Capitão e seus causos
- Bom dia Capitão!
- Capitão! Me dê uma mãozinha aqui por favor!
- Capitão, tem um engovezinho aí ? O fígado hoje tá negando fogo...
Era assim.
As pessoas, para ele, não tinham nome. Todos eram, indistintamente, Capitão.
Isso, desde os tempos de faculdade, diziam seus contemporâneos do curso de Geologia.
Vem daí seu apelido de Capitão.
Se perguntarem a qualquer um que trabalhou com ele, por seu nome de batismo, a resposta só virá após uma consulta ao banco de dados da memória. Quem mesmo? Depois de algumas pistas: Ah!, Você está falando do Capitão!
Dizem as más línguas, embora isso nunca tenha sido confirmado, que ele rezava o Pai Nosso assim: “Capitão que estás no céu....”
Esse é o nosso personagem.
De sua contribuição à geologia estrutural da Borborema não vamos aqui tratar, primeiro por não estarmos à altura. Segundo, porque sua obra, vasta e importantíssima, fala por si só. O geólogo Capitão não precisa de loas desse pobre mortal.
Mas seus textos técnicos, recheados de flexuras, recumbências e rotações sinistras, nada dizem do Capitão boêmio e seresteiro, amante da boa música, da cerveja gelada, das noites de lua e de uma conversa madrugadeira na mesa de um boteco. Jogando conversa fora, lembrando os bons tempos, resolvendo os problemas do país e do mundo. Enfim, um tipo bem brasileiro.
O detalhe, em relação ao Capitão, é que ele tinha dificuldade em parar.
Explico-me.
Sabe aquele ditado, boi pra não entrar e boiada pra não sair? Foi criado para o Capitão. Quando ele começava, isto é, depois de tomar a primeira, não tinha hora de parar. Por isso, só andava de taxi. Já tinha uns motoristas conhecidos, que o deixavam no elevador do prédio, com o botão do andar pressionado.
E assim, após quase quatro décadas de atividades geológico-etílicas, por esse Brasil a fora, o Capitão colecionou causos incríveis, os mais inverossímeis que se possa imaginar e que ele saboreava relatar, com satisfação quase-orgulho, entre gostosas risadas e uns tantos novos tragos.
Vamos curtir alguns deles. Este é o terceiro post da série. Veja os dois anteriores: 24 HORAS DE CERVEJA e A MELHOR MÚSICA DO MUNDO.
VEXAME NA CAMERATA
Só a muito custo Zeca conseguiu “expulsar” o Capitão naquela noite. Afinal, era plena segunda-feira de meu Deus, e ele passara na Associação apenas para fazer uma limpeza e organizar o bar, da bagunça do domingo. Não estava em seus planos atender ninguém, muito menos o Capitão, que não tem limites nem horário. E o estoque de linguiças estava praticamente a zero.
Mas deu um tremendo azar
Naquele dia, estava na cidade um supervisor do Rio que, além de supervisionar os trabalhos, gostava também de supervisionar os botecos e boates das cidades por onde passava e era grande amigo do Capitão, desde priscas eras.
Ao espiar no portão ver o Zeca passando pano no balcão, o Capitão foi logo entrando e ordenando, como um patrão com urgência:
- Capitão, manda aí uma gelada e frite umas linguicinhas pro meu amigo carioca ver o que é uma linguiça de verdade.
- Doutor, o senhor me desculpe, mas só passei aqui pra fazer uma limpeza. Hoje não vou atender, que preciso chegar cedo em casa.
- Claro Zeca, deixe de besteira. É só uma saideira e pronto. Como ia deixar o Capitão aqui voltar pro Rio sem provar sua linguiça? Passei o dia fazendo propaganda... Uma rodada e estamos conversados.
Isso, era por volta de 18h30.
Às 23h00, Zeca explodiu, como um marinheiro amotinado:
- Nã, nã, nã, nã não!!! Não vou mais servir saideira porra nenhuma! Não tem mais linguiça, o freezer tá seco e se demorar mais dez minutos perco o último Ibura de Cima. Tá aqui a conta, mas pode deixar pra me pagar amanhã. Vambora, vambora, vambora!
Falou com tal autoridade que só restou ao Capitão e seu convidado obedecerem, sem nenhuma chance de protesto.
Mas, embalados, os dois notívagos estavam mesmo preocupados era onde continuar a esbórnia, já que na segunda-feira os bares costumam fechar cedo.
Tomaram um táxi e se mandaram pra orla de Boa Viagem.
Depois de passarem por dois conhecidos ambientes, ambos já fechados, esgueiraram-se por uma ruazinha lateral, onde uns carros parados prenunciavam boteco aberto.
Era um desses botecos alternativos, um ambiente tipo lunge, à meia-luz, com cheiro de erva no ar, onde, naquela noite, apresentava-se um quarteto de violoncelos e piano tocando músicas de câmara. Uma camerata.
O Capitão entrou, tendo de se abaixar um pouco (o ambiente tinha o pé direito baixo), apertou bem os olhos, pra conseguir enxergar na penumbra, até que viu os músicos no tablado ao fundo e se animou:
- Beleza Capitão, aqui tem música ao vivo.
As mesas eram baixinhas, com pufts em volta.
Com certa dificuldade, acomodaram-se num almofadão esquisito e pediram uma cerveja.
E então, com mais calma, o Capitão perscrutou o ambiente.
