segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Síndrome da Rua Tutóia (1)

Os fatos aqui narrados foram escritos há quase 15 anos, mas aconteceram há mais de 30 anos, quando o autor cursava o 2º ano de Geologia, na USP. Ficção?! Realidade?! Na verdade, a pergunta é se o Brasil de então era ficção ou realidade... Leia este singelo relato, floreado com tons de melancolia, medo e sonhos acalentados e atormentados que ainda hoje convivem com o autor. E tire suas próprias conclusões.

(Primeira parte)

Vinte anos depois, no exato momento em que a lâmina na mão do pivete coriscou no ar, pronta pra me cortar a carótida, lembrei-me daquela noite. Mais uma vez. Vinte anos me perseguindo de São Paulo até aqui. Poderia não ter sido aquela noite. Poderia nunca ter sido. Mas foi.
Ali, naquela sala fria, evitando olharmo-nos nos rostos, ainda atordoados e preocupados com o destino do Jota, eu não tinha condições de perceber que os avisos foram claros, muito claros. Naquela noite, ninguém percebeu. Tanto que estávamos ali presos, algemados, ouvindo os gritos de desespero vindos de outras salas, mas aconteceram coisas estranhas que, na verdade, hoje eu sei, foram avisos para que não fôssemos àquela casa do Itaim. Como fomos cegos!
Estava tudo certo, há muito tempo. Naquele dia, iríamos à festa de calouros da Engenharia. Tudo certo. De repente, alguém, arranja um violão, ali mesmo no CEPEGE, umas caipirinhas pra esquentar e lá vamos todos pra uma esticada na roda de samba do Rei das Batidas. Coisa rápida, tira-gosto pra festa de verdade. Mas o Rei era o Rei. Quem conheceu sabe a que me refiro. Caiu lá dentro, o mundo fica de fora.
Lá pela meia-noite, alguém se lembrou:
-Gente! A festa da Engenharia! Puta que pariu! Vamos, que ainda dá tempo de pegar o último Largo da Concórdia. Vamos nessa!
Será que ninguém percebeu que não era pra voltar pra casa, naquela noite? Já bastante mamados, passamos do ponto de descida. Havíamos, literalmente, dormido no ponto. Não era um aviso? Como fomos cegos, meu Deus! Por que aqueles cinco bebuns não resolveram ficar ali pelos bares da Faria Lima? Por que insistiram em passar naquela república?
Bêbados como estavam, jamais poderiam ter notado algo errado no ar, na rua. Um silêncio de morte envolveu-nos. Aquela Rural em frente à casa, ninguém viu? Aquela Veraneio um pouco mais adiante... Luzes acesas no primeiro andar... Alguém tinha deixado as luzes acesas? Por que ninguém percebeu isso, meu Deus? Como não pudemos sentir o ar se adensando ao nos aproximarmos da casa?! Hoje eu vejo nitidamente, embora já se tenham passados 20 anos. Sinto como se fosse agora. O frio cortante, a garoa mais e mais espessa, o silêncio, a escuridão... Até nossa bebedeira foi ficando mais sóbria. Cinco bois marchando para o matadouro, por vontade própria. Eu, o Jota, o Leo, o Raul e o Cacá[1]. Estávamos conscientes e não sabíamos. Fomos cúmplices.
Quando a chave não quis entrar na fechadura, não é que o Jota estivesse bêbado. Era o aviso da chave. O último. Já nada mais havia em nós, dos boêmios de pouco antes, no Rei das Batidas. Tudo estava se consumando, segundo um script macabro. Quando a porta se abriu de repente e as luzes se acenderam, ninguém se surpreendeu. Não houve qualquer esboço de fuga ou reação. Calmamente, encaramos as metralhadoras com cansaço, com desânimo, como quem recebe aquela notícia ruim, há tanto tempo esperada.
-Quem é o João Alberto, de vocês?
João Alberto era o nome do Jota. Ele se apresentou, com dignidade, sem medo.
-Sou eu... Mas, por quê? Quem são vocês?
-Muito prazer!
Não fosse aquela coronhada no peito, que lançou o Jota sobre o sofá em contorções horrorosas, eu diria que encaramos aquele seqüestro quase com naturalidade. Evidentemente, vocês sabem, estou falando da naturalidade que se pode ter nesses momentos. Uma naturalidade digna, mas nervosa.
