terça-feira, outubro 23, 2012

Reviravolta


O tempo era de vacas magras, década de 1980.

Naquela pequena unidade da Companhia, situada em Natal, praticamente já não haviam mais projetos. Nenhum mapeamento geológico ou pesquisa mineral. As viagens de campo se acabaram e o dia-a-dia era uma coçação de saco coletiva no escritório. Um tédio.

Vai daí que o chefe da unidade, dono da belíssima Fazenda Água Boa, encravada na zona da mata, a cerca de 60km da capital, deu de botar os peões da Companhia pra trabalharem em sua propriedade particular. Dando manutenção, fazendo cercas, limpando roças, cuidando do gado, essas coisas. Enfim, já que os salários eram garantidos mesmo, pelo menos os peões não ficavam parados. Todos os dias um motorista fazia compras em Natal, pegava a peãozada e levava pra fazenda. De tarde voltava, trazendo os trabalhadores e toda sorte de carga de interesse do chefe.

E assim a vida ia transcorrendo na maré mansa, até que alguém bateu com os dentes para o chefe do chefe, em Recife. A coisa tomou ares de escândalo e ele proclamou aos quatro ventos que jamais seria conivente com tal descalabro. Cabeças rolariam, doesse a quem doesse. E elaborou minucioso telex (telex... alguém se lembra?) de denúncia ao presidente da Companhia, recomendando o imediato fechamento da unidade, com a consequente demissão dos prestadores de serviço e retorno dos efetivos a Recife. Para o bem da coisa pública.

Recomendação aceita, o presidente da Companhia expediu sucinto telex ao chefe do chefe, ordenando imediato cumprimento da faxina, ad referendum do Conselho de Administração. O chefe do chefe, que não morria de amores pelo chefe, viu chegar sua hora de tirar desforra. Levou uma semana para planejar e realocação de pessoal, custo das dispensas, distrato do aluguel, etc. De modo que numa ensolarada manhã de segunda-feira, partiu de Recife, com destino a Natal, um caminhão-baú, especialmente alugado, para trazer os equipamentos e o mobiliário do escritório condenado. Num envelope lacrado, o memorando fatal, comunicando as dolorosas decisões, que o motorista deveria entregar pessoalmente ao chefe. Anexo ao memorando, o telex presidencial.

Ocorre que o tempo é faca de dois gumes, ensina a sabedoria popular.

Enquanto o chefe do chefe planejava a desmobilização, e como nesse nosso país tudo vaza, desde antanho, a notícia vazou de Brasília e veio direto ao conhecimento do chefe, que não era, digamos assim, nenhum órfão político. Pelo contrário, tinha padrinhos influentes. Não fora à toa que permanecera à frente da unidade já há mais de uma década.

Se alguém não quiser acreditar eu compreendo, mas o fato é que quando o caminhão estacionou em frente ao escritório, na tarde daquela mesma segunda-feira, a história já era outra. Uma reviravolta política houvera ocorrido. Contra o telex de Sua Senhoria, o Presidente, determinando o fechamento da unidade, o chefe exibiu urgente e recentíssimo telegrama (telegrama... alguém se lembra?) de Sua Excelência, o Ministro, revogando a subalterna ordem e tranquilizando o chefe, quanto à manutenção da unidade, no atendimento ao legitimo interesse da sociedade potiguar.

Confuso, o motorista ligou para o chefe do chefe, dando conta do ocorrido e ficou aguardando orientações. O chefe do chefe repassou sua perplexidade ao presidente que, por sua vez, a repassou para a assessoria do ministro. Alguns minutos depois as perplexidades foram devidamente engolidas (a seco, diga-se de passagem) e o desnorteado motorista orientado a retornar vazio no dia seguinte, primeiro horário.

Dia seguinte, primeiro horário, o desnorteado motorista chega ao escritório para pegar o caminhão que ficara na garagem e dá de cara com o chefe que já o aguardava.

- Bom dia seu Roberval, já de volta?

- É doutor. Como não tem nada pra levar mesmo, vou abreviar meu retorno, pra chegar mais cedo em casa, né?

- É... Tá certo. Mas, seu Roberval, já que o senhor vai voltar vazio mesmo, e pra não perder essa oportunidade, me faça um favorzinho, tá?

Dirigindo-se ao interior do escritório:

- Chicão! Faz favor!

Meio segundo depois, apresenta-se o prestimoso Chicão, o conhecido capataz da Fazenda Água Boa.

