O tempo era de vacas magras, década de 1980.
Naquela pequena unidade da Companhia, situada em Natal, praticamente já não haviam mais projetos. Nenhum mapeamento geológico ou pesquisa mineral. As viagens de campo se acabaram e o dia-a-dia era uma coçação de saco coletiva no escritório. Um tédio.
Vai daí que o chefe da unidade, dono da belíssima Fazenda Água Boa, encravada na zona da mata, a cerca de 60km da capital, deu de botar os peões da Companhia pra trabalharem em sua propriedade particular. Dando manutenção, fazendo cercas, limpando roças, cuidando do gado, essas coisas. Enfim, já que os salários eram garantidos mesmo, pelo menos os peões não ficavam parados. Todos os dias um motorista fazia compras em Natal, pegava a peãozada e levava pra fazenda. De tarde voltava, trazendo os trabalhadores e toda sorte de carga de interesse do chefe.
Vai daí que o chefe da unidade, dono da belíssima Fazenda Água Boa, encravada na zona da mata, a cerca de 60km da capital, deu de botar os peões da Companhia pra trabalharem em sua propriedade particular. Dando manutenção, fazendo cercas, limpando roças, cuidando do gado, essas coisas. Enfim, já que os salários eram garantidos mesmo, pelo menos os peões não ficavam parados. Todos os dias um motorista fazia compras em Natal, pegava a peãozada e levava pra fazenda. De tarde voltava, trazendo os trabalhadores e toda sorte de carga de interesse do chefe.
E assim a vida ia transcorrendo na maré mansa, até que alguém bateu com os dentes para o chefe do chefe, em Recife. A coisa tomou ares de escândalo e ele proclamou aos quatro ventos que jamais seria conivente com tal descalabro. Cabeças rolariam, doesse a quem doesse. E elaborou minucioso telex (telex... alguém se lembra?) de denúncia ao presidente da Companhia, recomendando o imediato fechamento da unidade, com a consequente demissão dos prestadores de serviço e retorno dos efetivos a Recife. Para o bem da coisa pública.
Recomendação aceita, o presidente da Companhia expediu sucinto telex ao chefe do chefe, ordenando imediato cumprimento da faxina, ad referendum do Conselho de Administração. O chefe do chefe, que não morria de amores pelo chefe, viu chegar sua hora de tirar desforra. Levou uma semana para planejar e realocação de pessoal, custo das dispensas, distrato do aluguel, etc. De modo que numa ensolarada manhã de segunda-feira, partiu de Recife, com destino a Natal, um caminhão-baú, especialmente alugado, para trazer os equipamentos e o mobiliário do escritório condenado. Num envelope lacrado, o memorando fatal, comunicando as dolorosas decisões, que o motorista deveria entregar pessoalmente ao chefe. Anexo ao memorando, o telex presidencial.
Ocorre que o tempo é faca de dois gumes, ensina a sabedoria popular.
Enquanto o chefe do chefe planejava a desmobilização, e como nesse nosso país tudo vaza, desde antanho, a notícia vazou de Brasília e veio direto ao conhecimento do chefe, que não era, digamos assim, nenhum órfão político. Pelo contrário, tinha padrinhos influentes. Não fora à toa que permanecera à frente da unidade já há mais de uma década.
Se alguém não quiser acreditar eu compreendo, mas o fato é que quando o caminhão estacionou em frente ao escritório, na tarde daquela mesma segunda-feira, a história já era outra. Uma reviravolta política houvera ocorrido. Contra o telex de Sua Senhoria, o Presidente, determinando o fechamento da unidade, o chefe exibiu urgente e recentíssimo telegrama (telegrama... alguém se lembra?) de Sua Excelência, o Ministro, revogando a subalterna ordem e tranquilizando o chefe, quanto à manutenção da unidade, no atendimento ao legitimo interesse da sociedade potiguar.
Confuso, o motorista ligou para o chefe do chefe, dando conta do ocorrido e ficou aguardando orientações. O chefe do chefe repassou sua perplexidade ao presidente que, por sua vez, a repassou para a assessoria do ministro. Alguns minutos depois as perplexidades foram devidamente engolidas (a seco, diga-se de passagem) e o desnorteado motorista orientado a retornar vazio no dia seguinte, primeiro horário.
Dia seguinte, primeiro horário, o desnorteado motorista chega ao escritório para pegar o caminhão que ficara na garagem e dá de cara com o chefe que já o aguardava.
- Bom dia seu Roberval, já de volta?
- É doutor. Como não tem nada pra levar mesmo, vou abreviar meu retorno, pra chegar mais cedo em casa, né?
- É... Tá certo. Mas, seu Roberval, já que o senhor vai voltar vazio mesmo, e pra não perder essa oportunidade, me faça um favorzinho, tá?
Dirigindo-se ao interior do escritório:
- Chicão! Faz favor!
Meio segundo depois, apresenta-se o prestimoso Chicão, o conhecido capataz da Fazenda Água Boa.
- Chicão, a madeira dos galpões já está pronta?
- Já, sim senhor, desde ontem.
- Então seu Roberval, como eu dizia, aproveitando que o caminhão vai voltar vazio mesmo, passe ali na Madeireira Pau pra Toda Obra e leve um carregamento de madeira pra mim, lá pra Fazenda Água Boa. Fica só a 30km da BR, mas é uma estradinha de terra boa danada. Antes do almoço o senhor estará lá. Chicão vai com o Senhor pra ensinar direitinho.
