quinta-feira, dezembro 20, 2007

Dez metros fatais

Era um fim de noitada naquela cidade do interior paraense. Caminhava pela rua de terra vermelha, ainda atordoado de tanta bebida e farra. A noite tinha sido boa, mas já era dia claro. Dirigia-me, sonolento, mas sóbrio, ao jipe que me aguardava, adiante, para retornar ao acampamento.
De repente, notei um homem, sentado na guia da calçada, com o rosto entre as mãos. A princípio, julguei tratar-se de mais um bêbado, mas, ao me aproximar, percebi que ele chorava convulsivamente, em soluços entrecortados.
Meio constrangido, passei por ele, mas um súbito sentimento de compaixão me tomou e eu voltei, devagar, até tocar levemente seus ombros, já que ele não levantava a cabeça.
- Desculpe amigo! Mas posso fazer alguma coisa? Por que chora tanto?
Um rosto de seus 40 anos olhou-me, com surpresa, examinando-me como se ouvisse e não me visse. Um olhar de pura dor. Barba espessa, meio grisalha, vincos de sofrimento visíveis nas feições precocemente envelhecidas, lábios comprimidos, no esforço de conter o pranto. Quase me agradecendo, falou com infinita amargura:
- Ninguém pode me ajudar, amigo É muito grande a aminha dor!
Havia tanta dignidade em sua recusa, que restou no ar apenas o eco de uma decisão definitiva, inquestionável. Ainda assim, insisti:
- Precisa de algum dinheiro? Sente dor? Gostaria de tomar um café?
Acho que não foram exatamente essas minhas palavras, mas foi certamente o que eu gostaria de ter perguntado.
Novamente ele me olhou, por breves segundos e sua expressão de dor pôs um ponto final em minha impertinência. Sem outro comentário, ele apenas gemeu:
- Ai! É muito grande a minha dor!
E retomou seu lamento compungido.
Absolutamente desconcertado, afastei-me, em respeito àquele choro digno, que não queria outra coisa, que não fluir, como água na cachoeira.
Vinte metros adiante, meu carro me aguardava, com dois companheiros dormindo a bordo. Eu era o último retardatário. Mas, enquanto caminhava, com as mãos nos bolsos, a imagem e o som da cena de há pouco me afligiam, como espinho no pé, incomodando, exigindo atitude. Minha compaixão desdobrou-se em motim de sentimentos. Não se pode deixar um homem assim, aos prantos, no meio da rua, à mercê de tamanha dor. Em segundos, me vieram à mente os temores daquela noite nas dependências do DOI-CODI... O quanto eu não teria gostado se recebesse a solidariedade de alguém!
Instintivamente me voltei. Havia uma resolução irremovível em mim. Porém, para meu espanto, embora eu tivesse andado meros dez metros, a calçada estava vazia. O homem não estava mais lá, nem em qualquer outro ponto à vista.
Confesso que aquilo me atordoou ainda mais. Onde diabos se metera? Procurei nas ruas vizinhas, nos botecos ainda abertos, mas... Nada. Simplesmente ele desaparecera.
Já no carro, contei o ocorrido aos companheiros, mas eles juraram não ter visto ninguém ali.
Foi tão chocante o impacto daquele encontro-fantasma, que nem consegui dormir, ao chegar ao acampamento. A dor daquele rosto barbudo não me saia da visão, nem seus soluços, nem sua descrença.
Mas, existira mesmo tal homem ou teria sido imaginação de minha mente ressacada? Poderia ter sido apenas uma ilusão, aquela cena inesquecível? Efeito inconsciente de uma noite de esbórnia?
Anos depois, em conversa com psicólogo amigo, fiquei sabendo que sim, que, em certas circunstâncias, a mente pode criar cenas que nos iludem, principalmente sob o efeito de drogas, o que não foi o caso, juro.
Por mim, não acredito nisso e lhes afirmo que o tal homem era de carne e osso e se o visse ainda hoje, o reconheceria.
O fato, contudo, é que, por mais que tenha indagado, nunca obtive uma única pista do tal chorão. Sei que a tela do tempo embaça a visão, mas não os sentidos da alma. A dor do rosto de um homem rude jamais se esquece.
Mas nada disso vem mais ao caso. Ter existido ou não, não importa mais. Importa é que aprendi uma lição. Quando tiver oportunidade de ser solidário, não leve dez metros para decidir. Dez metros podem ser fatais. Podem causar um vazio, uma incerteza que te acompanharão pelo resto da vida. Dez metros podem te deixar uma interrogação na alma, como a cicatriz de uma facada na barriga. Irremovível.
Como já disse, para mim tornou-se irrelevante a dúvida das pessoas, sobre a existência do meu amigo chorão. O que me mata hoje é não poder responder à seguinte pergunta:
- O que aconteceria se eu apenas tivesse me sentado a seu lado e permanecido ali até poder fazer algo? Estaria aqui contando esse causo?
O que me aflige são as minhas dúvidas e não as dos outros.

