segunda-feira, janeiro 29, 2007

O Silêncio por resposta

Sábado, festa de mutirão numa fazenda próxima ao acampamento do projeto Palmeirópolis. E festa de mutirão sabe como é, né? Na verdade a festa (o forró) é o ato final do mutirão de colheita, plantio, derrubada, aragem, enfim alguma atividade agrícola, em que toda a vizinhança se junta, numa determinada fazenda, e dá conta num só dia, de toda a empreitada. É uma cultura da região, na época, estado de Goiás, hoje Tocantins, lá pras bandas do rio Maranhão.
De noite, após o fim da tarefa, o forró come solto. Um sanfoneiro, um zabumba, triângulo, pandeiro e muita, mas muita cachaça. É cachaça que dá no meio das canelas, como se diz na região. Nem água se bebe nessa noite. É só a mardita, até porque, naqueles idos de 80, 81, nem energia elétrica tinha ali, pra ter outra bebida. Era cachaça, galinha assada, poeira na latada, mulher de montão e forró a noite inteirinha que Deus deu.
Nesse dia, o acampamento em peso foi pro mutirão. Estou falando do forró, de noite, porque de dia ninguém foi pra lá pegar no pesado. Éramos convidados de honra.
Pois é. Nesse dia, tinha um colega, aliás, um dos principais dançarinos do mutirão, que arranjou uma namorada logo na chegada e dançava sem parar, só fungando no cangote da morena. Só parava pra dividir uma lapadinha com a amada, ou tomar um ar fora da latada, apreciando as estrelas, que ninguém é de ferro.
Depois, reenergizados, voltavam pro terreiro e o couro comia sereno. Tempos mais tarde, esse tal colega, comentando o mutirão, me confessou que, enquanto dançava ali na latada, a poeira subindo e o suor caindo, se lembrava daquele forró de Luiz Gonzaga:

“Todo tempo quanto houver pra mim é pouco, pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco”.

E tome forró e cachaça, até que, mais ou menos duas horas da manhã, já mais pra lá do que pra cá, ao tentar tirar alguma coisa do bolso da camisa, o moço deixa cair a aliança de casado no meio do poeirão. No exato instante em que viu, num lampejo, o faiscar do ouro à fraca luz do lampião, um pânico invadiu-lhe, o grilo falante cutucou-lhe a consciência, e ele, que tem um vozeirão de locutor de rodeio, bradou espalhafatoso, os dois braços abertos, pra que ninguém pisasse no objeto de seus afetos e medos:
- Pára, pára! Por favor! Pára, gente, por favor, pára!
O sanfoneiro levou um susto, o cara do zabumba deixou cair a baqueta e o forró foi interrompido, para espanto geral. Fez-se um silêncio constrangedor e todos se ajuntaram em torno do nosso herói, olhando para o chão, embora somente ele soubesse do que se tratava. Pensavam que era dinheiro.
Um bêbado, na porteira da fazenda gritou, achando que era briga, uma dozona (espingarda calibre 12") na mão:
- Ninguém sai, ninguém sai! Aqui ninguém passa! A festa vai continuar! Ô sanfoneiro filadaputa, toca essa porra!
Nosso herói, de joelhos, tateava o chão, desesperado, sem sucesso. A namoradinha, ali do lado, solidária, ainda não se tinha dado conta exata do acontecido. Aproveitou o intervalo inesperado e tomou mais uma lapada, pra tirar a poeira da garganta. Alguém trouxe uma vela e finalmente, passados uns cinco minutos kafkianos, o circular objeto foi encontrado. Num gesto rápido, nosso herói dançarino enfiou a aliança no bolso, mas, o sexto sentido feminino da fugaz amada sentiu a flecha da desilusão a perfurar-lhe o peito.
Enquanto o forró retomava, a todo vapor, sob vivas e aplausos dos fogosos casais, esse pequeno drama humano desenrolou-se entre os dois enamorados, à luz mortiça do lampião a gás, tendo por testemunha a poeira do lugar e os ecos da sanfona:
- Então, o senhor é casado?!
A morena engoliu uns restos de saliva poeirenta, olhou lá no fundo dos olhos embaçados do nosso herói e prendeu meio riso nos lábios, no qual se podia divisar o desencanto de uma resposta que no fundo, bem lá no fundo, não queria ouvir.
Nosso herói sentiu a pontada do olhar suplicante da morena e compreendeu, com crueza, sua responsabilidade naquele momento. Tomou o resto de cachaça que sobrara da última lapada inacabada, passou a mão nos beiços, pigarreou forte para fazer o sangue re-circular, fuzilou o olhar da morena, tomou-lhe as mãos com brandura e disse, com a serenidade do réu que cumpriu sentença, os lábios já roçando seus ouvidos:
- Tome o meu silêncio como resposta!
Nesse exato instante, como se fora combinado, o sanfoneiro atacou:

“Todo tempo quanto houver pra mim é pouco, pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco”.

Inebriada, nossa heroína completou o meio sorriso que ficara preso nos lábios e foi pegar mais uma lapada. Nosso herói enlaçou irresistivelmente aquela cintura cabocla e saíram rodopiando, forrozando, bamboleando, levitando, até se acabarem nas areias mornas do rio Maranhão, as nuvens e as pedras da cachoeira por testemunhas. Dizem que ali se casaram e dizem que tomaram mais uma garrafa de cachaça e dizem que engoliram, com a cachaça, toda a poeira do lugar. E dizem que naquela madrugada, o sol demorou a vida toda pra sair.

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