Antes que o pasmo motorista ensaiasse qualquer objeção:
- O Senhor tem filhos, seu Roberval?
- Sim senhor, dois meninos.
- Chicão, após descarregar o caminhão, dê dois queijos de manteiga e uma rapadura pro Seu Roberval levar pros pirralhos dele, viu? Ah, e embale bem embaladinho, umas cinco pamonhas pro chefe de Recife, com meus cumprimentos. Não se esqueça! Vão com Deus, e boa viagem!
O embasbacado motorista se foi, o chefe retomou seus nada-afazeres, os funcionários reiniciaram a coçação de saco quase interrompida, o chefe do chefe se fingiu de morto, o presidente desculpou-se com o ministro e tudo continuou como dantes no meu Brasil varonil.
E quem quiser que conte outra história, que esta, carimbada e aprovada, já está indelevelmente registrada no rol do folclore geológico nacional, tendo por testemunhas imortais os mangues do Capibaribe e as dunas de Genipabu.
Recomendação aceita, o presidente da Companhia expediu sucinto telex ao chefe do chefe, ordenando imediato cumprimento da faxina, ad referendum do Conselho de Administração. O chefe do chefe, que não morria de amores pelo chefe, viu chegar sua hora de tirar desforra. Levou uma semana para planejar e realocação de pessoal, custo das dispensas, distrato do aluguel, etc. De modo que numa ensolarada manhã de segunda-feira, partiu de Recife, com destino a Natal, um caminhão-baú, especialmente alugado, para trazer os equipamentos e o mobiliário do escritório condenado. Num envelope lacrado, o memorando fatal, comunicando as dolorosas decisões, que o motorista deveria entregar pessoalmente ao chefe. Anexo ao memorando, o telex presidencial.
Ocorre que o tempo é faca de dois gumes, ensina a sabedoria popular.
Enquanto o chefe do chefe planejava a desmobilização, e como nesse nosso país tudo vaza, desde antanho, a notícia vazou de Brasília e veio direto ao conhecimento do chefe, que não era, digamos assim, nenhum órfão político. Pelo contrário, tinha padrinhos influentes. Não fora à toa que permanecera à frente da unidade já há mais de uma década.
Se alguém não quiser acreditar eu compreendo, mas o fato é que quando o caminhão estacionou em frente ao escritório, na tarde daquela mesma segunda-feira, a história já era outra. Uma reviravolta política houvera ocorrido. Contra o telex de Sua Senhoria, o Presidente, determinando o fechamento da unidade, o chefe exibiu urgente e recentíssimo telegrama (telegrama... alguém se lembra?) de Sua Excelência, o Ministro, revogando a subalterna ordem e tranquilizando o chefe, quanto à manutenção da unidade, no atendimento ao legitimo interesse da sociedade potiguar.
Confuso, o motorista ligou para o chefe do chefe, dando conta do ocorrido e ficou aguardando orientações. O chefe do chefe repassou sua perplexidade ao presidente que, por sua vez, a repassou para a assessoria do ministro. Alguns minutos depois as perplexidades foram devidamente engolidas (a seco, diga-se de passagem) e o desnorteado motorista orientado a retornar vazio no dia seguinte, primeiro horário.
Dia seguinte, primeiro horário, o desnorteado motorista chega ao escritório para pegar o caminhão que ficara na garagem e dá de cara com o chefe que já o aguardava.
- Bom dia seu Roberval, já de volta?
- É doutor. Como não tem nada pra levar mesmo, vou abreviar meu retorno, pra chegar mais cedo em casa, né?
- É... Tá certo. Mas, seu Roberval, já que o senhor vai voltar vazio mesmo, e pra não perder essa oportunidade, me faça um favorzinho, tá?
Dirigindo-se ao interior do escritório:
- Chicão! Faz favor!
Meio segundo depois, apresenta-se o prestimoso Chicão, o conhecido capataz da Fazenda Água Boa.
- Chicão, a madeira dos galpões já está pronta?
- Já, sim senhor, desde ontem.
- Então seu Roberval, como eu dizia, aproveitando que o caminhão vai voltar vazio mesmo, passe ali na Madeireira Pau pra Toda Obra e leve um carregamento de madeira pra mim, lá pra Fazenda Água Boa. Fica só a 30km da BR, mas é uma estradinha de terra boa danada. Antes do almoço o senhor estará lá. Chicão vai com o Senhor pra ensinar direitinho.
Antes que o pasmo motorista ensaiasse qualquer objeção:
- O Senhor tem filhos, seu Roberval?
- Sim senhor, dois meninos.
- Chicão, após descarregar o caminhão, dê dois queijos de manteiga e uma rapadura pro Seu Roberval levar pros pirralhos dele, viu? Ah, e embale bem embaladinho, umas cinco pamonhas pro chefe de Recife, com meus cumprimentos. Não se esqueça! Vão com Deus, e boa viagem!
O embasbacado motorista se foi, o chefe retomou seus nada-afazeres, os funcionários reiniciaram a coçação de saco quase interrompida, o chefe do chefe se fingiu de morto, o presidente desculpou-se com o ministro e tudo continuou como dantes no meu Brasil varonil.
E quem quiser que conte outra história, que esta, carimbada e aprovada, já está indelevelmente registrada no rol do folclore geológico nacional, tendo por testemunhas imortais os mangues do Capibaribe e as dunas de Genipabu.
Salvador, Out/2012