domingo, dezembro 09, 2007

Homem-anta

O acampamento ficava na beira de um córrego com densa mata ciliar, no coração da Bodoquena, Mato Grosso, ano da graça de 1975, se não me falham os neurônios. Quase 17h00, as equipes de campo já tinham regressado, menos uma, a do Gilsinho*.
De repente, o silêncio do entardecer bucólico do cerrado foi quebrado. O barulho indicava que um bicho de grande porte avançava pelo córrego, aproximando-se do acampamento. A um sinal do chefe do projeto, dois peões empunharam as espingardas calibre 38 e se postaram estrategicamente na embocadura da última curva do leito, onde o bicho se faria visível à mira. Pelo barulho descuidado e apressado, ninguém duvidava de que era uma anta, provavelmente em perseguição ao filhote desgarrado. De qualquer forma, era absolutamente estranha a situação. Os animais não costumam dar bandeira assim. Mas enfim...
Dez minutos depois, o barulho tornou-se tão intenso, que todos correram para assistir ao inevitável abate, já que, além da ameaça ao acampamento, uma anta proveria carne de excelente qualidade para muitos dias.
Quando a marola do bicho atingiu o barranco dos atiradores, estes apuraram as vistas e só o esperavam apontar a cabeça na curva para a execução. Seriam dois tiros convergentes e fatais. A anta não teria a menor chance.
Respiração suspensa... Dedos em riste nos gatilhos... Mira fixa na curva... É agora! E então... Gilsinho surge feito uma anta na curva do córrego, caindo sobre as pedras e quebrando galhos, provocando uma barulheira dos demônios. Por pouco, muito pouco mesmo, os atiradores não abriram fogo. Segundo eles, o que salvou mesmo o Gilsinho foi a camisa vermelha.
O Juca*, chefe do projeto, bocão como ele só, foi ao encontro do homem-anta:
- Gilsinho! Seu filho de uma anta! Tu não tem juízo não, porra? Quer levar um tiro, é? Que diabo aconteceu? Por que você veio por dentro do córrego? Cadê seu carro e o motorista?
Gilsinho, com a cara mais simplória do mundo, sem nenhuma ruga de preocupação, revelou que o Toyota em que ele e o motorista voltavam ao acampamento ficara enganchada num tôco, na passagem de uma cancela, a cerca de cinco quilômetros dali, pela estrada. Então, para ganhar tempo, viera pelo vale, cortando pelo menos dois quilômetros. Juca não entendeu direito:
- Peraí Gilsinho. Como é que é a história? O jipe enganchou num tôco? Como assim?!
- É Juca. Não tem aquele tôco que fica no chão, entre os mourões, para segurar a cancela? Então... Esse tôco era muito alto e pegou no diferencial do Toyota. O bicho travou de tal maneira que não vai nem pra frente, nem pra trás. Nem reduzindo a primeira o carro venceu o tôco! Tá lá entalado. Falei pro Miranda* (o motorista) não fazer nada e aguardar socorro.
Juca passava as mãos pelos cabelos, sem acreditar no que ouvira, pois, conhecendo o Gilsinho, já deduzira o ocorrido. Mesmo assim perguntou.
- Veja se eu entendi bem. O carro ficou entalado no tôco e não vai nem pra frente nem pra trás. É isso mesmo?
- Hã hã...
- Só mais uma coisinha, seu carro tem macaco?
- Hã hã...
- E vocês não tentaram usar o macaco não? Pra suspender o carro....
Aí, foi o Gilsinho que fez a maior cara de surpresa do mundo:
- Ué! Mas eu não sabia que podia usar o macaco pra isso... Pensava que macaco só servia pra trocar pneu! O motorista ainda sugeriu, mas eu não deixei...
Acredite se quiser.
Juca ia dar um esculacho, mas daí se lembrou que diante dele estava uma pessoa que teve de superar um grave acidente de carro, no passado, que lhe lesou parte do cérebro. Resolveu não discutir e despachou um motorista pra resgatar o Toyota do Gilsinho e seu motorista que, pelo visto, devia ter alguma lesão cerebral também. Disse simplesmente:
- Tá bom Gilsinho. Vai tomar seu banho, que nós vamos resolver essa bronca. E vê se passa mertiolate nesses arranhões!
Quando o Gilsinho se afastou, a turma caiu na risada e a vida voltou ao normal no acampamento, sob os últimos pios das siriemas e das juritis, antes da noite cair de vez, naquelas vastidões matogrossenses.

* Nomes fictícios