sábado, novembro 15, 2008

Deu a louca no ministro

Li a mensagem ali mesmo, na frente do mensageiro: “Sr. Pereira* pede pro senhor ligar pra ele urgente.” Naquele tempo, 1986, os postos telefônicos do interior tinham um mensageiro que distribuía recados em toda a cidade. Através do pessoal da Sede, o Pereira me localizara ali, no hotel daquela pequena corrutela, interior de Goiás. Dei a gorjeta, tomei um banho e fui ligar.

Hoje, em plena era do celular, é difícil imaginar como eram as comunicações de antanho. A muito custo conseguia-se completar a ligação, mas era só o começo. Depois, era preciso ter a sorte de ela não cair e ainda ter bom ouvido para conseguir distinguir seu interlocutor, no meio dos ruídos intergaláticos que se interpunham na conversa.

- Oi Regis (era assim que ele me chamava), olha aqui, conseguimos uma audiência com o Ministro de Minhas e Energia, Dr. Aurélio Porto*, em Brasília, depois de amanhã. Você tem de vir. A audiência é em seu nome.

Conversamos mais uns dez minutos e desliguei, para supremo alívio dos meus tímpanos.

Então, finalmente iríamos ter um tête-à-tête com o Dr. Aurélio! Há meses vínhamos tentando. Eu era o presidente da nossa entidade nacional dos empregados e precisávamos do apoio do Ministro pra ver se saíamos do zero a zero naquele Acordo Coletivo. A coisa tava braba e as negociações paralisadas. Era nossa última cartada.

Naquela noite, não dormi direito. Pensava no encontro com o Ministro, na importância do acontecimento e na responsabilidade. E se falhássemos? Comecei a sentir um friozinho na barriga. E a ferida na perna começou a latejar. Tanto que tive de trocar o curativo, pra colocar mais anestésico.

Deixe-me explicar. Eu tinha, na verdade, uma leishmaniose.

Dois meses atrás, ao voltar de uma campanha no nordeste de Goiás, notei cinco feridas na perna esquerda. Pequenas, coisa de menos de meio centímetro cada, mas que não cicatrizavam. Fui ao médico, que me receitou um antiestafilococos. Tomei a medicação, percebi que a cicatrização começara e viajei de férias, pra rever a família no interior da Bahia. Depois de uma semana na Boa Terra, estranhei que uma das feridas não cicatrizara. Na verdade, havia se formado uma crosta enorme no local.

Uma parenta, bioquímica, ao ver o estrago, me inquietou:

- Desconfio o que seja, mas só posso afirmar após fazer uma lâmina. Vamos ao meu laboratório!

Algo me dizia que minhas férias tinham ido pro beleléu.

Quando Laura* removeu a crosta da ferida, levamos um susto, nós dois. Embaixo, havia um buraco, mas não era um buraco qualquer. Parecia aberto com uma broca, de tão bem feito e regular. Um canal de meio centímetro de diâmetro, que ia quase até o osso.

- Vou fazer a lâmina só por desencargo de consciência, mas já sei o que é.

Eu nem ouvia direito... Fiquei meio enjoado, querendo vomitar.

Ela fez uma raspagem super dolorida e em poucos minutos estava debruçada no micrsocópio.

- Leishmânia! Exatamente o que pensei! Venha ver... Ela se parece com os glóbulos vermelhos...

Conforme minha intuição, as férias foram mesmo pro beleléu. Voltei urgentemente pra Goiânia, onde dispunha de um hospital de doenças tropicais. O caso era de saúde pública e o medicamento era distribuído pela SUCAM, Superintendência de Campanhas de Saúde Pública.

Como me tratei, já é outra história, mas o fato é que agora estava ali, naquela madrugada quente no interior de Goiás, trocando o curativo e verificando que a danada era bastante resistente. O buraquinho ainda estava lá, bonitinho da silva. Apenas parara de crescer.

Dois dias depois, estava na ante-sala do Dr. Aurélio, aguardando para a audiência. De terno emprestado, sentia-me desconfortável naquele ambiente. Ao lado dos companheiros que vieram do Rio de Janeiro, tínhamos traçado todo um plano de ação. O tempo do Ministro era curto e precisávamos ser objetivos e convincentes. Ficou combinado que Pereira seria o nosso porta-voz. Os demais somente complementariam, quando solicitados, para não tumultuar.

