foi um drama particular. A Mag, entre apavorada e aparvalhada, parecia necessitar tanto de assistência quanto nosso amigo lá nos fundos do carro, a quem, por absoluta deslembrança, chamarei de Chico. Sua palidez me assustava e eu não sabia o que me preocupava mais, se os lamentos do Chico e seu choroso pai, ou as ameaças de desmaio dela, cada vez que olhava para trás e via a bagaceira sobre nossos sacos de amostras geoquímicas. Mas, enfim, lá pelas 9h00 encostei a F-100 na porta do único hospital da cidade e, a partir de então, compartilhei a responsabilidade por aquela assistência improvisada, mas providencial, nas circunstâncias e no local em que as coisas se deram. Internadas as duas vitimas, ainda tive de prestar depoimento e ficar como responsável pelos dois ilustres desconhecidos até que a família aparecesse e assumisse a encrenca.
Naquela noite, ficamos até altas horas, eu e a Mag, tomando todas e filosofando sobre o sentido da vida. Por fim, ambos bastante borrachos, nos recolhemos à nossa insignificância e nos rendemos aos encantos de Morfeu, que o dia já vinha serelepando ali pelas bandas do Tocantins, a nos lembrar que "amanhã será outro dia".
O pessoal socorrido era de uma importante família da cidade de Castanhal, no Pará. No dia seguinte, aportaram em Marabá umas dez pessoas entre esposa, irmãos, advogados, empregados, enfim, era uma família unida na alegria e na tragédia. Ficaram muito agradecidos pelo socorro que prestamos, queriam nos recompensar em dinheiro e se admiravam de nossa recusa, a não ser a cerveja nossa de cada dia que ficou, digamos assim, mais farta. Trocamos endereços e durante muitos, anos nunca deixei de receber cartões de Natal e de aniversário. Mas, acho que de tanto eu não responder, acabei perdendo contato.
Pois é... A vida de geólogo é assim. Além de dialogar com as pedras brutas e tentar extrair-lhes o passado de neve e fogo, às vezes é aos homens que temos de tentar entender sua natureza estranha. E assim vamos levando os dias. Mas, entre o silêncio sábio das pedras sofridas e as parlapatices dos homens frágeis, há muito que observar e aprender. Não creio que me tornei geólogo por acaso. Algo nessa esquisita profissão me atraiu, me fisgou de forma irresistível. Talvez a aventura de viver por aí, feito hippye assalariado. Talvez a ventura de poder viver longe dos centros urbanos neuróticos. Talvez a curiosidade de entender como tudo começou. Mas, com certeza, a oportunidade de "pegar o Brasil com as mãos", sentir o cheiro de sua terra, o calor de suas gentes, suas dores, seus odores, suas danças, suas línguas. E é isso que vejo hoje, no meu passado. Cada pequenino causo, como esse, mostra como me integrei ao meu povo, como vivi e sofri com ele, como me abrasileirei. Não me orgulha tanto os relatórios que fiz, quanto as amizades que deixei por onde andei. E se tanto me incomodou a falta da pós-graduação gratificante, hoje agradeço o doutorado que fiz, sem saber, sobre Gente, sobre um Povo, sobre uma Terra.