Quando o sangue da minha garganta molhou o peito do pivete, eu juro a vocês que não gritei. Juro! Aqueles gritos que se ouviram não foram meus. Por Deus! Eram gritos dele, do Jota, apanhando dos brutamontes. Ecoam desde uma quarta-feira de Páscoa de um longínquo 1973, uma noite fria, de garoa na Paulicéia. Lembram? Há vinte anos, eles me perseguem, bem como um olhar suplicante, implorando um socorro que não pudemos dar.
-Cadê os livros que o Marquinho te entregou, seu porra? Cadê as apostilas socialistas? Comunistazinho de merda! Cagão! Fala filho da puta! Perdeu a voz? Quebre os dentes deste monte de bosta!
Aquelas pancadas surdas que antecediam os gritos terríveis atravessavam o piso do andar superior e nos atingiam, ali no vão da escada, onde nos jogaram, os outros quatro, por um sentido especial. Não era apenas pela audição. Acredite em mim! Ali, naquela situação vexatória, naquele buraco cheio de baratas, descobri que há um sexto sentido que atinge direto o coração e provoca um abalo, como se fosse um choque elétrico na alma. Cada porrada que o Jota levava nos envolvia na mesma contração muscular, numa espécie de vibração estranha que nos fazia contorcer e sentir um outro tipo de dor. A dor da humilhação, da impotência, da revolta contida.
A cada cinco minutos o cabo de uma metralhadora explodia na portinha do vão da escada, com uma advertência tenebrosa:
-Se vocês não ficarem quietos, aí dentro, vamos acabar com essa porra agora mesmo! Meto bala nos quatro e jogo no Tietê, pra aparecerem boiando junto com as merdas da cidade. É o que vocês são mesmo! Fiquem quietos, bando de panacas!
Quem já ficou diante de uma arma, pode confirmar o que digo. Passado o nervosismo inicial, sobrevém um relaxamento, como se nosso corpo acionasse um mecanismo automático e involuntário de controle do pânico e de conformismo com a situação. Após certo tempo, você olha praquela coisa e tem certeza absoluta de que aquilo não vai ser disparado. Foi essa segurança intuitiva que nos fez desdenhar das ordens e falar baixinho, o tempo todo, apesar do incômodo da situação. Nem de pé nem sentados. Escuridão absoluta. O que falávamos?! Sinceramente, não me lembro dos detalhes, mas eram manifestações de solidariedade ao Jota e conforto mútuo. O cabo da metralhadora abriu um rombo na porta frágil, mas nós não nos calamos. Finalmente, o Jota parou de gritar. Só nos chegavam os sons surdos das pancadas. Melhor assim, concordamos.
Depois de um tempo que não sei precisar, nos mandaram sair de sob a escada e vieram com aqueles capuzes negros e as algemas e a sentença cruel:
-Vamos matar todos vocês e jogar os corpos no Tietê, seus comunistazinhos safados! Vamos logo!
E como se riam os seqüestradores, a cada ameaça que nos faziam!
Pra ser sincero, nesse momento achei que eles diziam a verdade. E o Marquinho? Teria sido jogado no rio também? Mais tarde, ficamos sabendo dos próprios carrascos:
-Querem acabar no torniquete também, como aquele terrorista amigo de vocês, o Marquinho? Hein? Querem bancar os heróis? Por nós, tanto faz.
Sabe o que é um torniquete amigo? Não?! Pois saiba que é uma braçadeira metálica, que se passa em volta da cabeça da vítima e os carrascos vão apertando, exatamente como uma braçadeira comum. A diferença, amigo, é que essa braçadeira sinistra tem umas pontas de parafusos no lado de dentro. Meros detalhes que, ao perfurarem o cérebro, fizeram Alex, carinhosamente chamado pelos colegas de Marquinho, sair pelos corredores do DOI-CODI, uma sigla que cheira cemitério, deixando um rastro de terror pelas paredes, propositalmente mantido intacto pelos assassinos, para que os demais “comunistas” presos pudessem ver o fim que os aguardava, caso não colaborassem.

(continua na próxima postagem...)

[1] Jota, Leo, Raul, Cacá e Alex (Marquinho) são nomes fictícios de personagens reais.

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