quinta-feira, maio 13, 2010

Parábola dos irmãos gêmeos

Se para o bem ou para o mal, quem há de saber? O fato é que, daquele doloroso parto, nasceram dois gêmeos. Pais humildes e muito tementes a Deus, não perderam tempo na procura de nomes: Cosme e Damião e seja o que Deus quiser! Silva, ambos, é claro

Mas quis Deus, no Seu misterioso querer, que a igualdade entre aquelas duas vidinhas durasse apenas nove meses, e assim foi. Cosme nasceu primeiro. Parto difícil, posição complicada, instrumentos manipulados sem perícia, ei-lo que vem ao mundo todo marcado pelo fórceps, corpinho disforme, já denotando, desde o nascimento, a grave deformidade física que o acompanharia pelo resto da vida.

Damião, vindo logo em seguida, encontrou caminho aberto, nasceu tranqüilo, criança bonita, robusta, o oposto de Cosme.

Mas, as diferenças não pararam por aí. Com o passar dos anos, mais e mais se acentuava o aleijão de Cosme, acarretando-lhe grande dificuldade de locomoção. Além disso, logo se percebeu que Cosme tinha também dificuldade de aprendizado intelectual, apesar de seu extremo esforço. Enquanto isso, Damião cresceu, criança linda, saudável e bastante inteligente. Aos dez anos, enquanto concluía, com louvor, seus estudos primários, Cosme se torturava, sem conseguir sair da alfabetização.

Sendo os pais dos gêmeos família de posses modestas, logo começaram a ter dificuldades para custear os estudos de Damião, cada vez mais sofisticados e caros. Vendo seus pais se endividarem, fazendo enormes sacrifícios, Cosme abandonou os estudos e passou a trabalhar fora (trabalhos braçais, claro), doando todo fruto de seu trabalho para colaborar no desenvolvimento do irmão. Resignado e humilde, não mediu esforços, renunciando às próprias necessidades, orgulhoso, por ver o progresso do mano. Ele tinha consciência de que sua ajuda era fundamental para Damião e isso lhe bastava, mesmo que este nunca lhe tenha dirigido um simples agradecimento, envolvido sempre, com seus estudos complicados e gente de alto nível. Na solidão de suas noites insones, Cosme achava que Deus lhe havia retardado o desenvolvimento, exatamente para poder ajudar o irmão. Era uma missão. E se conformava e trabalhava mais e mais.

Até que, finalmente, Damião formou-se, com enormes honrarias, em noite de gala, na capital. Os pais, doentes e decrépitos, e Cosme, sem vaidade, nem foram convidados, mas não fizeram questão de ir à festa. Sua missão estava cumprida. Deus seja louvado!

Formado, já então uma celebridade, Damião passou a ganhar muito dinheiro, tornou-se notoriedade nacional e desligou-se totalmente da família, que só lhe causava vergonha. Trocou de sobrenome, substituindo o oco Silva, pela sonoridade de um Mustahlin von Hyller.

Constrangido por sua origem silva, formulou a tese, logo cheia de adeptos, de que os Silva, indolentes e preguiçosos, constituíam empecilho inadmissível para o desenvolvimento ainda maior dos von Hyller. Cultos e poderosos, não era justo conviverem no mesmo país dos Silva e lançaram o famoso slogan: Independência para o país dos von Hyller! Abaixo os Silva!

O final da história é como se sabe. Os Pereira, os Santos, os Vieira, os Cruz, os Martins, os Souza e toda a vizinhança revoltada, tomaram uma manguaça domingueira, colocaram os von Hyller no centro da roda e lançaram, de uma só vez, uma interjeição, uma interrogação e um ponto final, com seus sorrisos banguelas:

- E aí manés!? Vão querer encarar!?

Os von Hyller engoliram em seco uma imensa reticência, sem entender porque a periferia é tão aguda quando o assunto é grave. Por precaução, recuaram uma vírgula, mas lá no fundo, nunca desistiram do sonho de colocar um hífen entre os maiúsculos e os minúsculos. E é por isso que eles andam assim, como se diz, circunflexos.

Cosme não guarda mágoas, simplório de nascença. Mas, para grande surpresa, já foi surpreendido a repetir trechos bíblicos em rodas de amigos:

- Em verdade vos digo: ouça quem tem ouvidos de ouvir; veja quem tem olhos de ver!

Dizem as más línguas que essa história ainda não acabou. Quem viver, verá.