- Chicão, a madeira dos galpões já está pronta?

- Já, sim senhor, desde ontem.

- Então seu Roberval, como eu dizia, aproveitando que o caminhão vai voltar vazio mesmo, passe ali na Madeireira Pau pra Toda Obra e leve um carregamento de madeira pra mim, lá pra Fazenda Água Boa. Fica só a 30km da BR, mas é uma estradinha de terra boa danada. Antes do almoço o senhor estará lá. Chicão vai com o Senhor pra ensinar direitinho.

Antes que o pasmo motorista ensaiasse qualquer objeção:

- O Senhor tem filhos, seu Roberval?

- Sim senhor, dois meninos.

- Chicão, após descarregar o caminhão, dê dois queijos de manteiga e uma rapadura pro Seu Roberval levar pros pirralhos dele, viu? Ah, e embale bem embaladinho, umas cinco pamonhas pro chefe de Recife, com meus cumprimentos. Não se esqueça! Vão com Deus, e boa viagem!

O embasbacado motorista se foi, o chefe retomou seus nada-afazeres, os funcionários reiniciaram a coçação de saco quase interrompida, o chefe do chefe se fingiu de morto, o presidente desculpou-se com o ministro e tudo continuou como dantes no meu Brasil varonil.

E quem quiser que conte outra história, que esta, carimbada e aprovada, já está indelevelmente registrada no rol do folclore geológico nacional, tendo por testemunhas imortais os mangues do Capibaribe e as dunas de Genipabu.
Salvador, Out/2012

quinta-feira, outubro 11, 2012

Poeminha mequetrefe

Aos companheiros de geração, de crença e de desdita.


Devia mais era fechar  o bico, ficar calado
Que afinal, não tenho guarda-costas, nem sou chefe
Sou um cidadão comum, um zé ninguém,
Cuja importância está pra lá do além,
Ou, pra ser mais moderno, um mequetrefe,
Que não merece nem o olhar de um magistrado,
Que devia mais era se olhar no espelho,
Antes de ousar, como um pentelho,
Criticar supremas decisões do STF,
Como se fora um zé mané togado.

Mas é que vendo a candura de um GM
A condenar, sem provas, Zé Dirceu,
E o relator, dedo em riste para a câmera,
Qual Cavaleiro Negro da augusta Câmara,
Dizendo: Eu acuso, Eu acuso, Eu...
Me aperta o peito, a voz cala e a mão treme.
Ah, JB... Melhor tragá-lo com gelo em doses,
A ouvi-lo, como gelo, fazendo poses
De nazista irado ante infiel judeu.
Ah, JB... Que essa chama um dia não te queime!

Invocaste agora o domínio dos fatos:
“Está na cara, o cara sabia. São fortes os indícios”.
Tudo bem. Quem sou eu pra contestar?
Entretanto, nada custa perguntar:
Da Ação Penal do Collor, nem resquícios.
Sem provas, perdeu a denúncia o status.
Por que, agora, abres mão das provas, JB?
Só domina os fatos quem é do PT?
Como vês, incorres nos mesmos velhos vícios.
Tens o mesmo mofo dos velhos retratos.

Mas podes, em breve, provar que és isento.
Dormita nas gavetas desse STF,
Encardido da poeira do salão,
O primevo e verdadeiro mensalão
Data vênia, sei que mereço um tabefe,
Mas espero que entendas meu intento
Pois falo do mensalão do Azeredo
Que Vossa Excelência condene sem medo!
Que não mires só no Lula ou na Roussef,
E que eu engula este meu mau pressentimento.