Bicho-grilo pra todo lado, as pessoas sussurrando, casais desinibidos no maior amasso, um cheirinho velho conhecido no ar, que lembrava os tempos de estudante, sons suaves de baixo, violoncelo e piano... Enfim, um clima de “viagem” da porra.
Chega o garçom com duas long neck.
O Capitão se ofendeu:
- Que é isso Capitão? Eu pedi uma cerveja... Uma cervejona, entendeu?
- Desculpe senhor, aqui só servimos long neck. E por favor, a Casa solicita que fale baixo.
Indignado, o Capitão falou baixo o suficiente pro garçom ouvir:
- A Casa que se exploda, Capitão. Eu falo no tom que eu quiser. Ora porra!!
E, antes que o constrangido garçom se afastasse:
- Traga umas linguicinhas fritas, por favor, Capitão, e duas Pitu.
- Mais uma vez desculpe, Senhor. A Casa só trabalha com frios. Quanto à Pitu... É... De que se trata mesmo?
Antes que o caldo entornasse de vez, o amigo carioca interveio e botou panos quentes:
- Tá bom. Traga uma tábua de frios, por favor.
Serenados os ânimos, o Capitão comentou sobre a música:
- Que música chata do caralho! Isso aqui tá pior do que enterro. Será que esses caras não tocam um bolerozinho, um samba-cançaõ?
Assim que a camerata deu um tempinho, o Capitão abordou o 1º Violoncelo na entrada do banheiro:
- Capitão, será que dá pra levar Tico-tico no Fubá?
O 1º Violoncelo, indignado, disse que não sabia e, educadamente, saiu de fininho. Mas, antes de se afastar, jogou na cara do Capitão:
- Somos uma camerata.
- Bela bosta, resmungou o Capitão.
Não satisfeito, o Capitão partiu pra cima do 2º Violoncelo:
- Pô Capitão, essa música de vocês tá dando um baixo astral da porra... Será que não dá pra levar Urubu Malandro, Piston de Gafieira, Pisei num Despacho, uma coisinha assim mais animada?
Ante a cara de desentendido do 2º Violoncelo, como se tivesse falado em sânscrito, o Capitão viu o Baixo numa roda e continuou o apelo:
- Capitão, vocês são muito bons, mas será que dá pra levar aí um Orlando Dias, Vicente Celestino ou Nelson Gonçalves, só pra animar um pouquinho o ambiente?
O Baixo alegou uma repentina taquicardia e a roda se desfez.
Pelo salão, um sussurro corria de mesa em mesa, todos olhando aquela figura estranha, peixe fora d’água a importunar a tranquilidade do local.
Quando a camerata voltou ao palco e os instrumentistas já estavam todos a postos, o Capitão, num gesto que pegou a todos de surpresa, subiu o tablado, tirou o microfone do pedestal, olhou pro lado e pra trás, como se procurando algo:
- Cadê o violão? Não tem violão nessa banda, não?
Sem esperar respostas dos músicos aparvalhados, ordenou ao Piano:
- Dá um lá menor aí por favor, Capitão.
Sem saber o que fazer, o Piano jogou uma nota no ar, olhando para as mesas, como a pedir socorro.
Embalado, o Capitão sapecou, com seu vozeirão:
“Boemia, aqui me tens de regressso,
E suplicante te peço, a minha nova inscrição.
Voltei...”
Como um passe de mágica, o microfone foi desligado. Dois seguranças, do tipo 16 toneladas, se aproximaram do Capitão, já com o carioca a tiracolo, e anunciaram, com discrição:
- Senhor, a Casa o convida a se retirar imediatamente.
Enquanto falavam, os seguranças, delicadamente, puxavam o Capitão em direção à porta, onde outros dois brutamontes aguardavam, com a continha na mão.
Depois de ouvir veementes protestos contra o roubo dos preços e a violência da Casa, o gerente fez a gentileza de chamar um táxi para os dois penetras.
Ferido em seus brios, o Capitão ainda queria esticar a noitada, mas o carioca, ressabiado e por já estar perto do seu hotel, preferiu encerrar o programa, prometendo continuarem na noite seguinte.
Já em seu prédio, o Capitão chora as mágoas com o porteiro, velho conhecido:
- Capitão, você sabe o que é uma camerata?
- Camerata?? Sei lá... Pra mim é o mesmo que camareira, não?
- Porra, Capitão, que merda! Me expulsaram do bar, só porque subi no palco pra dar uma esquentada na camerata, vê se pode? Mal comecei a cantar, me expulsaram!
- Calma Doutor, é isso mesmo. Esse mundo tá virado. Eu também peguei uma suspensão só porque cantei a faxineira.
- A faxineira? Essa eu não conheço... De quem é? Ari Barroso?
- Nada... Nem casada é.
- Depois me dá a letra dela, pra ver se conheço.
- É analfa doutor. Não sabe nem fazer um ó com o fundo da garrafa.
- Quer saber de uma, Capitão? Eu vou é dormir, que a cabeça tá começando a aporrinhar. Boa noite.
O porteiro acompanhou-o até o elevador, onde apertou o botão do andar do Capitão e retornou a seu posto. Mas ficou pensando, com ar de zombaria:
- Esse Capitão, hein!? Quem diria!! Cantar a camerata em cima do palco, todo mundo vendo... Só podia dar mesmo era expulsão.
Salvador, 02/04/2013