A Audiência finalmente começou. O Dr. Aurélio, muito educado e atencioso, derramou-se em elogios aos geólogos e à geologia. Na primeira deixa, o Pereira desfiou o discurso que havíamos combinado. E foram 20 minutos relatando a difícil situação em que nos encontrávamos, a falta de projetos, orçamento minguante, salários defasados, a Empresa parada, a Diretoria intransigente, a categoria em estado de greve, enfim...

Dr. Aurélio assentia com a cabeça e quando começou a falar, foi naquele tom de que o momento era mesmo de grandes dificuldades, devido à necessidade de redução de gastos públicos, que não tinha margem para ir além do que o orçamento permitia e que havia uma política salarial governamental que era preciso ser obedecida e foi por aí nos jogando água fria.

Estávamos todos desanimados e eu comecei a me cobrar por ter feito aquela viagem tão corrida. De repente, em sua fala, o Ministro, referindo-se ao geólogo disse:

- O geólogo é um profissional privilegiado, trabalha em contato com a natureza, leva uma vida saudável...

Pereira pegou a deixa e partiu pro tudo ou nada:

- Que nada Doutor. Aí é que o Senhor se engana. O geólogo é uma vitima! Além de sacrificar a família e arriscar-se aos acidentes naturais da vida no campo, vive exposto a todo tipo de doenças tropicais.

Pereira viu que achara uma boa linha de argumentação, pois o Ministro mostrou-se vivamente interessado, fazendo perguntas. Pereira, então, deitou e rolou:

- Olha Dr. Aurélio, o Senhor não faz idéia do que é viver no meio do mato. O geólogo enfrenta diariamente cobras, feras, insetos, grileiros, posseiros, índios. Há muitos colegas que sofreram acidente de carro, outros nas máquinas de sondagem. Recente pesquisa feita por nossa entidade revelou que 70% dos geólogos já sofreram algum tipo de trauma profissional. E nada disso é reconhecido! Mas saiba que as minas que abastecem as indústrias, têm o suor, o sangue e a vida dos geólogos!

Vendo que o Ministro estava se mostrando sensível o Pereira arrematou, para surpresa de todos nós:

- Para o Senhor não pensar que estou exagerando, tá aqui esse colega – apontou para mim. Para estar aqui hoje, viajou diretamente do interior de Goiás e com uma baita leishmaniose na perna!

- Leishmaniose?!

-É... Mesmo doente, está trabalhando no campo. E por conta dessa vida é um rapaz separado, vive só. É difícil uma mulher se adaptar à vida do geólogo. O índice de separação é altíssimo!

Eu fiquei pasmo, mas o Ministro estava mesmo interessado era na leishmaniose.

- Como é isso?

Rapidamente expliquei. Aí foi ele que nos surpreendeu:

- Posso ver a ferida?

Quase em coro, meus colegas disseram:

- Mostra!

Aí foi minha vez de pagar mico. Levantei a perna da calça, afrouxei o curativo e expus aquela coisa horrível. Nunca me esqueço o cenho franzido e a cara de nojo do Ministro, quando me perguntou:

- Dói?

Enquanto eu me recompunha, o Ministro perguntou:

- Tem muitos geólogos com essa doença na CPRM?

Aí o Pereira deu o golpe final:

- Ministro, só na Amazônia temos duzentos geólogos. Todos, sem exceção, já tiveram leishmaniose ou malária. Muitos já perderam a conta das malárias. São mais de dez mortes por malária, duas por ataques de índios, duas por afogamento, uma por ataque de onça e dois desaparecidos na floresta.

Fez-se silêncio. O Ministro ficou uns segundos tamborilando a caneta sobre a mesa e, finalmente, chamou seu assessor:

- Seu Roberto, me ligue, por favor, com o Dr. Márcio*.

Dr. Márcio era o Ministro do Planejamento, onde nossas negociações estavam emperradas.

Ali, na nossa frente, depois de uma curta conversa, os dois ministros acertaram um reajuste bastante razoável para nós. Longe do que pedimos, mas o suficiente para distensionar o clima e levar o Acordo a bom termo.

Quando saímos, satisfeitos com o resultado, fui em cima do Pereira:

- Que negócio é esse de dizer que me separei duas vezes e que vivo só? Tá ficando louco cara? E aquela quantidade de mortos na Amazônia?

- Regis, se a conversa demora mais, até eu ia me separar, cara. Eu não podia era perder essa chance!

Dizem que de médico e de louco todos temos um pouco, Sei não, mas acho que o geólogo é mais louco que a média. Um peão com quem trabalhei muitos anos me disse, certa vez, que o geólogo vive dentro dos matos, procurando o que não perdeu, pra fazer não sei o quê. Não é que ele tem toda a razão?


* Nomes fictícios