Salvador, 09/10/2012

terça-feira, maio 15, 2012

Um assobio, uma peixeira e muita saudade


Uma das lembranças mais gratas que guardo da infância, são os doces assobios de meu pai.
O velho vivia assobiando.
E, para falar a verdade, não me recordo de nenhuma música em especial que ele entoasse. Apenas me lembro que era um trinado contínuo, um fiu-fiu baixinho, ensimesmado, que nunca supus fosse soar tão alto em minhas saudades.
Na época, o fato não me chamava muito a atenção porque, é isso que quero dizer, assobiar era um hábito corriqueiro da gente da minha cidade, Paramirim. É raro você circular pela cidade e não ouvir um solo de assobio, que pode ser um samba-canção, gênero muito apreciado no lugar, ou  uma música carnavalesca, ou o que seja. Não conclua daí tratar-se de uma gente alegre ou triste. Nem diria também que aqui vale aquela máxima de que quem canta seus males espanta. Minha gente assobia simplesmente porque gosta. Mas, se preferem impor uma máxima, digamos que quem canta seus males exprime. Não rima, mas é menos dramática e mais realista.
Quando aportei em São Paulo, dezembro de 1968, entre outros choques culturais, me deparei com um povo sisudo que não assobia. Por isso me incomodava chamar a atenção para meus assobios, em mim tão naturais. Muito tímido e discreto, acabei me cerceando e reservando meus trinados aos momentos de recolhimento, longe de curiosos.
O tempo que desde então passou jamais sepultou em mim esse hábito atávico, instintivo. Girei esse país imenso procurando o que não perdi, como dizem dos geólogos por aí, e de vez em quando surpreendia a surpresa de alguém me ouvindo assobiar despreocupadamente, um tango, um bolero ou um samba de reis da minha terra. E, invariavelmente, associavam o fato, ao fato de eu ser baiano, de ter a música no sangue, esses clichês, que vocês conhecem bem.
É... Pode ser.
Certa vez viajava eu, plácido e sereno, num ônibus noturno do interior de Goiás para a capital, quando ainda não havia MP3 player e que tais. Lá pela tantas, alguém começou a executar, num solo maravilhoso, o chorinho “Saxofone por que choras?”, do grande Abel Ferreira, música que me toca a alma. E o nosso artista se esmerava, dando conta, com recursos impressionantes, do sax, da flauta, do violão e sua baixaria e até do pandeiro ele emulava as patinelas sofridas. Eu me deleitava com aquela sonoridade toda e, bem baixinho, na minha, arriscava uns acompanhamentos discretos, lá do meu cantinho, para não atrapalhar aquela verdadeira orquestra assobiônica.
Mas cada um é cada um e nem Jesus agradou a todos, quanto mais um artista anônimo e improvisado num busu noturno naqueles confins de Goiás. Deu-se que alguém foi se queixar ao motorista. Este, como um verdadeiro juiz de paz, parou o ônibus, acendeu as luzes e falou que tinha alguém assobiando alto e que aquilo estava incomodando umas pessoas e que por favor fechassem o bico e que ele esperava ter sido bem claro.
Bem claro o senhor foi, apresentou-se o tal, mas eu vou ser mais claro ainda. Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe quem foi reclamar com o senhor. Agora veja bem, o bico é meu e eu abro e fecho ele na hora que eu quiser. Eu nasci e vou morrer assobiando. Pois hoje eu vou assobiar até rachar o bico e se o senhor quiser, pode ir direto pra delegacia que eu quero ver quem vai me impedir de assobiar. E tem mais, na minha mala tem uma peixeira de 12 polegadas. Toda vez que eu tiro ela da mala o sangue corre. Será que fui claro?
Ante o silêncio sepulcral, o juiz de paz disse que não queria confusão, mas que por favor, assobiasse mais baixo um pouquinho. E foi cuidar de sua direção.
Mas acho que a raiva fez o bico inchar, prejudicando o desempenho da orquestra. Depois de umas duas desafinadas do clarinete, nas notas altas, o assobiador se abusou e se recolheu. E todos dormimos em paz.
Depois das voltas de toda uma vida, fechei o ciclo de minhas andanças, retornando para minha Bahia, para Salvador, sendo mais exato. E aqui voltamos ao começo da história, porque uma das boas coisas (entre outras, claro) desse meu retorno, foi reencontrar essa gente que gosta de assobiar. Pelos corredores da Empresa, pelas ruas da cidade, no calçadão da praia, em todos os lugares você certamente vai se deparar com alguém solando uma canção no bico. Até nos banheiros, você escuta alguém fazendo xixi e assobiando, na maior tranquilidade. Eu acho uma delícia e até retomei meu velho hábito, recolhido há mais de 40 anos. Portanto, ao ouvir um assobio anônimo, em alguma rua da Boa Terra, pode ser eu.
Meu velho pai já não assobia mais, mas eu lhe herdei esse hábito que há de morrer comigo, como o destemido assobiador do ônibus, que, pelo sotaque, bem poderia ser baiano. Talvez assobiar seja uma faceta da musicalidade tão generosa por aqui. Por que não?
Se levarmos o caso por aí, não há como não falar, também, de outro hábito baiano, que carrego desde sempre: cantarolar ao chuveiro. Tem até uns causos curiosos a respeito, mas aí já é uma outra história.